A Guarda Municipal como Órgão de Segurança Pública: Uma Análise da Evolução Jurisprudencial do STF e do STJ
Autores
Resumo
O presente artigo visa a analisar o papel das Guardas Municipais no contexto da segurança pública brasileira, com foco na evolução da linha jurisprudencial estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embora o artigo 144, § 8º, da Constituição Federal de 1988 lhes atribua a função de proteção de bens, serviços e instalações municipais, a Lei Federal n.º 13.022/2014 ampliou suas competências, gerando um intenso debate doutrinário e judicial sobre sua inclusão no rol dos órgãos de segurança pública. A metodologia empregada é a pesquisa documental e bibliográfica, com enfoque na análise qualitativa e histórico-evolutiva de acórdãos dos tribunais superiores que versam sobre a validade da atuação das Guardas Municipais em atividades de polícia ostensiva, busca pessoal e prisão em flagrante. Os resultados encontrados apontam para uma tensão entre o texto constitucional restritivo e a atuação prática das Guardas, revelando uma jurisprudência em evolução que incentiva a pensar na finalidade constitucional precípua e no novo papel dos Municípios na área de segurança pública, servindo como um balizador para definição de limites operacionais.
Palavras-ChaveGuarda Municipal. Segurança pública. Jurisprudência
Abstract
This article analyzes the role of Municipal Guards in the context of Brazilian public security, focusing on the evolution of the jurisprudence established by the Federal Supreme Court (STF) and the Superior Court of Justice (STJ). Although Article 144, §8, of the 1988 Federal Constitution assigns them the function of protecting municipal property, services, and facilities, Federal Law No. 13.022/2014 expanded their powers, generating intense doctrinal and judicial debate regarding their inclusion in the list of public security agencies. The methodology employed is documentary and bibliographical research, with a focus on the qualitative and historical-evolutionary analysis of higher court rulings that address the validity of Municipal Guards' activities in overt policing, personal searches, and arrests. The results found point to a tension between the restrictive constitutional text and the practical actions of the Guards, revealing an evolving jurisprudence that encourages thinking about the primary constitutional purpose and the new role of Municipalities in the area of public security, serving as a guide for defining operational limits.
KeywordsMunicipal Guard. Public security. Jurisprudence
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 trata da segurança pública no art. 144, ao estabelecer que ela é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, além de indicar um rol taxativo de órgãos incumbidos da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Doutrina e jurisprudência tradicionalmente sustentaram a natureza exaustiva desse rol, impedindo que outros entes federativos criassem órgãos distintos para integrar o sistema de segurança pública.
Entretanto, o próprio constituinte originário conferiu aos municípios a possibilidade de “constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações” (§ 8º do art. 144 da CF/88). Embora não figurem formalmente entre os órgãos elencados no caput e incisos do art. 144, as guardas municipais foram incluídas pela Lei nº 13.675/2018 no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), ao lado dos órgãos elencados pela Constituição, dos agentes penitenciários e de “demais integrantes estratégicos e operacionais” (art. 9º da referida lei).
Essa inclusão gerou intenso debate jurídico, sobretudo quanto à sua constitucionalidade e ao alcance das atribuições das guardas municipais. O Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar e reconheceu a validade da norma, admitindo a legitimidade da participação das guardas no Susp. Não obstante, a jurisprudência tradicional do STF — seguida pelo Superior Tribunal de Justiça — sempre negou a natureza de órgão de segurança pública a essas corporações, restringindo sua atuação à proteção do patrimônio municipal, em estrita observância ao comando constitucional originário.
Diante dessa virada jurisprudencial, impõem-se questionamentos relevantes: quais os reflexos práticos da decisão do STF? Quais os limites e possibilidades de atuação das guardas municipais enquanto órgãos de segurança pública? Teriam essas instituições alcançado isonomia com os órgãos enumerados no art. 144 da Constituição?
Este estudo tem por objetivo analisar a evolução jurisprudencial do STF e do STJ sobre o tema, bem como refletir sobre as implicações práticas do reconhecimento das guardas municipais como integrantes do sistema de segurança pública. Para isso, adotou-se pesquisa bibliográfica e documental, com enfoque em acórdãos dos Tribunais Superiores, por meio de uma abordagem qualitativa e histórico-evolutiva.
A pertinência da análise decorre da atualidade das decisões que ensejaram um novo paradigma jurídico, com impactos diretos sobre a segurança pública local, as relações federativas e a delimitação de competências entre os entes da Federação. Supera-se, assim, a visão tradicional restrita à proteção de bens e serviços municipais, inaugurando uma nova perspectiva sobre o papel das guardas municipais no contexto da segurança pública brasileira.
2. Fundamentação teórica e normativa: o marco inicial das guardas municipais
A Constituição Federal atribuiu aos municípios competência para se auto-organizarem por meio de Leis Orgânicas a serem aprovadas pela Câmara Municipal, conforme dispõe no art. 29:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
Para a doutrina, a capacidade de auto-organização envolve a autoadministração e o autogoverno e, segundo leciona Temer (2016, p. 12), a autonomia municipal não surgiu com a Constituição de 1988, que, no entanto, inovou ao conferir aos municípios igualdade de tratamento com os demais entes federados (art. 1º da CF/1988):
Desde já́, reitero que, mesmo antes da Constituição de 1988 – que elevou o Município a figura de partícipe da Federação em igualdade de condições com a União, os Estados e o Distrito Federal –, já́ se sustentava, sob o império da Constituição de 1946 e depois sob a égide da Constituição de 1967, a possibilidade de os Municípios se auto-organizarem. Esse auto-organização significa organização política, ao lado da organização administrativa. Ressalto que diferem a ideia de autonomia política e a de autonomia administrativa. Autonomia política significa a possibilidade de auto-organização, significa a capacidade que o Município tinha e tem para traçar sua organização política, cuidando das funções do prefeito, do vice-prefeito, dos vereadores, ao lado de sua organização administrativa no tocante a seu aparelhamento administrativo, a seus servidores públicos que vigorava debaixo da organização política.
Com efeito, a Constituição de 1988 trouxe modificações significativas quanto ao status dos municípios na nova ordem jurídica ao compreendê-los na estrutura federativa em união indissolúvel com os demais entes (art. 1°) e ao confirmar sua autonomia e capacidade de organização político-administrativa (art. 18).
No entanto, a capacidade de auto-organização não conferiu aos municípios a competência para instituir sua própria polícia. Conforme se nota, o texto constitucional não parece ter reservado aos municípios nenhuma competência em matéria de segurança pública. O art. 30, que trata da competência municipal, ao relacionar as matérias que competem aos municípios, não tratou de segurança pública e o art. 144, ao listar os órgãos responsáveis pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, não incluiu nenhum órgão municipal. Confira a redação do art. 144:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
VI – polícias penais federal, estaduais e distrital.
Entretanto, o constituinte originário reservou aos municípios o direito de instituir guardas municipais para atuar na proteção de seus bens, serviços e instalações. As Guardas Municipais, nesses termos, não exercem atividade policial, pois são instituições civis criadas para zelar pelos bens, serviços e instalações dos municípios. Sua origem, no entanto, remonta ao início do século XIX, com a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil e a criação da “Guarda Real de Polícia”. Posteriormente, em 1831, foi promulgada uma lei autorizando as Províncias a criar um corpo de Guardas Municipais com a finalidade de manter a tranquilidade pública e auxiliar a justiça (Lima, 2015, p. 187). As instituições mais antigas foram criadas em Porto Alegre (1892) e em Recife (1893), embora no plano constitucional a autorização para sua criação só tenha se dado com a promulgação da Constituição de 1988, conforme dispõe o § 8° do art., 144:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
(…)
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Observe que a parte final do dispositivo constitucional delega à lei a tarefa de dispor sobre a instituição das guardas municipais. Nesse sentido, foi promulgada a Lei n° 13.022, de 08 de agosto de 2014, o Estatuto Geral das Guardas Municipais, definindo-as como instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, com a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 2° da Lei n° 13.022/2014). Para garantir o exercício da função preventiva de proteção municipal, a lei elencou os princípios mínimos de atuação a serem seguidos pelas guardas municipais no art. 3°:
Art. 3º São princípios mínimos de atuação das guardas municipais:
I – proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas;
II – preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas;
III – patrulhamento preventivo;
IV – compromisso com a evolução social da comunidade; e
V – uso progressivo da força.
Os arts. 4° e 5° tratam da competência, dividindo-a em geral e específicas. Nesse sentido, “É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município” (art. 4°). Isso significa que o foco principal é a proteção de tudo que pertence à esfera municipal, incluindo bens de uso comum (como praças e ruas), de uso especial (prédios de secretarias, escolas) e os dominiais. Por outro lado, as competências específicas principais incluem, entre outras, zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município (art. 5°, I); prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais (art. 5, II); atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais (art. 5°, III); colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social (art. 5°, IV); colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas (art. 5°, V) e exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ou de forma concorrente, mediante convênio (art. 5°, VI).
Conforme se observa, a Lei nº 13.022/2014 ampliou as competências originalmente reservadas às guardas municipais pela Constituição Federal, restrita à proteção dos “bens, serviços e instalações” dos Municípios, ao prever atribuições como patrulhamento preventivo, exercício do poder de polícia de trânsito e colaboração integrada com as polícias civis e militares. Para a doutrina, a inovação legislativa seria inconstitucional, pois a atribuição de funções de segurança pública às guardas municipais só poderia ser feita por meio de emenda à Constituição. Nesse sentido, José Afonso da Silva (2016, p. 415):
Sempre se pretende que essas guardas assumam funções policiais, notadamente de polícia preventiva e ostensiva. Não raro essa discussão vem associada à unificação das polícias. Essa pretensão ganhou um reforço com a Lei n. 13.022, de 8 de agosto de 2014, que, nos incs. III e IV do art. 5o, se lhes reconhece, talvez ao arrepio da Constituição, competência para o exercício de aspectos da segurança pública, quais sejam: atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais; colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social.
O certo é que a lei não pode atribuir função de segurança pública às guardas municipais, porque a Constituição não autoriza. Isso, em suma, quer dizer que eventual atribuição de segurança pública aos Municípios depende de emenda constitucional.
A norma, no entanto, foi questionada no STF por meio da ADI n° 5.780/DF ajuizada pela Associação Nacional dos Agentes de Trânsito do Brasil – AGTBrasil.
3. A Evolução da Jurisprudência nos Tribunais Superiores
Inicialmente, convém ressaltar que a jurisprudência dos Tribunais Superiores sempre fez uma leitura mais literal e restritiva do art. 144 da Constituição Federal de 1988, limitando a atuação da Guarda Municipal à proteção patrimonial dos bens, serviços e instalações municipais, excluindo-as do rol taxativo de órgãos integrantes do sistema de segurança pública. Esse cenário, entretanto, começou a ser redesenhado a partir do julgamento da ADI n° 5.780/DF.
A Associação Nacional dos Agentes de Trânsito do Brasil – AGTBrasil foi ao STF questionar a constitucionalidade da Lei nº 13.022/2014 por meio da ADI n° 5.780, alegando inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa, por considerar que a iniciativa para o projeto de lei seria privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, e inconstitucionalidade material do inciso IV do art. 5° que confere competência para o exercício de atividade fiscalizatória de trânsito pelas guardas municipais, por violar a competência da União para legislar sobre trânsito. Convém relembrar que a questão da atividade de polícia de trânsito já havia sido enfrentada pelo STF no RE 658570/MG, oportunidade em que a Corte se posicionou pela constitucionalidade do dispositivo e fixou tese de repercussão geral (Tema 472): “é constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções administrativas legalmente previstas”. Nesse sentido, o autor requereu, ainda, a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento da referida tese.
A ação foi julgada improcedente por unanimidade de votos. Para a Corte, não há vício de iniciativa, pois a lei não invade a autonomia dos municípios e não trata da criação em absoluto das guardas municipais, se limitando a estabelecer regras gerais. Com efeito, a autonomia municipal ficou resguardada pelo art. 6° do Estatuto, que garante aos municípios o poder de criar, por meio de lei, a sua guarda municipal, que ficará subordinada ao Chefe do Poder Executivo Municipal. Segundo o relator, ministro Gilmar Mendes, “a norma impugnada deixa a cargo de cada município a decisão da criação, ou não, das guardas municipais, bem como de definir sua estrutura e funcionamento, de acordo com a autonomia municipal, observadas as normas gerais”.
Quanto à alegação de inconstitucionalidade material do art. 5º, VI, do Estatuto, o STF esclareceu que a questão não se refere à possibilidade de o Município legislar sobre trânsito e transporte, mas sobre o exercício do poder de polícia de trânsito, que ser amplamente exercido pelo município, conforme previsão expressa do Código de Trânsito Brasileiro. Para o relator “a fiscalização de trânsito, com a aplicação de multas previstas em lei, mesmo que praticada de forma ostensiva, constitui uma das formas de exercício de poder de polícia” e que não se pode confundir o poder de polícia com a atividade policial, privativa dos órgãos de segurança. Com efeito, o exercício do poder de polícia de trânsito, com a imposição de sanções administrativas legalmente previstas pelas guardas municipais “está em consonância com o disposto no art. 144, §8º, da Constituição federal, pois a lei questionada apenas autoriza a guarda municipal a aplicar multas de trânsito, atribuição que advém do poder de polícia” (ADI 5.780/DF). Confira a ementa do julgado:
É constitucional — na medida em que preserva a autonomia dos municípios (art. 144, § 8º, CF/88) e se limita a estabelecer critérios padronizados para a instituição, organização e exercício das guardas municipais — a Lei federal nº 13.022/2014, a qual dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.
STF. Plenário. ADI 5780/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 01/7/2023 (Info 1101).
O Estatuto Geral das Guardas Municipais representa um importante avanço na construção de um sistema de segurança pública de caráter preventivo e comunitário, definindo competências claras, princípios de atuação, estrutura organizacional mínima e mecanismos de controle, fortalecendo sua integração com o sistema de segurança pública sem romper a divisão constitucional de competências. Alberto L. Lopittke (2016, p. 432), ao refletir sobre o papel dos Municípios na segurança pública, destacou os principais pontos da lei:
A lei é um importante marco de desmilitarização das forças de polícia, ao afirmar a necessidade de observação da matriz curricular nacional para a formação (art. 11, parágrafo único); a vedação a que o órgão de formação seja o mesmo de qualquer forca militar (art. 12, § 3o); a obrigatoriedade de código de conduta próprio e a vedação da utilização de códigos militares (art. 14); a vedação a que a coordenação da Guarda seja feita por pessoa externa aos quadros da própria Guarda (o que é um avanço em relação à ocupação dessa função por oficiais das Policias Militares, que ocorre em várias cidades do País); carreira única (art. 15, § 3o); e a vedação à utilização das denominações militares sobre postos, graduações, uniformes, distintivos e condecorações (art. 19). O dispositivo legal ainda avança ao estabelecer a obrigatoriedade de ouvidoria externa, independente, com mandato (art. 13, § 2o); a possibilidade de constituição de órgão colegiado para a avaliação e o monitoramento das atividades (art. 13, § 2o); e a necessidade de se observar um percentual mínimo de mulheres (art. 15, § 2o).
No entanto, ainda que a lei n° 13.022/2014 tenha definido a natureza jurídica das guardas municipais (art. 2º) os princípios mínimos de atuação (art. 3º), as competências geral (art. 4º) e específicas (art. 5º), os requisitos de sua criação (arts. 6º ao 9º), as exigências para investidura no cargo (art. 10), a capacitação de seus membros (arts. 11 e 12), os mecanismos de controle interno e externo (arts. 13 e 14), e as prerrogativas e vedações da carreira (arts. 15 a 19), uma questão ainda estava em aberto, o reconhecimento das guardas municipais como órgãos de segurança pública.
Nesse cenário, em 2018 foi editada a Lei n° 13.675, regulamentando o § 7º do art. 144 da Constituição Federal (§ 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.), instituindo o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e criando a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS). Ao tratar da composição do Susp no seu art. 9°, a lei incluiu as guardas municipais ao lado órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal e de “demais integrantes estratégicos e operacionais”.
A inovação legislativa gerou controvérsias na doutrina e na jurisprudência. Várias decisões judiciais excluíam qualquer interpretação que considerasse as guardas municipais como órgãos de segurança pública e a posição era defendida, inclusive, pelo STJ, que reconheceu a ilicitude de provas colhidas com base em diligências das guardas municipais e de todas as que delas derivaram (STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 833.985-SP).
Nesse contexto, a Associação das Guardas Municipais do Brasil (AGMB) ingressou com uma ADPF junto ao Supremo Tribunal Federal a fim de que a Corte declarasse a constitucionalidade do dispositivo e confirmasse a legitimidade da inclusão das guardas municipais no Susp enquanto órgão de segurança pública.
O STF julgou procedente a ação e reconheceu que as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8.º, CF), “essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9.º, § 1.º, CF) ”:
1. É evidente a necessidade de união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais; pois todas fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública.
2. Essa nova perspectiva de atuação na área de segurança pública, fez com que o Plenário desta Suprema Corte, no julgamento do RE 846.854/SP, reconhecesse que as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8.º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9.º, § 1.º, da CF).
3. O reconhecimento dessa posição institucional das Guardas Municipais possibilitou ao Congresso Nacional, em legítima opção legislativa, no § 7.º do art. 144 da Constituição Federal, editar a Lei n. 13.675/2018, na qual as Guardas Municipais são colocadas como integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (art. 9.º, § 1.º, inciso VII).
4. O quadro normativo constitucional e jurisprudencial dessa Suprema Corte em relação às Guardas Municipais permite concluir que se trata de órgão de segurança pública, integrante do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
5. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental conhecida e julgada procedente para, nos termos do artigo 144, §8º da CF, CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO ao artigo 4º da Lei 13.022/14 e artigo 9º da 13.675/18 DECLARANDO INCONSTITUCIONAL todas as interpretações judiciais que excluam as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.
(ADPF 995, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 25.08.2023, Pleno, 6 x 5, DJE de 09.10.2023).
A decisão da Corte evidencia o papel relevante das guardas municipais em união de esforços com as demais forças de segurança para a pacificação social. O relator, ministro Alexandre de Morais destacou que “atualmente, portanto, não há nenhuma dúvida judicial ou legislativa da presença efetiva das Guardas Municipais no sistema de segurança pública do país” e relembrou os precedentes da Corte que se encaminharam nesse sentido, como o Tema 472 da Repercussão Geral (já analisado) que confirmou a constitucionalidade do exercício do poder de polícia de trânsito, o ARE 654.432, que vetou o exercício do direito de greve e a ADI 5.538 que permitiu o porte de arma de fogo, declarando a inconstitucionalidade do dispositivo do Estatuto do Desarmamento que estabelecia o número de habitantes como critério para conceder o porte de arma de fogo aos guardas municipais.
Ocorre que, mesmo após o julgamento da ADPF 995 pelo STF ainda permanecia a dúvida quanto ao limite de atuação das guardas municipais. Para o STJ, o fato de serem reconhecidas como órgãos de segurança pública nãos lhes conferia o poder de exercer atribuições próprias das polícias civis e militares, não sendo possível a realização de patrulhamento e policiamento ostensivo. Sua atuação, portanto, deveria se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município. Confira:
As guardas municipais, a despeito de não estarem previstas nos incisos do art. 144da CF/88, exercem atividade de segurança pública e integram o Sistema Único de Segurança Pública. Isso, todavia, não significa que elas tenham a mesma amplitude de atuação das polícias.
(STJ. 3ª Seção. HC 830.530-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 27/9/2023)
O entendimento do STJ, entretanto, parece estar superado. O STF, ao julgar o Tema 656 da Repercussão Geral (RE 608.588/SP) fixou a seguinte tese:
É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional.
STF. Plenário. RE 608.588/SP , Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/02/2025 (Repercussão geral – Tema 656)
Assim, o STF reforçou que as Guardas Municipais integram o sistema de segurança pública previsto no art. 144 da Constituição Federal e fixou o entendimento de que elas desempenham funções voltadas à proteção preventiva e ostensiva no âmbito municipal. A Corte reconheceu que essas corporações podem executar ações típicas de segurança urbana, inclusive o policiamento comunitário, desde que respeitadas as competências constitucionais atribuídas aos demais órgãos de segurança pública, especialmente as polícias estaduais e federal.
Por outro lado, afirmou que não se estende às Guardas Municipais o exercício de atividades próprias de polícia judiciária, como investigações criminais ou a coleta de provas, uma vez que tais atribuições são de competência exclusiva da Polícia Civil e da Polícia Federal.
Além disso, definiu que as Guardas Municipais estão sujeitas à fiscalização do Ministério Público, que exerce o controle externo da atividade policial (nos termos do art. 129, VII, da CF/88). O STF destacou, ainda, que essa supervisão contribui para garantir que as ações das Guardas sejam desenvolvidas em conformidade com os limites legais e constitucionais, prevenindo abusos e assegurando a proteção dos direitos fundamentais.
Desse modo, o reconhecimento das guardas municipais enquanto órgãos de segurança pública representa um passo importante para se chegar a um novo paradigma no que se refere à atuação dos entes federados no sistema de segurança pública. Repensar o desenho constitucional à luz das necessidades sociais possibilitou a evolução da jurisprudência e evidencia um novo papel para os municípios na segurança pública, conforme leciona Alberto L. Lopittke (2016, p. 427):
Seja pelo fato de terem mais proximidade com as diversas comunidades locais e com as próprias autoridades policiais ou por terem a responsabilidade na gestão de praticamente todas as demais políticas sociais como saúde, educação e assistência social, além da infraestrutura e dos serviços urbanos, os Municípios surgem como protagonistas dessa nova concepção sobre as políticas públicas de segurança, com especial enfoque em regiões com altos índices de violência.
Conclusão
A análise da evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça evidencia uma mudança significativa no reconhecimento do papel das Guardas Municipais no sistema de segurança pública brasileiro. De instituições tradicionalmente vinculadas à proteção de bens, serviços e instalações municipais, as Guardas Municipais passaram a ser paulatinamente reconhecidas como agentes essenciais de segurança urbana, com atuação preventiva e ostensiva em colaboração com os demais órgãos previstos no art. 144 da Constituição Federal.
Esse avanço interpretativo demonstra uma adaptação do Direito às demandas concretas da sociedade contemporânea, marcada por crescente complexidade dos fenômenos de violência e criminalidade. Ao reconhecer a legitimidade e relevância das Guardas Municipais, a jurisprudência amplia as possibilidades de atuação dos municípios, valorizando a proximidade dessas instituições com a comunidade local e seu potencial para promover uma cultura de paz e prevenção.
Diante desse cenário, impõe-se refletir sobre a necessidade de reconfiguração do papel dos municípios no pacto federativo de segurança pública. Mais do que meros coadjuvantes, os entes municipais podem assumir posição estratégica na construção de políticas públicas integradas e eficazes, contribuindo de forma ativa para a pacificação social e a efetividade do direito fundamental à segurança. A consolidação desse novo paradigma exige, contudo, avanços legislativos, institucionais e federativos, de modo a garantir clareza de competências, estrutura adequada e mecanismos de cooperação entre os diversos níveis de governo.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
MIRANDA, Simone Rodrigues. A Guarda Municipal como Órgão de Segurança Pública: Uma Análise da Evolução Jurisprudencial do STF e do STJ. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 14/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-guarda-municipal-como-orgao-de-seguranca-publica-uma-analise-da-evolucao-jurisprudencial-do-stf-e-do-stj/. Acesso em: 28/10/2025.
