Coisa julgada inconstitucional e o sistema de precedentes vinculantes

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: C.E.R. em 2025-10-10 11:23:47

Submissão: 09/10/2025

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Vitória Maria Carvalho de Abreu

Curriculo do autor: Analista Judiciária do Tribunal Superior do Trabalho - TST, graduada em Direito pela faculdade R.SÁ, Picos-PI, Pós-Graduada em Direito Público e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

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Resumo

O presente artigo analisa a relativização da coisa julgada no contexto do sistema de precedentes vinculantes instituído pelo Código de Processo Civil de 2015, à luz da supremacia da Constituição Federal. Parte-se da compreensão clássica da coisa julgada como instrumento de segurança jurídica e estabilidade das relações sociais, para, em seguida, discutir sua compatibilização com o dever do Poder Judiciário de assegurar a constitucionalidade das decisões judiciais. Examina-se, ainda, a evolução jurisprudencial e doutrinária sobre a chamada “coisa julgada inconstitucional”, destacando-se a recente posição do Supremo Tribunal Federal que admite a inexigibilidade de decisões transitadas em julgado fundadas em normas posteriormente declaradas inconstitucionais. Conclui-se que a flexibilização da coisa julgada, longe de fragilizar o sistema jurídico, reafirma o compromisso com a supremacia da Constituição e com a efetividade dos direitos fundamentais, representando um avanço na construção de um processo civil mais justo e coerente com os valores democráticos.

Palavras-Chave

Coisa julgada; Precedentes vinculantes; Supremacia da Constituição; Inconstitucionalidade; Segurança jurídica.

Abstract

This article analyzes the relativization of res judicata within the framework of the binding precedents system established by the 2015 Brazilian Code of Civil Procedure, in light of the supremacy of the Federal Constitution. It begins with the classical understanding of res judicata as an instrument of legal certainty and social stability, then discusses its compatibility with the Judiciary’s duty to ensure the constitutionality of judicial decisions. The study examines the doctrinal and jurisprudential evolution surrounding the so-called “unconstitutional res judicata,” emphasizing the recent position of the Brazilian Supreme Court that allows the unenforceability of final judgments based on laws later declared unconstitutional. It concludes that the flexibility of res judicata, rather than undermining the legal system, reinforces the commitment to constitutional supremacy and the effectiveness of fundamental rights, representing progress toward a more just and coherent civil procedure in a democratic society.

Keywords

Res judicata; Binding precedents; Constitutional supremacy; Unconstitutionality; Legal certainty.

1.      Função do Poder Judiciário

O Poder Judiciário possui como função principal o exercício da jurisdição. Ao desempenhar essa atribuição com justiça e imparcialidade, o Estado atua como agente responsável pela resolução dos conflitos sociais.

Dinamarco explica (2024, p. 259) que essa pacificação exercida pelo Estado, na função jurisdicional, tem espeque na vontade do direito objetivo (Legislativo) definido abstratamente, o qual deve ser posto diante do caso concreto, por intermédio do processo.[i]

Dinamarco (2024, p. 189) preceitua que, apesar do o Poder Judiciário ser classificado pela teoria clássica da tripartição dos poderes como o terceiro dos Poderes de Estado, o Judiciário brasileiro vem ganhando relevantes contornos jurídicos, à medida que “interfere com muita frequência nos demais Poderes – seja censurando-as pelo aspecto da legalidade e competência, seja realizando o controle de suas políticas públicas, seja também atuando como o último e indispensável esteio das liberdades e dos direitos individuais e sociais, dos quais constitui a principal garantia”. 

A Constituição Federal garante o acesso ao Judiciário como direito fundamental, determinando que “a lei não excluirá do poder judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV, CF/88).

O Judiciário é caracterizado pela inércia, atuando apenas quando provocado pelas partes para garantir a imparcialidade. Além disso, o julgador deve obedecer à lei e ao direito, cabendo ao Poder Judiciário aplicar a Constituição e o ordenamento jurídico.

A fim de assegurar a sua autonomia, a Constituição conferiu ao Judiciário garantias institucionais de autonomia orgânico-administrativa (art. 95 e 96, CF/88) e autonomia financeira (art. 99, CF/88), além de garantias aos seus membros (funcionais) – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio dos magistrados (art. 95, CF/88).

O Poder Judiciário exerce importante papel no equilíbrio democrático do Estado de Direito.

A definitividade das decisões jurisdicionais garante segurança jurídica e contribui para a estabilidade social ao pacificar conflitos.

Nessa toada, Lenza (2020, p. 804) explica que as decisões judiciais são caracterizadas pela definitividade, “na medida que transitam em julgado” e, quando acobertadas pelo manto da coisa julgada, não comportam rediscussão, dentro ou fora do processo, a depender se meramente formal ou material.

Dessa forma, observa-se que o Poder Judiciário desempenha uma função estabilizadora no desenvolvimento da democracia brasileira e de suas instituições, tanto em relação aos demais poderes como no exercício da função jurisdicional, atuando como mediador de conflitos individuais e coletivos, sejam as partes públicas ou privadas.

Diante disso, destaca-se o papel exercido pelo Poder Judiciário no controle de políticas públicas.

O Supremo Tribunal definiu, em sede de repercussão geral, ao julgamento do Tema 698, parâmetros para nortear as decisões judiciais voltadas à efetivação de políticas públicas no caso concreto, diante do desrespeito a direitos fundamentais, nos seguintes termos:

A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes.

A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado.

No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).

STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).[ii]

O STF busca estabelecer parâmetros que garantam tanto a efetividade das políticas públicas relacionadas aos direitos fundamentais quanto o respeito ao princípio da separação dos poderes, evitando que decisões judiciais restrinjam atribuições do poder executivo na administração pública.

2.      Coisa Julgada e Seus Efeitos

O exercício da jurisdição estatal consiste em solucionar conflitos sociais por meio do processo, iniciado pelas partes diante da inércia jurisdicional, culminando normalmente em uma decisão de caráter impositivo e definitivo.

O Código de Processo Civil conceitua como sentença a decisão ou pronunciamento do juiz que “com fundamento nos artigos 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução” (art. 203, § 1º).

O ordenamento jurídico nacional garante o duplo grau de jurisdição, permitindo que as sentenças proferidas pelo juízo de primeiro grau sejam, em regra, submetidas à revisão por Tribunal. Tal garantia constitucional, embora não explicitada em dispositivo isolado da Constituição Federal, é resultado do sistema recursal e da própria estrutura do Poder Judiciário, o qual dispõe de instâncias superiores para apreciação e eventual modificação das decisões originárias.

Dinamarco (2024, p.469) esclarece que a garantia do duplo grau de jurisdição, decorrente da existência de órgãos do Poder Judiciário, dotados de poder de decisão, em diferentes esferas, escalonados hierarquicamente, oportuniza à parte vencida a possibilidade de revisão das decisões judiciais, sendo-lhe possível reverter a decisão proferida em seu desfavor.

O referido autor acrescenta que:

“A oferta de meios para exames dessa ordem é uma inerência do devido processo legal e constitui um dos elementos no necessário equilíbrio entre o valor da segurança jurídica, que conduz à estabilidade dos julgados (preclusões, coisa julgada), e o da justiça das decisões, que postula a abertura de caminhos aptos a eliminar possíveis erros do prolator. Compreende-se que a maior experiência os juízes superiores, aliada ao fato de que ordinariamente os exames são realizados por um colegiado, constitui fator favorável à maior ponderação, serenidade e justiça nos julgamentos – sabendo-se no entanto que no passado houve vozes sustentando que a abertura de caminhas para a revisão de julgadores por órgãos superiores teria os inconvenientes de debilitar a segurança jurídica e desprestigiar os juízes inferiores.”[iii]

Entretanto, essa garantia não é ilimitada, pois poderia perpetuar conflitos sociais, gerar insegurança jurídica e aumentar custos para o Estado.

Após o esgotamento dos recursos cabíveis, a sentença torna-se imutável no âmbito do próprio processo — caracterizando a coisa julgada formal — ou em relação à mesma questão entre as mesmas partes, tanto dentro quanto fora do processo — configurando a coisa julgada material.

Na ilustre obra “Teoria Geral do Processo” (2024, p. 458), os autores destacam que a coisa julgada formal é, ao menos em princípio, pressuposto da coisa julgada material. Isso porque, a primeira torna a sentença imutável no âmbito daquele processo específico, não havendo impedimento para que a questão levada a juízo seja dirimida em outro processo, enquanto a segunda torna imutável a eficácia da sentença dentro e fora do processo, não podendo ser atingida por recursos naquele ou em outro feito. 

Daniel Amorim (2019, p. 863), por outro lado, traz à lume a divergência doutrinária quanto à imutabilidade da coisa julgada material, afirmando que, muito embora a maior parte da doutrina siga a concepção de coisa julgada material de Liebman, no sentido de que a coisa julgada é uma qualidade da sentença que torna – após o trânsito em julgado – seus efeitos imutáveis e indiscutíveis, dentro ou fora do processo, de modo que não podem ser reavaliados, seja pelo Estado Juiz ou pelo Legislador, o que poderia levar à conclusão de que seus efeitos são imutáveis, porque protegidos pelo “manto” da coisa julgada material, parcela da doutrina entende que os efeitos da coisa julgada andam longe de ser assim tão absolutos. O autor menciona críticas à teoria da imutabilidade, em razão de que, como entende parte da doutrina, os efeitos da coisa julgada não tornam a sentença transitada em julgada imutável, uma vez que tais efeitos são passíveis de modificação por mudança fática, em vista de efeitos supervenientes ou pela própria vontade das partes.[iv]

A característica de imutabilidade atribuída à coisa julgada garante segurança jurídica ao impedir que questões já apreciadas pelo Poder Judiciário sejam analisadas novamente, considerando as mesmas partes e os mesmos fatos. Além disso, o “manto” da coisa julgada implica economia processual, ao impedir a rediscussão de questões já decididas. 

Nesse sentido, Daniel Amorim destaca que (2019, p. 864) submeter uma questão já julgada ao crivo do judiciário novamente seria uma “atentado à economia processual”, isso em se tratando da mesma demanda, entre as mesmas partes, com a mesma causa de pedir, sendo esse um dos efeitos negativos da coisa julgada. O autor afirma, ademais, que a reapreciação da mesma causa decidida implicaria “fonte de perigo à harmonização dos julgados”, tendo em vista o risco de decisões conflitantes.

Conforme analisado, a coisa julgada não possui caráter absoluto. No contexto do direito brasileiro, especialmente após a implementação do sistema de precedentes vinculantes, o instituto da coisa julgada vem sendo reinterpretado, admitindo a relativização nos casos em que conflite com decisões vinculantes, inclusive aquelas supervenientes.

3.      O Papel do Sistema de Precedentes Vinculantes

O sistema de precedentes vinculantes no Brasil refere-se a um conjunto de decisões judiciais qualificadas como precedentes, as quais devem ser observadas por tribunais inferiores e juízes a eles subordinados. Esse modelo foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e regulamentado pelo Código de Processo Civil – CPC/2015.

Nesse sentido, precedente é a decisão judicial qualificada por sua eficácia vinculante, distinguindo-se do precedente simples, de eficácia persuasiva.

O art. 927 do CPC/2017 estabelece que os juízes e tribunais observarão – de maneira imperativa: “I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”[v].

Daniel Amorim (2019, p. 1393) lembra que a eficácia vinculante dos precedentes mencionados no art. 927 do CPC decorre da previsão constitucional de observância obrigatória das decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2º, CF/88), bem como das Súmulas Vinculantes editadas por aquela Corte (art. 103-A, caput, CF/88), bem como de outras previsões legais, inclusive dos precedentes qualificados elencados no CPC/15, como o incidente de assunção de competência – IAC (art. 947, § 3º, CPC), incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR (art. 985, CPC) e recursos especial e extraordinário repetitivos (1.040, CPC).

Conforme entende a doutrina majoritária, para Daniel Amorim (2019, p. 1393), ao adotar o termo “observarão”, o CPC (art. 927) consagra a eficácia vinculante dos precedentes e enunciados ali previstos.

Marinoni, na obra “A Ética dos Precedentes”, justifica a necessidade de um sistema de precedentes, a fim de gerar unidade e desenvolvimento do direito, previsibilidade, clareza e generalidade, promoção da igualdade, fortalecimento institucional, limitação do poder Estatal, racionalidade econômica, respeito ao direito e responsabilidade pessoal.

No que toca à promoção da igualdade, Marinoni destaca que:

“A eficácia obrigatória não é uma exigência abstrata, desejada por uma determinada forma de compreender o direito, mas uma decorrência da igualdade. O mesmo fundamento que levou à formulação da frase de que “todos são iguais perante a lei” está implícito na necessidade de se ter as decisões das Cortes Supremas como precedentes obrigatórios. Trata-se de algo imprescindível num país que realmente acredita – e se cansou de demagogicamente proclamar – que todos devem ser igualmente tratados perante o direito.”[vi]

Quanto ao respeito ao direito, Marinoni alerta que:

Decisões contraditórias destituem o direito de autoridade, ou seja, negam ao direito a sua força intrínseca de estimular e evitar condutas e, dessa forma, a sua capacidade de fazer com que os homens se sintam responsáveis. Não há dúvida de que eventual sanção, quando aplicada sem qualquer compromisso com a unidade do direito, soa mais como arbítrio do que como responsabilização, mas a circunstância mais grave, quando se tem em conta a responsabilidade enquanto ética de comportamento, é a de que ninguém pode orientar a sua vida com base num direito que não pode ser identificado ou é aplicado de modo contraditório pelos tribunais”.[vii]

O sistema de precedentes vinculantes revela-se essencial para a uniformização do direito, além de servir como instrumento para efetivar os princípios constitucionais da isonomia, eficiência e duração razoável do processo, entre outros.

4.      Relativização da Coisa Julgada: Coisa Julgada Inconstitucional

O Código de Processo Civil prevê mecanismos para relativizar a imutabilidade da coisa julgada, nos casos em que a execução do título se baseia em lei, ato normativo ou interpretação posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo após o trânsito em julgado da sentença exequenda.

É essa a previsão dos artigos 525, § 12 e 353, § 5º, ambos do CPC/15, que, segundo Amorim (2019, p. 882), permitem à parte executada alegar, no curso do cumprimento de sentença, alegar a inexigibilidade do título sob o fundamento de que o título executado está fundamentado em lei ou ato no normativo declarados inconstitucionais pelo STF.

O referido autor explica que, ainda que a sentença exequenda esteja sob o “manto” da coisa julgada, no curso de sua execução definitiva, o executado poderá “se livrar da execução, afastando a imutabilidade da sentença, característica típica da coisa julgada” (2019, p. 882).

Marinoni, em voz contrária, defende que a norma do § 15º do art. 525 do CPC é claramente inconstitucional, ao fundamento de que “a admissibilidade de alegação de decisão de inconstitucionalidade posterior à formação da coisa julgada é uma negação da sua intangibilidade, pouco importando se a alegação é admitida para inibir a execução ou para fundamentar a ação rescisória.”[viii].

O autor defende que a coisa julgada, que ostenta status de norma fundamental, claramente assegurada no art. 5.º, XXXVI, da CF, não pode ser relativizada por nenhuma lei, não sendo dado conferir “ao juiz poder para desconsiderar a coisa julgada material, até porque nenhum juiz pode negar decisão do Poder Judiciário”. Marinoni atesta que “a intangibilidade da coisa julgada material é essencial para a tutela da segurança jurídica, sem a qual não há Estado de Direito, ou melhor, sem a qual nenhuma pessoa pode se desenvolver e a economia não pode frutificar”[ix].

Essa, contudo, não é a posição do Supremo Tribunal Federal. A Corte Constitucional, em recente decisão, ao julgamento de questão de ordem na Ação Rescisória 2876 (AR), assentou a constitucionalidade do § 15 do art. 525 e do § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil, conferindo-lhes interpretação conforme a Constituição, e declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535, fixando a seguinte tese:

“1. Em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. 2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. 3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (Código de Processo Civil, arts. 525, caput, e 535, caput)”.[x]

Portanto, não obstante as ressalvas apontadas por parte da doutrina, admite-se a flexibilização da coisa julgada para afastar o cumprimento de decisão baseada em lei ou norma posteriormente declarada inconstitucional pelo STF, mesmo que proferida após o trânsito em julgado do título exequendo.

5.      Conclusão

A análise empreendida demonstra que a coisa julgada, embora essencial para a estabilidade das relações jurídicas e para a consolidação da segurança jurídica, não pode ser compreendida de forma absoluta em um Estado Democrático de Direito que se fundamenta na supremacia da Constituição. A evolução do sistema jurídico brasileiro, notadamente após a Emenda Constitucional nº 45/2004 e a instituição do Código de Processo Civil de 2015, conduziu à necessária harmonização entre o princípio da imutabilidade das decisões judiciais e o dever do Poder Judiciário de assegurar a conformidade constitucional do ordenamento.

O fortalecimento do sistema de precedentes vinculantes introduziu uma nova racionalidade no processo civil, na qual a uniformização das decisões e a previsibilidade das interpretações constitucionais passam a prevalecer sobre a rigidez da coisa julgada formal e material. O Supremo Tribunal Federal, ao afirmar a constitucionalidade dos arts. 525, §15, e 535, §8º, do CPC, reconheceu que a proteção da coisa julgada não pode servir de escudo à manutenção de decisões manifestamente contrárias à Constituição, sob pena de se perpetuar a inconstitucionalidade e se violar o próprio princípio da segurança jurídica que o instituto busca resguardar.

Assim, a chamada “coisa julgada inconstitucional” representa a superação do dogma da intangibilidade absoluta da coisa julgada e reafirma o compromisso do Judiciário com a supremacia da Constituição e a efetividade dos direitos fundamentais. A relativização da coisa julgada, quando pautada em fundamentos constitucionais e submetida a critérios de ponderação definidos pelo STF, não fragiliza o sistema jurídico, mas o aprimora, conferindo-lhe coerência, integridade e legitimidade democrática.

Em suma, o equilíbrio entre estabilidade e justiça material deve orientar a aplicação contemporânea da coisa julgada. O direito não pode ser um instrumento de perpetuação de erros constitucionais, mas, sim, um mecanismo dinâmico de correção e aperfeiçoamento contínuo da ordem jurídica, em que a Constituição permanece como o vértice e limite de toda atuação jurisdicional.


[i] Teoria Geral do Processo. Cândido Rangel Dinamarco, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes. – 35 ed., rev. e atual. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024.

[ii] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Parâmetros para nortear as decisões judiciais a respeito de políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/d871c387c0f0eac2c553c7c4d59796f9>. Acesso em: 25/08/2025 

[iii]  Teoria Geral do Processo. Cândido Rangel Dinamarco, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró e Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes. – 35 ed., rev. e atual. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024. (p. 470)

[iv] Neves, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil – Volume único – 12. ed. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.

[v] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 26 de agosto de 2025.

[vi] Marinoni, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes [livro eletrônico] / Luiz Guilherme Marinoni. — 6. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2025.

[vii] Marinoni, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes [livro eletrônico] / Luiz Guilherme Marinoni. — 6. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2025.

[viii] Marinoni, L. G. Coisa julgada inconstitucional [livro eletrônico]: rescindibilidade vs. Eficácia temporal / L. G. Marinoni. — 5. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2024.

[ix] Marinoni, L. G. Coisa julgada inconstitucional [livro eletrônico]: rescindibilidade vs. Eficácia temporal / L. G. Marinoni. — 5. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2024.

[x] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação rescisória (AR) 2876/ES. Relator: Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 24 de e abril de 2025. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6220273>. Acesso em: 27 de agosto de 2025.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Vitória Maria Carvalho. Coisa julgada inconstitucional e o sistema de precedentes vinculantes. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17314954, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 10/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/coisa-julgada-inconstitucional-e-o-sistema-de-precedentes-vinculantes/. Acesso em: 28/10/2025.