A instrumentalidade das formas e a primazia do conhecimento do mérito no processo coletivo
Autores
Resumo
O presente artigo analisa a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas no processo coletivo, destacando sua relação com a primazia do conhecimento do mérito nas demandas coletivas. A partir de uma abordagem bibliográfica, discute-se a importância da flexibilização procedimental diante da relevância social dos direitos transindividuais tutelados, como forma de efetivar o acesso à justiça e garantir a função transformadora da jurisdição. Argumenta-se que a excessiva valorização de formalidades pode comprometer a efetividade do processo coletivo, razão pela qual se defende a superação de obstáculos meramente técnicos, desde que preservados o contraditório, a ampla defesa e a isonomia processual. A análise contempla ainda os efeitos práticos do princípio estudado, como a sucessão processual e a coisa julgada secundum eventum probationis, reforçando a necessidade de uma atuação judicial pautada por critérios axiológicos e voltada ao interesse público.
Palavras-ChaveInstrumentalidade das formas; Processo coletivo; Conhecimento do mérito.
Abstract
This article analyzes the application of the principle of the instrumentalization of procedural forms in collective litigation, highlighting its relationship with the primacy of merit analysis in collective claims. Based on a bibliographical approach, it discusses the importance of procedural flexibility in view of the social relevance of the transindividual rights protected, as a means to ensure access to justice and uphold the transformative role of jurisdiction. It is argued that excessive emphasis on formalities may hinder the effectiveness of collective proceedings, thus justifying the overcoming of merely technical obstacles, provided that adversarial proceedings, ample defense, and procedural equality are preserved. The analysis also addresses the practical effects of the principle under study, such as procedural succession and res judicata secundum eventum probationis, reinforcing the need for judicial conduct guided by axiological criteria and directed toward the public interest.
KeywordsInstrumentality of forms; Collective proceedings; Merits analysis.
1. Introdução
Por meio dos instrumentos do processo coletivo são tutelados os interesses transindividuais, divididos em difusos, coletivos e individuais homogêneos, a fim de preservar o interesse público e garantir o acesso à justiça e a economia processual.
Em função de sua importância, não se justifica a falta de apreciação do mérito da ação coletiva fundamentada somente em rigorismos de ordem formal, tomando-se por base a aplicação do princípio da instrumentalidade das formas.
Os princípios que regem o processo coletivo e as normas que disciplinam a matéria indicam que o aplicador do direito deve se orientar pela primazia do conhecimento do mérito, tendo em vista a natureza e relevância dos bens jurídicos envolvidos e a dimensão social da demanda coletiva.
2. Problemática
A definição teleológica do processo e a visão instrumental de sua utilização são essenciais para a análise da antinomia entre o escopo social do processo e o rigor formal das normas processuais, ainda mais quando se está diante de direitos coletivos, assim entendidos em sentido amplo.
Assim, a produção de resultados práticos no campo do direito coletivo também possui relação com o sistema processual e sua aplicação, pois há uma tendência cada vez mais atual de “desmistificação das regras do processo e de suas formas e a correspondente otimização do sistema, para a busca da alcandorada efetividade do processo”.[1]
A partir da pesquisa bibliográfica realizada, constatou-se a escassez de doutrina sobre o Direito Processual Coletivo em relação a outros ramos do direito, não obstante a importância do assunto nos dias atuais, tendo em vista a tendência crescente e global de utilização do processo coletivo.
Levando em consideração as características da tutela coletiva e as normas que disciplinam a matéria, buscou-se analisar, de forma sintética, a aplicação da instrumentalidade das formas no processo coletivo, notadamente quanto à relação com o princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito e seus efeitos práticos na efetivação da tutela pleiteada pelos legitimados.
3. Fases metodológicas do processo e instrumentalidade das formas
Entre as três ondas renovatórias do acesso à justiça propostas por CAPPELLETTI e GARTH, a segunda onda, nas décadas de 60 e 70, representou um considerável progresso para a proteção dos interesses coletivos, pois os litígios, apesar de ainda se caracterizarem pela sua concepção individualista, passaram a ser encarados, também, sob o ponto de vista da tutela coletiva.
De inegável importância, o estudo feito pelos mencionados autores foi precursor ao situar o acesso à justiça como diretamente ligado à justiça social:
“De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.[2]”
A evolução metodológica do processo se inicia com a passagem da denominada fase sincrética – onde era visto como apêndice do direito material – para a fase autonomista, caracterizada pela distinção entre relação jurídica processual e substancial, bem como pela autonomia científica. Entretanto, não obstante os evidentes avanços alcançados pela técnica processual desenvolvida nesse período, Grinover, Dinamarco e Cintra ressaltam:
“Faltou, na segunda fase, uma postura crítica. O sistema processual era estudado mediante uma visão puramente introspectiva, no exame de seus institutos, de suas categorias e conceitos fundamentais; e visto o processo costumeiramente como mero instrumento técnico predisposto à realização da ordem jurídica material, sem o reconhecimento de suas conotações deontológicas e sem a análise dos seus resultados na vida das pessoas ou preocupação pela justiça que ele fosse capaz de fazer.[3]”
Surge, então, a fase instrumental, em contraponto à noção do processo como um fim em si mesmo, uma vez que o processo deve ser visto principalmente como um meio de efetivação dos direitos, e o seu resultado não pode ser comprometido em razão de formalidades desnecessárias.
Sobre o tema, leciona Humberto Theodoro Jr.:
“Nas últimas décadas o estudo do processo civil desviou nitidamente sua atenção para os resultados a serem concretamente alcançados pela prestação jurisdicional. Muito mais do que com os clássicos conceitos tidos como fundamentais ao direito processual, a doutrina tem se ocupado com remédios e medidas que possam redundar em melhoria dos serviços forenses. Ideias como a de instrumentalidade e efetividade passaram a dar a tônica do processo contemporâneo.
Fala-se mesmo de ‘garantia de um processo justo’, mais do que de um ‘processo legal’, colocando no primeiro plano idéias éticas em lugar do estudo sistemático apenas das formas e solenidades do procedimento.[4]”
Acerca da natureza deontológica que passa a informar o processo, merecem transcrição as preciosas lições de Cândido Rangel Dinamarco:
“A negação da natureza e objetivo puramente técnicos do sistema processual é ao mesmo tempo afirmação de sua permeabilidade aos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material (os quais buscam efetividade através dele) e reconhecimento de sua inserção no universo axiológico da sociedade a que se destina.[5]”
Provém daí o princípio da instrumentalidade das formas, consistente na tese de que as formas dos atos processuais apenas são absolutamente necessárias se imprescindíveis para a obtenção da finalidade perseguida no processo[6], conforme ensinam Grinover, Dinamarco e Cintra:
“Os sucessos do processo não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é também um instrumento (à aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta importância, a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou absolvido um culpado; ou a ponto de ser julgada procedente uma pretensão, no juízo cível, quando a razão estiver com o demandado).
Uma projeção desse aspecto negativo da instrumentalidade do processo é o princípio da instrumentalidade das formas, segundo o qual as exigências formais do processo só merecem ser cumpridas à risca, sob pena de invalidade dos atos, na medida em que isso seja indispensável para a consecução dos objetivos desejados.[7]” (grifos acrescidos)
No mesmo sentido, expõe Ardenghy dos Santos:
“Os vícios maculam os atos da pessoa, inclusive aqueles tomados pelo Poder Judiciário, contaminam os quidadetes e corroem o devido processo legal.
Gradualmente são vistos pela questão saneadora de banimento sobre seus efeitos, pois mesmo irregulares ao modelo legal, eles podem alcançar os seus objetivos (princípio da instrumentalidade) e ainda aproveitar àqueles que não foram contaminados (Princípio de que ‘não há nulidade sem prejuízo’ – pas de nullité sans grief).[8]”
Portanto, verificada a ocorrência de vícios sanáveis, que possam ser supridos ou convalidados, a solução está na instrumentalidade das formas, adequando-se o interesse das partes ao caráter público do processo, sendo tal opção imperativa, principalmente quando se trata de tutela coletiva de direitos.
4. Direitos transindividuais e o processo coletivo
Situados na esfera entre o público e privado, os direitos e interesses transindividuais são abarcados pelo interesse público primário, caracterizado pelo interesse da sociedade ou da coletividade como um todo, em respeito ao bem geral, ao passo que os interesses secundários correspondem à esfera da Administração Pública, considerada como pessoa jurídica de direito público.
Para MANCUSO, “um interesse é metaindividual quando, além de passar o círculo de atribuidade individual, corresponde à síntese dos valores predominantes num determinado segmento ou categoria social”[9].
Ao longo do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor estão previstas as respectivas definições da subdivisão entre interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, de acordo com o grau de coletivização, nos seguintes termos:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
Com relação aos direitos difusos, a questão da indeterminação dos sujeitos representa a impossibilidade de individualizar cada um dos titulares, por alcançar uma quantidade indeterminada ou dificilmente determinada de indivíduos, sem a existência de vínculo comum de natureza jurídica.
Nesse sentido, leciona VIGLIAR:
“Difusos são os interesses em que os titulares não são passíveis de ser determinados ou determináveis e se encontram ligados por meras circunstâncias de fato, ainda que não muito precisas. São interesses indivisíveis e, embora comuns a uma categoria mais ou menos abrangente de pessoas, não se pode afirmar com precisão, a quem pertençam, tampouco a parcela destinada a cada um dos integrantes desse grupo indeterminado.[10]”
Acerca da diferença existente entre os direitos difusos e coletivos, MARINONI afirma que aqueles pertencem, naturalmente, a pessoas indeterminadas, dissolvidas na sociedade, e ainda esclarece que:
“Ao contrário do que ocorre com os direitos difusos, os coletivos permitem que se identifique, em um conjunto de pessoas, um núcleo determinado de sujeitos como ‘titular’. Não interessa se esse grupo é ou não organizado. O que importa realmente é a existência de um agrupamento identificável, como titular do interesse (por exemplo, os consumidores, os aposentados, os contribuintes etc.), não sendo necessário que todos estejam inseridos em uma associação, sindicato ou outro órgão representativo. Esse órgão será efetivamente legitimado a propor a ação, mas os efeitos da tutela abrangerão a todos os que pertençam ao grupo, independentemente de estarem ou não vinculados ao organismo.
São exemplos de direitos difusos: o direito ao meio ambiente, o direito à saúde pública ou o direito à cultura. Por outro lado, podem ser considerados como direitos coletivos, porque indivisíveis, mas pertencentes a um grupo determinado: o direito de certa classe de trabalhadores a um ambiente sadio de trabalho, o direito dos índios ao seu território, ou o direito dos consumidores à informação adequada.[11]”
Quanto aos direitos individuais homogêneos, importante mencionar que a respectiva ação não significa simplesmente a soma de ações individuais, conforme ensina ARAÚJO FILHO:
“Caracteriza-se a ação coletiva por interesses individuais homogêneos exatamente porque a pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento de uma tese jurídica geral, referente a determinados fatos, que pode aproveitar a muitas pessoas. O que é completamente diferente de apresentarem-se inúmeras pretensões singularizadas, especificamente verificadas em relação a cada um dos respectivos titulares do direito.[12]”
Por fim, vale lembrar que, na sistematização doutrinária adotada por Barbosa Moreira, “haveria os direitos/interesses essencialmente coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito e os direitos acidentalmente coletivos (individuais homogêneos)[13]”, sendo exemplos destes o direito dos “contribuintes de impugnar a exação tributária tida como inconstitucional, ou o direito dos consumidores a serem indenizados da quantidade a menor de produto existente na embalagem[14]”.
Feitas tais considerações, registre-se que o surgimento dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos gerou a necessidade de remodelação do processo, pois é primordial que este seja apropriado para a proteção do direito material em questão, dada sua natureza transindividual, ou seja, acima do interesse estritamente privado, conforme sustentam Marinoni e Arenhart:
“É preciso, pois, para bem operar com as ações coletivas, despir-se de velhos preconceitos (ou ‘pré-conceitos’), evitando recorrer a raciocínios aplicáveis apenas à ‘tutela individual’ para solucionar questões atinentes à ‘tutela coletiva’, que não é, e não pode ser, pensada sob a perspectiva da teoria da ‘ação individual’. Os institutos que presidem essa ação (ao menos em sua maioria) são incompatíveis e inaplicáveis à tutela coletiva, simplesmente porque foram concebidas para operar em outro ambiente.[15]”
Ademais, segundo Hugo Nigro Mazzilli:
“Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas, porém, o fato de serem compartilhados por diversos titulares reunidos pela mesma relação jurídica ou fática, mas, mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um processo coletivo, que não apenas deve ser apto a evitar decisões contraditórias como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado.[16]”
(grifos acrescidos)
Ressalte-se que, de acordo com GREGÓRIO Assagra de Almeida, as diretrizes principiológicas que informam o processo coletivo possuem dimensão constitucional:
“O Direito Processual Coletivo tem natureza processual constitucional e social, portanto, a ele são aplicáveis todos os princípios e as regras interpretativas do direito constitucional e social, especialmente à luz dos direitos e das garantias constitucionais fundamentais, positivados expressa ou implicitamente no país.[17]”
Assim, há um leque de princípios que norteiam o processo coletivo, em virtude da exigência de se conceber e garantir o acesso a uma ordem jurídica justa[18], garantidora de direitos, o que, vale frisar, deve ocorrer no sistema jurídico como um todo, mas se dirige de forma especial ao processo coletivo.
No ordenamento jurídico brasileiro, dada a ausência de codificação, criou-se a concepção do microssistema processual coletivo, formado pelo Código de Defesa do Consumidor, Lei da Ação Civil Pública, Lei da Ação Popular etc., sendo aplicado o Código de Processo Civil somente se não houver solução legal nas normas disponíveis no referido microssistema.
Nessa ótica, a tutela dos direitos metaindividuais é dotada de características inerentes à sua abrangência plural, de tal modo que a efetividade do processo coletivo também está ligada à construção e adequação de um regime diferenciado, num verdadeiro devido processo legal coletivo.[19]
5. O princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo coletivo
Conforme afirmam Didier JR. E Zaneti JR., “uma decorrência particular do princípio da instrumentalidade das formas é a valorização do conhecimento no mérito nos processos coletivos.[20]”
Nesse sentido, discorre MANCUSO sobre a relação entre os princípios da instrumentalidade das formas e da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo, ressaltando sua importância, por se situar hierarquicamente acima do procedimento:
“Cândido Rangel Dinamarco, discorrendo sobre a instrumentalidade, como ideia-força para se alcançar a efetividade da prestação jurisdicional, aponta quatro escopos (admissão em juízo, o modo-de-ser do processo, justiça das decisões e efetividade das decisões). Um desses escopos – o modo de ser do processo – corresponde ao rito ou procedimento – ‘é o amálgama que funciona como fator de coesão do sistema, cooperando na condução do processo sobre os trilhos dessa conveniente participação do juiz e das partes (aqui incluindo o Ministério Público). Compreende-se que seja relativo o valor do procedimento em face desses objetivos, sendo vital a interpretação inteligente dos princípios e a sua observância racional em cada caso.[21]’”
Denominado de interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo coletivo ou primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo, tal princípio, com base na doutrina de ALMEIDA, resulta do compromisso exercido pelo Judiciário como órgão do Estado Democrático de Direito transformador da realidade social e guardião dos direitos e garantias constitucionais fundamentais.
E o autor acrescenta:
“Com base neste princípio, o Juiz deve flexibilizar os requisitos de admissibilidade processual para enfrentar o mérito do processo coletivo e legitimar a função social da jurisdição. O interesse no caso não é em decidir a favor de quaisquer das partes interessadas, mas o interesse em enfrentar o mérito das demandas coletivas. Com isso, não há qualquer risco ao princípio da imparcialidade como garantia constitucional.[22]”
Pode-se afirmar que a primazia do conhecimento do mérito está relacionada a outros princípios regentes do processo coletivo, tais como a máxima efetividade, o máximo benefício e a não taxatividade, por possuírem o mesmo fundamento, de garantir o acesso à justiça e assegurar o interesse social.
Isso porque o bem jurídico tutelado pelas ações coletivas, de peculiar relevância social, não somente ratifica o caráter público próprio do processo como também evidencia a noção de processo coletivo como espécie de “processo de interesse público” (public law litigation).[23]
Assim, tal princípio se relaciona com o acesso à justiça, cabendo ao Estado-juiz, como pacificador dos interesses democráticos, evitar ao máximo o acolhimento de questões processuais para afastar o mérito da demanda coletiva, quando cabíveis apenas no âmbito do direito processual individual.
6. Efeitos práticos e ressalvas sobre a aplicação do princípio
A possível adequação procedimental, a ser procedida pelo magistrado no curso do processo coletivo, diz respeito à flexibilização de requisitos de admissibilidade processual, aptos a ocasionarem a extinção do processo sem resolução de mérito.
É o caso, por exemplo, do nome atribuído à ação, que embora equivocado, é incapaz, por si só, de impedir a apreciação da matéria, pois é evidente, como advertem Didier JR. E Zaneti JR., que “o nome da ação pouco importa. Processo não é mera técnica, mas técnica imbuída de valores[24]”.
Além disso, a própria previsão legal da coisa julgada secundum eventum probationis[25], que garante a possibilidade de nova propositura da ação coletiva, desde que o julgamento anterior tenha sido com base na insuficiência de provas, é um aspecto interessante de efeito prático do princípio, até porque o próprio legislador garantiu o enfrentamento do mérito do processo coletivo.
O mesmo ocorre com relação à questão da legitimidade ad causam, uma vez que o processo coletivo prima pela sucessão processual. Segundo Didier JR. E Zaneti JR., é possível que o juiz pratique uma aplicação analógica dos artigos 5°, § 3°, da Lei da Ação Civil Pública[26] e do art. 9° da Lei da Ação Popular[27], que tratam dos casos de desistência nas respectivas ações[28].
Com isso, é possível que, em se tratando de ilegitimidade ativa, deve-se evitar a extinção do processo, assumindo a titularidade o Ministério Público ou outro legitimado, caso o juiz verifique, em nossa opinião, que a matéria em discussão deva ser enfrentada, por sua relevância, sem que para isso necessite fazer um juízo de valor quanto ao resultado final da demanda.
No que concerne à prática de atos processuais durante a marcha processual, como anteriormente ressaltado, cabe ao julgador preservar o caráter instrumental do processo, com o fim de buscar sempre a solução do mérito da lide, evitando o apego à forma, conforme seu senso de justiça.
Sobre a valoração que deve imperar na aplicação da lei pelo magistrado, são importantes as explicações de Dinamarco:
“Mesmo não sendo o juiz equiparado ao legislador, o seu momento de decisão é um momento valorativo e, por isso, é preciso que ele valore situações e fatos trazidos a julgamento de acordo com os reais sentimentos de justiça correntes na sociedade de que faz parte e dos quais ele é legítimo canal de comunicação com as situações concretas deduzidas em juízo. Ele tem na lei o seu limite, não competindo ao Poder Judiciário impor os seus próprios critérios de justiça ou de quidade, mas esses limites têm valor relativo, a saber: sempre que os textos comportem mais de uma interpretação razoável, é dever do juiz optar pela que melhor satisfaça ao sentimento social de justiça, do qual é portador (ainda que as palavras da lei ou a mens legislatoris possam insinuar solução diferente). Ele há de interpretar a prova e os fatos, também, por esse mesmo critério.[29]”
Por outro lado, em se tratando de prejudiciais ou quaisquer hipóteses que, de fato, sejam suficientes para impedir a análise do mérito, não há que se falar na primazia do seu conhecimento, como na verificação da ocorrência de prescrição ou decadência, ou nulidades absolutas, que contrariem o interesse público característico do processo coletivo.
Vale mencionar, ademais, que a aplicação do princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo coletivo, com base na instrumentalidade das formas, também não ofende o contraditório e a ampla defesa, desde que respeitada a isonomia que ilumina o procedimento, consagrada pela paridade de armas, na linha do que explica Dinamarco:
“O ‘prejuízo’, sem o qual nulidade alguma se pronuncia, é apenas o dano causado aos objetivos da participação contraditória; onde o procedimento ficar maculado mas ilesa saia a garantia de participação, cerceamento algum houve à defesa da parte. Cabe ao juiz até, ao contrário, amoldar os procedimentos segundo as conveniências do caso.[30]”
Levando em consideração esse aspecto, é necessário esclarecer que não se defende a prática de atos processuais desprovidos de qualquer técnica, pois às vezes não há como o juiz, mesmo imbuído de boa vontade, aplicar o princípio da instrumentalidade da formas.
Por conseguinte, o princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do processo coletivo, sem que pratique ofensa a outros princípios regentes do processo.
Também recebem consagração constitucional, entre outros, os princípios do juiz natural, da licitude das provas e da publicidade, os quais são requisitos necessários para constituição e desenvolvimento do processo[31], tendo o julgador a ponderação dos valores a cada caso e efetivar o interesse social.
Assim, é de extrema importância que o aplicador do direito atente ainda para a necessidade de se efetivar os princípios constitucionais fundamentais, que norteiam os direitos e interesses coletivos em geral, tais como a dignidade da pessoa humana e a igualdade material.
Quanto ao tema debatido, não há como deixar de se atentar para o alerta de ASSAGRA DE ALMEIDA:
“Não é razoável que se emperre o sistema do direito processual coletivo brasileiro com a implantação de uma série incontável de requisitos de admissibilidade processual, como ocorre em relação aos Anteprojetos estudados no que tange especialmente ao controle da representatividade adequada. Os juízes e tribunais brasileiros já tem a cultura da negativa de admissibilidade às demandas coletivas, o que imaginar com o que vai acontecer com o advento de um código de direito processual coletivo que arrola um rol enorme de requisitos relativos à admissibilidade processual para o conhecimento do mérito.[32]”
Diante de tal afirmação, feita por um autor que procedeu à análise dos projetos de codificação existentes, percebe-se que, não somente o aplicador do direito, mas também o legislador, deve respeitar os princípios – inclusive de cunho constitucional – que informam o processo coletivo, a fim de resguardar o interesse social e a natureza e relevância dos bens jurídicos envolvidos.
Ademais, em função da inegável importância e do alcance da ação coletiva, não se justifica a falta de apreciação do seu mérito fundamentada somente em rigorismos de ordem formal, tendo em vista, sobretudo, a aplicação da instrumentalidade das formas, como garantia de respeito à celeridade e á economia processual, decorrentes do princípio do acesso à justiça.
7. Conclusão
Dinamarco afirma a existência de um direito ao procedimento, traduzido apenas no sentido de participação em contraditório, com o fim de evitar o cerceamento de defesa, não sendo suficiente, portanto, para restringir a liberdade das formas no processo tampouco para aplicação de formalismo exagerado na condução dos atos processuais[33].
Ao passar por uma evolução metodológica, o processo deixa de ser sincrético para se tornar autônomo. Após, na fase instrumental, restou evidenciada a noção de efetividade do processo, tendo como um dos aspectos a instrumentalidade das formas, caracterizada pela flexibilização das exigências formais, sendo mais importante a finalidade do ato e o bem jurídico tutelado.
Na estrutura do processo coletivo, pela sua natureza de tutela de direitos com relevância social, foram criados institutos processuais e princípios característicos, entre estes o princípio da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo, que decorre da instrumentalidade das formas e se relaciona, por exemplo, com o máximo benefício que o processo coletivo deve alcançar e se fundamenta no acesso à justiça e no amplo interesse público da ação coletiva.
São efeitos práticos do princípio, entre outros, a sucessão processual em razão de ilegitimidade ativa e a previsão da coisa julgada secundum eventum probationis, assim como a relativização das formas, a exemplo do nome atribuído à ação, desde que não haja ofensa à paridade de armas ou prejudiciais que impeçam de maneira absoluta a análise do mérito.
Por fim, com relação à codificação das normas regentes do processo coletivo, vale frisar que “os valores metodológicos da socialidade, eticidade, e operabilidade – próprios do novo Código Civil – devem também estar presentes na proposta de Código de Processos Coletivos justamente porque traduzem as preocupações com a aplicação do ‘bom direito’, para além dos interesses meramente individuais, econômicos ou acadêmicos[34]”.
Assim sendo, a flexibilização dos requisitos formais atinentes à formação do processo coletivo deve ser buscada sendo primordial a aplicação do interesse jurisdicional do conhecimento do mérito, porém cabe somente ao juiz, a cada caso, com base numa análise axiológica e teleológica, verificar o limite de sua aplicação, sempre pautado no interesse social próprio dos direitos transindividuais, que são objeto do processo coletivo.
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[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 12.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1998, p. 12.
[3] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria geral do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 41.
[4] THEODORO JR., Humberto. Curso de direito processual civil. 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. 1, p. 7.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 19.
[6] Há, inclusive, expressa disposição legal nesse sentido no Código de Processo Civil: “Art. 276. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, Ihe alcançar a finalidade.”
[7] Op. cit, p. 39.
[8] SANTOS, Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos. A coisa julgada relativa e os vícios transtemporais. Porto Alegre: Cidadela Editorial, 2004, p. 32.
[9] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 41.
[10] VIGLlAR, José Marcelo Menezes. Ação Civil Pública. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 47.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: Processo de Conhecimento. São Paulo: RT, 2008. v. 2, p. 742.
[12] ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 114.
[13] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 73.
[14] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil: Processo de Conhecimento. São Paulo: RT, 2008. v. 2, p. 742.
[15] Idem, ibidem, p. 738.
[16] MAZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo.19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 46.
[17] ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do direito processual coletivo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5.
[18] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1998, p. 38.
[19] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 112.
[20] Idem, ibidem, p. 118.
[21] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 86.
[22] ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do direito processual coletivo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 64.
[23] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 35.
[24] Op. cit, p. 119.
[25] Assim dispõe o art. 16 da Lei n° 7.347 (Lei da Ação Civil Pública): “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”. Vide também o art. 103 da Lei n° 8.078 (Código de Defesa do Consumidor) e o art. 18 da Lei n° 4.717 (Lei da Ação Popular).
[26] Art. 5° (…) § 3º Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.
[27] Art. 9º Se o autor desistir da ação ou der motiva à absolvição da instância, serão publicados editais nos prazos e condições previstos no art. 7º, inciso II, ficando assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90 (noventa) dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação.
[28] Op. cit, p. 120.
[29] Op. cit, p. 311.
[30] Op. cit, p. 135.
[31] TESHEINER, José Maria Rosa. Pressupostos processuais e nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 26.
[32] ALMEIDA, Gregório Assagra de. Codificação do direito processual coletivo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 156.
[33] Op. cit, p. 316.
[34] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: Processo coletivo. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. v. 4, p. 71.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
COSTA, Iury Gregory Queiroz da. A instrumentalidade das formas e a primazia do conhecimento do mérito no processo coletivo. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.15185010, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 09/04/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-instrumentalidade-das-formas-e-a-primazia-do-conhecimento-do-merito-no-processo-coletivo/. Acesso em: 24/04/2025.