O sistema penitenciário e a população transgênero

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: C.E.R. em 2025-03-06 11:24:06

04/02/2025

Autores

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Anelise Lopes de Almeida

Curriculo do autor: Bacharela em Direito pela Universidade Anhanguera de São José/SC(2023); Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal; Pós-Graduação em Computação Forense e Pericia Digital(2024).

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Luiz Paulo Do Amaral Cardoso

Curriculo do autor: Mestre em Direito (UNISC). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Anhanguera. Doutorando em Ciências da Linguagem (UNISUL). Graduação em Direito (UNIVALI). Pós-graduação em Direito e Direito Processual (PUC/RS). Especialização em Docência no Ensino Superior (UNIDERP). Advogado criminalista. Palestrante. Autor de artigos sobre Direito e Legislação em revistas especializadas. Membro da Comissão de Defesa, Assistência, e Prerrogativas dos Advogados (CDAP) da OAB/RS

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Resumo

Este artigo tem como objetivo promover uma reflexão sobre a situação das pessoas transgênero no cumprimento de penas privativas de liberdade, abordando a questão sob a perspectiva dos direitos fundamentais que orientam o ordenamento jurídico brasileiro. Através de uma revisão qualitativa da literatura, é realizada uma análise do contexto histórico e dos conflitos envolvendo os direitos dos indivíduos transgêneros dentro do sistema penitenciário, com base nos preceitos estabelecidos pela Constituição Federal. Apesar da existência de leis que asseguram a proteção dos direitos humanos e destacam a dignidade da pessoa humana, a realidade no âmbito prisional ainda é marcada por estigmas e atitudes discriminatórias. Isso se reflete em práticas de violência e exclusão direcionadas à população transgênero. Dessa forma, o artigo enfatiza a necessidade urgente de uma reforma institucional que envolva mudanças nos campos social, político e jurídico, com o intuito de garantir que os direitos constitucionais das pessoas trans sejam efetivamente respeitados e aplicados, promovendo um tratamento mais justo e inclusivo dentro do sistema de justiça penal.

Palavras-Chave

Pessoas Transgêneros. Sistema Penitenciário. Princípio da Dignidade humana.

Abstract

This article aims to promote reflection on the situation of transgender people serving custodial sentences, approaching the issue from the perspective of fundamental rights that guide the Brazilian legal system. Through a qualitative review of the literature, an analysis of the historical context and conflicts involving the rights of transgender individuals within the penitentiary system is carried out, based on the precepts established by the Federal Constitution. Despite the existence of laws that ensure the protection of human rights and highlight the dignity of the human person, the reality in prison is still marked by stigmas and discriminatory attitudes. This is reflected in practices of violence and exclusion directed at the transgender population. Thus, the article emphasizes the urgent need for institutional reform that involves changes in the social, political and legal fields, with the aim of ensuring that the constitutional rights of trans people are effectively respected and applied, promoting fairer and more inclusive treatment within of the criminal justice system.

Keywords

Transgender People. Penitentiary System. Principle of human dignity.

1.       Introdução

A identidade de gênero e a luta pela garantia dos direitos da população transgênero, têm ganhado cada vez mais destaque, é essencial para que se construa uma sociedade mais justa e respeitosa, compreender essa diversidade de gênero, a busca pela acessibilidade e igualdade de direitos, abordando os desafios que ainda enfrentam e os avanços conquistados, para assim poder promover a inclusão e a igualdade. Em relação à identidade de gênero e sexualidade ainda se enfrenta grande resistência social, política e cultural, resultando em violência, rejeição e abandono, especialmente no ambiente prisional. Essa categoria de apenados sofre violações profundas, tornando-se um grupo altamente vulnerável. Além de estarem suscetíveis a diferentes formas de abusos e violências. O sistema prisional brasileiro traz uma questão desafiadora, que requer uma abordagem adequada e sensível às necessidades das pessoas transgêneros, principalmente para garantir a preservação dos direitos fundamentais, amparado pela criação de políticas públicas, que assegurem os direitos fundamentais das pessoas transgêneros, para construir uma sociedade mais inclusiva e igualitária para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. É de extrema importância abordar esse tema, uma vez que, os transgêneros nas penitenciarias sofrem violações de seus direitos, fundamentados por essa premissa, faz-se necessário a análise da situação dos apenados transgêneros no sistema penitenciário brasileiro. 

2.      Referencial Teórico

A identidade de gênero é como uma pessoa se identifica internamente e individualmente, seja como masculino, feminino, não binário ou qualquer outra identidade de gênero. Essa identidade é uma construção social e psicológica e não necessariamente está relacionada ao sexo biológico da pessoa. A orientação sexual é sobre o tipo de atração emocional, afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente por outras pessoas. Pode ser heterossexual (atração por pessoas do sexo oposto), homossexual (atração por pessoas do mesmo sexo), bissexual (atração por pessoas de ambos os sexos) ou pansexual (atração por pessoas independentemente do gênero) (ALENCAR, 2023). 

De acordo com Santos (2023), indivíduos transgênero podem experimentar uma profunda desconexão entre sua identidade de gênero e seu corpo. Eles podem desejar adquirir características físicas e sociais que estejam alinhadas com sua identidade de gênero, tais como mudanças hormonais, cirurgias de redesignação sexual ou a adoção de roupas e comportamentos que correspondam à sua identidade de gênero. É importante ressaltar que sexo, identidade de gênero e orientação sexual são conceitos distintos e não devem ser confundidos. O sexo biológico se refere às características físicas, fisiológicas e genéticas que determinam se uma pessoa é do sexo masculino ou feminino. 

No Brasil, a identidade de gênero e a transexualidade são consideradas temas de direitos humanos e foram abordadas em diversas leis e políticas públicas. Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), emitiu uma resolução n. 73, estabelecendo que cartórios em todo o país devam permitir a mudança do nome e do gênero nos registros civis, dispensando a necessidade de uma autorização judicial. Essa resolução possibilitou que muitas pessoas trans pudessem ter seu nome e gênero corrigidos em seus documentos de identidade, contribuindo para a inclusão social e evitando constrangimentos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018).

No mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF), reconheceu o direito das pessoas transexuais de mudarem o nome e o sexo nos documentos oficiais, sem precisarem passar por cirurgia de redesignação sexual ou obter decisão judicial. Isso implica que as pessoas transexuais no Brasil possuem o direito de serem reconhecidas e tratadas de acordo com sua identidade de gênero, sem a necessidade de se submeterem a procedimentos médicos invasivos (cirurgias) ou de comprovarem sua condição perante o sistema judiciário (ALENCAR, 2023). Já em 2019, o STF adotou a transfobia e a homofobia como crimes de racismo. Comportamentos homofóbicos e transfóbicos, reais ou supostos, se enquadram nos delitos previstos na Lei n. 7.716/89 e, quando se trata de homicídio doloso, essa circunstância serve como qualificadora, uma vez que caracteriza motivo torpe. A tese defende que o conceito de racismo transcende os aspectos puramente biológicos ou fenotípicos e abrange a negação da dignidade e da humanidade a grupos vulneráveis (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019).

Segundo Santos (2023), a população trans enfrenta uma variedade de demandas e desafios no que diz respeito aos direitos humanos. Como a ocorrência de violência e discriminação, dificuldade de acesso à saúde, falta de reconhecimento legal, problemas de emprego e renda, e também a falta de representação política, entre outros. Consoante Alencar (2023), a violência é algo frequente, tanto física quanto verbalmente, em diversas áreas, como no acesso a oportunidades de trabalho, serviços de saúde, educação e moradia. Esses atos têm como motivação comum a transfobia, ou seja, o preconceito contra pessoas trans. As dificuldades de acesso a cuidados de saúde adequados, como a hormonioterapia e cirurgia de redesignação sexual, são resultado da falta de profissionais de saúde capacitados em questões relacionadas a pessoas trans e também da falta de cobertura adequada para esses procedimentos. Segundo Ramos (2014), os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.

 

3.      Processos Metodológicos

O método de abordagem é dedutivo partindo de um direito fundamental, em especial à população carcerária transgênero. A técnica de pesquisa foi bibliográfica, buscou-se fundamentação teórica reunindo informações, conceitos, doutrinas, jurisprudências, artigos, comentários e ideias afins em diferentes autores, na perspectiva de analisar e elucidar aspectos que permeiam a proposta do tema.

4.      Análise dos Resultados

O sistema carcerário brasileiro enfrenta o desafio de lidar com a diversidade de identidades de gênero entre os indivíduos encarcerados. Esse tema tem sido motivo de discussões, acerca dos direitos das pessoas que estão privadas de liberdade. Dentre as inúmeras questões abordadas, destaca-se a necessidade de reconhecer e respeitar a identidade de gênero, o que é crucial para garantir a dignidade, a integridade física e psicológica, bem como promover a inclusão e a igualdade (ALENCAR, 2023).O documento mais expressivo em âmbito nacional é a Resolução Conjunta n. 1, de 15 de Abril de 2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que se baseia em normas internacionais, como as Regras das Nações Unidas e os Princípios de Yogyakarta (Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero), a resolução estabelece uma série de direitos relacionados às pessoas Trans privadas de liberdade:

Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa. Os Estados deverão: a) Garantir que a detenção evite uma maior marginalização das pessoas motivada pela orientação sexual ou identidade de gênero, expondo-as a risco de violência, maus tratos ou abusos físicos, mentais ou sexuais; b) Fornecer acesso adequado à atenção médica e ao aconselhamento apropriado às necessidades das pessoas sob custódia, reconhecendo qualquer necessidade especial relacionada à orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive no que se refere à saúde reprodutiva, acesso à informação e terapia de HIV/Aids e acesso à terapia hormonal ou outro tipo de terapia, assim como a tratamentos de redesignação de sexo/gênero, quando desejado; c) Assegurar, na medida do possível, que pessoas detidas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero; d) Implantar medidas de proteção para todos os presos e presas vulneráveis à violência ou abuso por causa de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero e assegurar, tanto quanto seja razoavelmente praticável, que essas medidas deproteção não impliquem maior restrição a seus direitos do que aquelas que já atingema população prisional em geral; e) Assegurar que as visitas conjugais, onde são permitidas, sejam concedidas na base de igualdade a todas as pessoas aprisionadas ou detidas, independente do gênero de sua parceira ou parceiro; f) Proporcionar o monitoramento independente das instalações de detenção por parte do Estado e também por organizações não governamentais, inclusive organizações que trabalhem nas áreas de orientação sexual e identidade de gênero; g) Implantar programas de treinamento e conscientização, para o pessoal prisional e todas as outras pessoas do setor público e privado que estão envolvidas com as instalações prisionais, sobre os padrões internacionais de direitos humanos e princípios de igualdade e não discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero (YOGYAKARTA, 2006).

A premissa da Resolução Conjunta nº 1, visa proteger a integridade física e psicológica dos apenados transgêneros, garantindo o direito à plena liberdade de expressar sua identidade individual. Negar-lhes essa identidade seria condená-los duplamente: primeiro, com a punição da privação de liberdade, e segundo, com o preconceito dentro do ambiente prisional e a vulnerabilidade diante de situações de violência. Além disso, ela assegura a obrigação do Estado de fornecer profissionais qualificados nas prisões para garantir um tratamento mais humano para todos. É fundamental que os profissionais que atuam em presídios continuem aprendendo e se capacitando para o seu desenvolvimento individual (ANDRADE; CARTAXO; CORREIA, 2018).

Segundo a Resolução Nº 348 de 13 de outubro de 2020, estabelece diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população transgênero que seja privada de liberdade, estipula orientações e métodos a serem seguidos pelo sistema judiciário em relação à população transexual privada de liberdade, seja em cumprimento de penas alternativas ou em monitoramento eletrônico:

Art. 2º A presente Resolução tem por objetivos: I -a garantia do direito à vida e à integridade física e mental da população LGBTI, assim como à sua integridade sexual, segurança do corpo, liberdade de expressão da identidade de gênero e orientação sexual; II – o reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero e sexualidade da população LGBTI; e III – a garantia, sem discriminação, de estudo, trabalho e demais direitos previstos em instrumentos legais e convencionais concernentes à população privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitoração eletrônica em geral,bem como a garantia de direitos específicos da população LGBTI nessas condições.(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, RESOLUÇÃO N. 348, 2020).

As garantias englobam cuidados médicos especializados, que atendem às características físicas e biológicas dos detentos, assim como às necessidades de saúde reprodutiva. Também faz parte das garantias o fornecimento de itens essenciais para as necessidades de saúde dessas mulheres. Isso se aplica, por analogia, aos homens transexuais, sendo o Estado o principal responsável por garantir esses cuidados. Outro direito existente e que merece destaque devido à sua importância, é o atendimento psicológico e psiquiátrico às pessoas autodeclaradas LGBTQIA+ privadas de liberdade. Esse tipo de direito deve ser priorizado, tendo em vista o inevitável agravamento da saúde mental dessa população, devido às claras violências sociais às quais são submetidas diariamente (NADAL, 2023).O sistema prisional brasileiro foi construído sob um paradigma binário, que pressupõe a soberania da biologia na determinação do sexo do indivíduo, dividindo a população carcerária em homens e mulheres. Esse modelo não contempla a transgeneridade em sua estrutura, deixando de lado a necessidade de estabelecer padrões específicos de garantias constitucionais e segurança (OLIVEIRA, 2022).

Devido a essas questões, ressalta Foucault (2014):

[…] as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: podem ser aumentadas, multiplicadas ou transformadas, mas a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável ou, ainda pior, aumenta: […] A prisão fabrica também delinquentes ao impor constrangimentos violentos aos reclusos; destina-se a aplicar as leis e a ensinar o respeito por estas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola segundo o modo do abuso de poder. Arbitrariedade da administração: O sentimento de injustiça que um prisioneiro sofre é uma das causas que mais lhe podem tornar indomável o caráter. Quando se vê assim vítima de sofrimentos que a lei não ordenou nem previu, entra num estado habitual de ira contra tudo aquilo que o rodeia; em todos os agentes de autoridade, só carrascos, não acredita ter sido culpado acusa a própria justiça (FOUCAULT, 2014, p.283).

De acordo com Santana (2016), além das formas extremas de violência que o ambiente carcerário tem assumido, a situação dos transgêneros é ainda mais alarmante, uma vez que seus direitos são violados de maneira ainda mais severa perante a estrutura prisional binária, a superlotação, a escassez de profissionais na área, o aumento dos índices de violência sexual e a falta de atendimento adequado à saúde.

Nas penitenciárias brasileiras, as pessoas Trans enfrentam diversos problemas, começando pela deficiência estrutural das instalações das unidades, nas quais se encontram totalmente vulneráveis e desprotegidas, expostas a várias situações de risco, tais como abusos sexuais, espancamentos e outras formas de agressão e humilhação. Além disso, há violações à sua dignidade quando têm seus cabelos cortados, não têm seus nomes sociais reconhecidos e, assim, são impedidas de expressar suas identidades de gênero plenamente (SOUZA, 2016).

A Lei de Execução Penal, estabelecida pela Lei nº. 8.072/ 90 traz em seus artigos 40 e 41 a obrigação de respeitar a integridade física e moral das pessoas condenadas e presas provisoriamente. Esses direitos supostamente são violados quando ocorre a colocação de detentos (as) da população LGBTQIA+ em cela conjunta com outros presos, já que é evidente a incidência de vários tipos de maus-tratos no país.

Segundo Benevides (2023), travestis e mulheres transexuais se deparam com diferentes obstáculos no sistema prisional, como a falta de infraestrutura adequada nas unidades, à desvalorização de seus corpos e vivências, a dificuldade em realizar atividades que possibilitem a redução da pena ou a participação em atividades educacionais e culturais, além da alta incidência de desconhecimento ou não cumprimento dos mecanismos legais que estabelecem critérios para a promoção dos direitos humanos. Além disso, essas pessoas enfrentam desafios para preservar sua humanidade, como a afirmação de sua identidade de gênero, o cuidado com a saúde, a administração de relacionamentos afetivos e transtornos de saúde mental, como a depressão e a ansiedade.

Dessa maneira, pode-se constatar que a validação da orientação sexual e da identidade de gênero está nas mãos de terceiros. Além disso, embora as alas LGBT sejam relevantes, elas são emergenciais e não devem, isoladamente, ser consideradas como uma política eficiente na salvaguarda dessas pessoas. Por não estarem amparadas por lei, é comum que mulheres trans e travestis sejam alocadas em celas masculinas, especialmente em cidades de menor porte (NASCIMENTO, 2020).

Dessa forma, essa concepção, além de preconceituosa, nega a identidade de gênero das mulheres trans e travestis:

A ideia de que elas poderiam vir a estuprar ou engravidar outras mulheres se constitui como o argumento central dessa regra, que, além de tudo, é não apenas biologicista como também heteronormativa: opera com a noção de que pessoas com pênis invariavelmente o utilizariam em uma relação sexual com pessoas com vaginas, ignorando que as mulheres transexuais e travestis são mulheres e, como tais, são, em sua maioria, heterossexuais – isto é, se sentem atraídas por homens grande parte das vezes. uma dupla negação: da identidade de gênero (como se “no fundo” elas continuassem sendo homens ao terem um pênis) e da orientação sexual (sendo consideradas homens pela genitália que possuem, há a ideia de que não deixariam de transar com outras mulheres, ainda que saibamos que grande parte delas é heterossexual). As prisões, diante desse quadro teórico de referência, tomam a decisão de prender as pessoas a partir da percepção que seus agentes 64 possuem sobre a genitália da pessoa presa e raramente levam em consideração a autodeterminação da pessoa em termos de identidade de gênero ( SANTOS, 2020, p.36 -.93).

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental estabelecido no art. 1°, III da Constituição Federal de 1988. As ações do Estado e da sociedade devem estar pautadas nesse princípio, garantindo que cada indivíduo seja tratado com respeito e justiça, sem discriminação ou preconceitos (ALENCAR, 2023).

Para Sarlet (2011), a dignidade humana insere-se como conjunto de direitos e deveres fundamentais, prevenindo que as pessoas tenham qualquer ato de cunho degradante e desumano, e garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável.

Segundo Alencar (2023), o sistema prisional brasileiro enfrenta uma série de desafios e violações em relação ao princípio da dignidade humana, entre elas as superlotações, condições precárias, violência, falta de serviços básicos e prisões provisórias prolongadas, violando assim o princípio da presunção de inocência. Em relação à população trans no complexo penitenciário, é necessário incorporar medidas e soluções que promovam a inclusão, o respeito aos direitos humanos e a proteção das pessoas detidas.

De acordo com Santos (2023), algumas das medidas que devem ser incorporadas: políticas que proíbam a discriminação, garantindo a igualdade de tratamento para todas as pessoas detidas, incluindo as trans; agentes penitenciários capacitados sobre questões de gênero, identidade e diversidade sexual, para a garantia de um tratamento sensível e respeitoso.

Conforme ressalta Alencar (2023), os alojamentos devem estar em conformidade com a  identidade de gênero, considerando as próprias escolhas e segurança, evitando a segregação e o isolamento forçado, garantindo que as necessidades sejam atendidas adequadamente; assim como, prevenção e proteção criando espaços seguros, monitoramento adequado, ações disciplinares contra agressores e a promoção de uma cultura de respeito.

Em relação à saúde e reintegração social para a população carcerária, Santos (2023) aduz:

Acesso a cuidados de saúde adequados: É fundamental garantir que as pessoas trans tenham acesso a cuidados médicos adequados dentro do sistema prisional. Isso inclui acesso a tratamentos hormonais, cuidados de saúde específicos para a população trans, como atendimento psicológico especializado, e tratamento justo e igualitário para condições médicas relacionadas à sua identidade de gênero. Reintegração social: É fundamental fornecer programas de reabilitação, educação e treinamento profissional adequados para ajudar as pessoas trans a se reintegrarem à sociedade após o cumprimento da pena. Isso inclui oportunidades de emprego, acesso à educação formal e apoio na reconstrução de suas vidas (SANTOS, 2023, p. 20).

 

Além dessas ações, é importante que haja uma nova perspectiva, envolvendo organizações da sociedade, dos direitos humanos e especialistas na área, a fim de assegurar a efetiva promoção da dignidade da pessoa humana, incluindo um olhar mais atento as pessoas transgêneros. É de extrema relevância que o Estado e os agentes estejam engajados e comprometidos em garantir a proteção dos direitos dos presos trangêneros, promovendo um ambiente prisional seguro e inclusivo (ALENCAR, 2023).

 

5.      Considerações Finais 

É evidente que a luta pelo reconhecimento da identidade de gênero tem se fortalecido consideravelmente. A temática abordada neste artigo suscita reflexões sobre a configuração e a efetivação dos direitos fundamentais constitucionalizados, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, é necessário assegurar à pessoa transgênero o exercício pleno de sua verdadeira identidade de gênero.

Em relação a população transgênero, vemos uma situação vulnerável de exclusão na sociedade, e para desenvolver soluções que sejam positivas, na realidade desse grupo de pessoas, é necessário que as políticas públicas sejam planejadas de forma estratégica e articulada. É essencial estimular a visibilidade das pessoas trans como uma forma de enfrentar o preconceito enraizado na sociedade e também presente nas instituições penitenciárias.

Além dos desafios enfrentados por todos os reclusos, a comunidade trans enfrenta consequências específicas e desafiadoras dentro do ambiente prisional. Algumas dessas consequências englobam o perigo de violência física e sexual, dado que as pessoas trans frequentemente estão mais suscetíveis a episódios de violência desse tipo nos presídios. Elas se tornam alvo de agressões, abusos e assédio, tanto por parte de outros detentos como também por funcionários penitenciários. A falta de proteção adequada amplifica esses riscos, contribuindo para a violação de sua integridade física e psicológica.

Incentivam-se futuras pesquisas que aprofundem a análise do reconhecimento da identidade de gênero no sistema prisional, promovendo políticas públicas e leis que garantam a inclusão e proteção das pessoas trans, conscientizando cada dia mais a sociedade sobre a importância da igualdade de direitos e oportunidades para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. Também, é importante que o Estado fomente e invista nas políticas públicas de prevenção ao crime, gerando mais incentivos à educação, à cultura e ao esporte, para que possa minimizar a criminalidade e o encarceramento.

     

 

Referências

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YOGYAKARTA – Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero, 09 de nov. p.1-37. 2006. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em: 01 nov. 2023.

 

 

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ALMEIDA, Anelise Lopes de e CARDOSO, L. P. A.. O sistema penitenciário e a população transgênero. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14982774, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 06/03/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-sistema-penitenciario-e-a-populacao-transgenero/. Acesso em: 24/04/2025.