A tutela coletiva no estatuto da igualdade racial: avanços e desafios
Autores
Resumo
O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) é um marco na legislação brasileira que visa combater a discriminação racial e promover a igualdade para a população negra. Este artigo analisa os fundamentos da igualdade racial e os instrumentos de tutela coletiva previstos na lei, destacando a importância de ações coordenadas para enfrentar desigualdades históricas. O texto também discute o contexto histórico que levou à necessidade de tal legislação, abordando as barreiras enfrentadas por comunidades negras e os avanços conquistados, bem como os desafios e perspectivas para a efetivação dos direitos garantidos pelo Estatuto.
Palavras-ChaveIgualdade Racial. Tutela Coletiva. Discriminação Racial
Abstract
The Racial Equality Statute (Law No. 12,288/2010) is a milestone in Brazilian legislation aimed at combating racial discrimination and promoting equality for the Black population. This article analyzes the foundations of racial equality and the collective protection instruments provided in the law, highlighting the importance of coordinated actions to address historical inequalities. The text also discusses the historical context that led to the need for such legislation, addressing the barriers faced by Black communities and the advances made, as well as the challenges and prospects for the realization of the rights guaranteed by the Statute.
KeywordsRacial Equality. Collective Protection. Racial Discrimination
1. INTRODUÇÃO
O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) representa um marco importante na legislação brasileira ao buscar combater a discriminação racial e promover a igualdade. No contexto da tutela coletiva, o Estatuto estabelece dispositivos que visam proteger direitos fundamentais de grupos étnicos e raciais, reconhecendo a necessidade de ações coletivas para enfrentar desigualdades historicamente enraizadas.
Tal legislação tem o propósito de garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Ademais, a lei traçou distinções entre os conceitos de discriminação racial, desigualdade racial, desigualdade de gênero e raça, bem como definiu a população negra como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas ou adotam autodefinição analógica (art. 3º, parágrafo único). Dessa forma, este diploma normativo elegeu como critério a autodeclaração racial.
O que se vê no Estatuto de Igualdade Racial são instrumentos de tutela coletiva dos direitos afetos à igualdade racial, que deve ser manejada pelos legitimados para atuar através das mais diversas ações coletivas.
Desse modo, analisar-se-á nesse artigo os fundamentos da igualdade racial, bem como os instrumentos de tutela coletiva trazidos no âmbito da Lei 12.288/2010.
2. O CONTEXTO HISTÓRICO E A NECESSIDADE DA TUTELA COLETIVA
O Brasil possui uma história marcada pela escravidão e profunda desigualdade racial, o que impactou significativamente a estrutura social e econômica do país.
A abolição da escravatura, em 1888, não foi suficiente para garantir efetiva igualdade e inclusão dos afrodescendentes na sociedade brasileira, já que mesmo após a abolição, as comunidades negras enfrentaram barreiras sociais, econômicas e educacionais que limitavam suas oportunidades.
Nos anos 70 e 80, ganhou força no Brasil o movimento negro, que buscava conscientizar a sociedade sobre a necessidade de combater o racismo estrutural e reivindicar direitos. Esse movimento contribuiu para a criação de políticas afirmativas e medidas de reparação, reconhecendo a necessidade de ações coletivas para superar as desigualdades históricas.
A Constituição de 1988 representou um avanço ao reconhecer a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de raça ou cor. No entanto, o reconhecimento formal não foi suficiente para eliminar as disparidades sociais existentes. A luta por igualdade racial ganhou novo fôlego com a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010.
Nesse contexto, o Estatuto da Igualdade Racial surge como resposta a séculos de discriminação e marginalização. Ao estabelecer a tutela coletiva, representa um esforço legislativo para corrigir desigualdades estruturais. Ele reconhece que a promoção da igualdade racial vai além de garantir direitos individuais, exigindo ações coordenadas para transformar estruturas discriminatórias presentes na sociedade, buscando garantir não apenas a igualdade formal, mas também a igualdade de fato, reconhecendo a dimensão coletiva dos desafios enfrentados por esses grupos.
A tutela coletiva no Estatuto visa enfrentar não apenas casos individuais de discriminação, mas também as estruturas sistêmicas que perpetuam a desigualdade racial. Essa abordagem reconhece que a discriminação é muitas vezes enraizada em padrões culturais e institucionais, exigindo ações abrangentes para desmantelar tais estruturas.
Em síntese, o contexto histórico que antecedeu o Estatuto da Igualdade Racial evidencia a necessidade urgente de ações coletivas para superar as desigualdades raciais no Brasil. A tutela coletiva, como parte integrante dessa legislação, representa um compromisso em transformar estruturas discriminatórias e construir uma sociedade mais justa e equitativa para todas as suas comunidades.
3. TUTELA COLETIVA NO ESTATUTO: INSTRUMENTOS E DISPOSITIVOS LEGAIS
A tutela coletiva refere-se à proteção de interesses e direitos que pertencem a um grupo ou coletividade, em contraposição à tutela individual que visa a proteger direitos de uma única pessoa. É comumente exercida por meio de ações coletivas, em que um representante legal atua em nome do grupo afetado. Alguns instrumentos legais que permitem a tutela coletiva incluem ações civis públicas, ações populares, ações coletivas de consumo, entre outras.
Essa abordagem tem o objetivo de garantir uma efetiva proteção dos direitos coletivos, evitando que ações ou omissões prejudiciais a um grupo numeroso de pessoas passem impunes. A tutela coletiva visa promover a justiça social, prevenir a perpetuação de injustiças sistêmicas e assegurar a reparação adequada quando ocorrem violações a interesses coletivos.
No âmbito do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) reflete o reconhecimento da dimensão sistêmica das desigualdades raciais no Brasil e busca implementar ações coordenadas para enfrentar tais desafios. Diversos instrumentos e dispositivos legais no Estatuto são direcionados à tutela coletiva. Destacam-se:
Políticas de Ação Afirmativa:
Instrumento de natureza política, trata-se de políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País (artigo 4º, parágrafo único da Lei nº 12.288/2010).
Uma modalidade de ação afirmativa é o estabelecimento de cotas ou reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados. No julgamento da ADPF nº 186, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a validade das ações afirmativas étnico-raciais para ingresso em universidades públicas. Da mesma forma, no julgamento da ADC nº 41 foi considerada constitucional a reserva de vagas para negras e negros em concursos públicos.
Nesse sentido:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da Republica, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. […] V – Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI – Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. (STF – ADPF: 186 DF, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 26/04/2012, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 20/10/2014)
Direito Constitucional. Ação Direta de Constitucionalidade. Reserva de vagas para negros em concursos públicos. Constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014. Procedência do pedido […]Tese de julgamento: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
(STF – ADC: 41 DF 0000833-70.2016.1.00.0000, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 08/06/2017, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 17/08/2017)
Fomento à Organização e Participação Social:
Estimula a criação e fortalecimento de organizações que representem os interesses das comunidades negras. Esse incentivo visa não apenas à representação efetiva, mas também à participação ativa dessas comunidades na elaboração e implementação de políticas públicas.
Combate à Discriminação Racial:
Estabelece mecanismos para coibir práticas discriminatórias, incluindo inclui a possibilidade de ações judiciais para reparação de danos coletivos em casos de discriminação racial. Essas ações visam não só responsabilizar individualmente os infratores, mas também combater estruturas discriminatórias mais amplas.
Como exemplo de combate à discriminação racial, podemos mencionar a inserção do crime autônomo de injúria racial no art. 2º-A da Lei nº 7.716/89, inserido pela Lei nº 14.532/2023.
Antes dessa previsão legal, o STF já havia decidido, no âmbito do HC 154248/DF, que a prática de injuria racial, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, trazia em seu bojo o emprego de elementos associados aos que se definem como raça, cor, etnia, religião ou origem para se ofender ou insultar alguém, portanto, não se poderia excluir o crime de injúria racial do mandado constitucional de criminalização previsto no art. 5º, XLII, restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade. No mesmo sentido, também já era o entendimento do STJ (AgRg no REsp 1849696/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/06/2020).
Educação para a Igualdade:
No âmbito educacional, o Estatuto destaca a importância da promoção da cultura afro-brasileira e indígena, bem como o combate ao racismo nas instituições de ensino. Essa abordagem visa não apenas à tutela coletiva direta, mas à transformação de mentalidades e à construção de uma sociedade mais inclusiva.
Criação de Conselhos de Promoção da Igualdade Racial:
A criação de conselhos específicos para a promoção da igualdade racial, com participação de representantes da sociedade civil e do poder público têm o papel de formular políticas e fiscalizar a implementação de ações voltadas à igualdade racial.
Direito à Memória e à Verdade:
O Estatuto reconhece o direito à memória e à verdade, destacando a importância de preservar a história e a cultura afro-brasileira, assim como de esclarecer fatos relacionados a violações de direitos humanos ocorridas no contexto da discriminação racial.
A tutela coletiva no Estatuto da Igualdade Racial, por meio desses instrumentos e dispositivos, busca não apenas reparar danos passados, mas transformar estruturas discriminatórias, promovendo uma sociedade mais justa e equitativa para todas as suas comunidades.
4. DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A TUTELA COLETIVA
A tutela coletiva no Estatuto da Igualdade Racial enfrenta diversos desafios, mas também apresenta perspectivas significativas para a promoção da igualdade racial no Brasil.
Como desafios podemos citar as resistências culturais arraigadas e estruturas institucionais que perpetuam a discriminação racial. Devendo-se promover a conscientização e educação sobre a importância da tutela coletiva e combate ao racismo, a fim de mudar mentalidades e superar preconceitos enraizados.
É necessário, ainda, garantir a efetividade das políticas de ação afirmativa, superando obstáculos como resistência social, judicialização e desafios na implementação e assegurar uma fiscalização eficaz das políticas e ações previstas no Estatuto, bem como monitorar a implementação dessas medidas ao longo do tempo. Além disso, deve-se romper as barreiras de acesso à justiça para comunidades afrodescendentes, garantindo que tenham recursos adequados para pleitear seus direitos.
Por outro lado, têm-se como perspectivas o fortalecimento de organizações que representem os interesses das comunidades negras, capacitando-as para atuarem ativamente na promoção da igualdade racial e o incentivo à participação ativa das comunidades afrodescendentes na elaboração e implementação de políticas públicas, proporcionando uma voz mais significativa nas decisões que as impactam.
Deve-se também investir em campanhas de conscientização contínua, abordando a importância da igualdade racial e combatendo estereótipos e preconceitos, promovendo uma maior cooperação entre instituições governamentais, organizações da sociedade civil e setor privado para garantir uma abordagem holística na promoção da igualdade racial.
A capacitação jurídica de advogados e membros de organizações que atuam na defesa dos direitos raciais também é fundamental, visando uma atuação mais eficaz nos casos de tutela coletiva.
A efetividade da tutela coletiva no Estatuto da Igualdade Racial dependerá do enfrentamento destes desafios, ao mesmo tempo em que se exploram as perspectivas que podem conduzir a avanços significativos na promoção da igualdade racial no Brasil.
5. CONCLUSÃO
O Estatuto da Igualdade Racial representa um passo significativo na promoção da justiça social e na erradicação das desigualdades raciais no Brasil. Ao reconhecer a dimensão coletiva das violações de direitos, a tutela coletiva emerge como um pilar fundamental para transformar estruturas discriminatórias e construir uma sociedade mais equitativa.
Contudo, apesar dos avanços proporcionados pelo Estatuto, desafios persistem. A efetividade da tutela coletiva depende da implementação consistente das políticas previstas e do combate contínuo à discriminação racial. Além disso, é necessário promover uma conscientização mais ampla sobre a importância da igualdade racial, superando preconceitos arraigados na sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
LIMA, Catarine Sá Santos e. A tutela coletiva no estatuto da igualdade racial: avanços e desafios. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-tutela-coletiva-no-estatuto-da-igualdade-racial-avancos-e-desafios/. Acesso em: 24/04/2025.