A Dinamização do Ônus da Prova como Instrumento de Efetividade da Tutela Jurisdicional no CPC de 2015
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Resumo
O presente artigo analisa a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova no processo civil brasileiro, especialmente após a positivação do instituto pelo Código de Processo Civil de 2015. Busca-se demonstrar como a flexibilização do tradicional modelo estático de repartição probatória contribui para a efetividade da tutela jurisdicional e para a concretização do direito fundamental de acesso à justiça. A pesquisa examina a evolução histórica do tema, desde o CPC/1973 até a disciplina atual, destacando a influência da doutrina e da jurisprudência na consolidação do modelo dinâmico. Com base em análise bibliográfica e estudo de precedentes dos tribunais superiores, constata-se que a dinamização do ônus da prova representa mecanismo apto a reduzir desigualdades entre as partes, especialmente em litígios marcados por assimetria de informações, como nas demandas consumeristas e de responsabilidade civil médica. Conclui-se que a adoção dessa técnica reforça o compromisso do processo civil contemporâneo com a justiça material e a efetividade da jurisdição, constituindo importante avanço no panorama normativo brasileiro.
Palavras-Chaveônus da prova; processo civil; teoria dinâmica; CPC/2015; tutela jurisdicional.
Abstract
This article examines the application of the dynamic distribution theory of the burden of proof in Brazilian civil procedure, particularly after its codification in the 2015 Code of Civil Procedure. It seeks to demonstrate how the flexibilization of the traditional static model of evidentiary allocation enhances the effectiveness of judicial protection and strengthens the fundamental right of access to justice. The study explores the historical development of the subject, from the 1973 Code to the current framework, emphasizing the influence of legal scholarship and case law on the consolidation of the dynamic model. Based on bibliographic research and analysis of higher court precedents, the findings reveal that the dynamic burden of proof serves as an effective mechanism to mitigate inequalities between parties, especially in disputes characterized by informational asymmetry, such as consumer and medical liability cases. It is concluded that the adoption of this technique reinforces the commitment of contemporary civil procedure to material justice and the effectiveness of jurisdiction, constituting a significant advancement in the Brazilian normative landscape.
Keywordsburden of proof; civil procedure; dynamic theory; Brazilian Code of Civil Procedure (2015); jurisdictional effectiveness.
Introdução
A efetividade da tutela jurisdicional constitui um dos pilares do processo civil contemporâneo, na medida em que o direito de ação somente se concretiza quando assegura às partes a possibilidade de obter um provimento judicial justo e adequado. Nesse contexto, o ônus da prova revela-se elemento essencial para o equilíbrio processual, pois determina a quem incumbe demonstrar os fatos alegados.
O modelo clássico de repartição estática do ônus probatório, consagrado pelo art. 333 do Código de Processo Civil de 1973, mostrava-se insuficiente para lidar com litígios marcados por acentuada desigualdade entre as partes. A rigidez dessa regra gerava, em muitos casos, a impossibilidade prática de comprovação dos fatos, comprometendo o acesso à justiça e a realização da justiça material.
Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a distribuição dinâmica do ônus da prova foi expressamente incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro (art. 373, §1º), positivando uma tendência já presente na doutrina e jurisprudência. Essa técnica busca superar a assimetria de informações e atribuir o encargo probatório à parte que efetivamente possui melhores condições de produzi-lo, reforçando a concretização dos princípios constitucionais do contraditório, da isonomia e do devido processo legal.
1. Conceito de Prova
A palavra “prova” tem origem no latim probatio, que significa exame, aprovação, confirmação ou verificação. No campo jurídico, o termo apresenta caráter polissêmico, abarcando diferentes acepções: pode designar a fonte de prova (o elemento de onde provém a informação), o meio de prova (o instrumento utilizado para demonstrar um fato) ou ainda a prova como resultado, isto é, a convicção alcançada a partir da atividade probatória.
Sob essa ótica, a prova pode ser entendida como o meio de demonstrar a veracidade dos fatos relevantes e controvertidos, de modo a permitir ao juiz a formação de seu convencimento. Trata-se, portanto, de atividade voltada à reconstrução histórica dos acontecimentos que constituem a base da demanda judicial.
Segundo Alexandre Freitas Câmara, a prova é “todo elemento trazido ao processo para contribuir com a formação do convencimento do juiz a respeito da veracidade das alegações concernentes aos fatos da causa”. Haroldo Lourenço, por sua vez, destaca que a prova deve ser compreendida como todo elemento capaz de colaborar na formação da cognição do juiz, estando intimamente relacionada ao princípio do contraditório, pois assegura às partes a participação efetiva na construção da decisão judicial.
A doutrina também distingue o aspecto objetivo da prova — entendido como os meios processuais de demonstração dos fatos — de seu aspecto subjetivo, que se refere à convicção pessoal formada pelo magistrado diante do material probatório. Essa dualidade demonstra que a prova é, ao mesmo tempo, um dado objetivo (documentos, testemunhos, perícias) e uma experiência subjetiva (o convencimento judicial).
No plano constitucional, a relevância da prova é reconhecida pela Constituição Federal, que assegura em seu art. 5º, inciso LV, o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, e, no inciso LVI, veda a utilização de provas ilícitas. A prova, portanto, além de ser instrumento técnico-processual, é garantia fundamental para a preservação da legitimidade e justiça das decisões jurisdicionais.
Por fim, como bem sintetiza Câmara, a prova pode ser considerada a “alma do processo de conhecimento”, pois é por meio dela que se torna possível transformar alegações em fatos juridicamente relevantes, orientando a solução judicial da controvérsia e promovendo segurança jurídica às partes envolvidas.
2. Princípios Norteadores da Prova
O Novo Código de Processo Civil consolidou importantes princípios que orientam a atividade probatória, todos voltados à efetividade da tutela jurisdicional.
O primeiro é o princípio da cooperação (art. 6º, CPC/2015), que exige atuação colaborativa entre juiz e partes na construção do processo. O magistrado deixa de ser mero espectador e assume posição ativa na condução do contraditório, sempre em busca de decisão justa e efetiva.
O segundo é o princípio da boa-fé e da lealdade processual, pelo qual as partes devem atuar com veracidade e respeito mútuo, evitando condutas abusivas. Esse dever é extensivo inclusive a terceiros, que, de acordo com o art. 380 do CPC, têm a obrigação de informar fatos relevantes e exibir documentos sob sua posse.
Também se destacam o princípio da adequação procedimental, que permite adaptar o processo às peculiaridades do caso concreto, e o princípio da atipicidade das provas (art. 369, CPC/2015), segundo o qual é possível a utilização de todos os meios legítimos para demonstração da verdade dos fatos.
Por fim, o princípio do convencimento motivado (art. 371, CPC/2015) assegura que o juiz deve fundamentar a valoração das provas produzidas, em observância ao contraditório e à ampla defesa.
Em conjunto, esses princípios reforçam a ideia de um processo cooperativo, flexível e comprometido com a busca da verdade real e da justiça material.
3. Ônus da Prova: aspectos gerais e regime estático
O ônus da prova é tradicionalmente definido como a conduta processual exigida das partes para demonstrar a veracidade dos fatos por elas alegados. Não se trata de dever jurídico, mas de encargo: quem não se desincumbe de provar o que afirma assume o risco de ver sua pretensão rejeitada, em razão do princípio de que “fato alegado e não provado equivale a fato inexistente”.
A doutrina distingue dois aspectos do instituto. O ônus subjetivo orienta o comportamento das partes durante a instrução, indicando a quem compete provar determinado fato. Já o ônus objetivo funciona como regra de julgamento, aplicável pelo juiz quando, ao final da instrução, não houver prova suficiente. Nesse caso, o magistrado deve decidir contra a parte que detinha o encargo probatório e não o cumpriu, conforme a regra estática prevista no art. 333 do CPC/1973.
Ainda, o ônus pode ser classificado em perfeito — quando seu descumprimento acarreta necessariamente prejuízo, como a perda do direito de recorrer — e imperfeito, hipótese em que o descumprimento não gera, de imediato, desvantagem, pois a prova pode ser suprida por iniciativa do juiz ou pela parte contrária.
Nesse regime estático, cabia ao autor comprovar os fatos constitutivos de seu direito e ao réu demonstrar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos. Embora simples e objetivo, esse modelo mostrava-se insuficiente em litígios marcados por desigualdade informacional, motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência passaram a questionar sua rigidez, abrindo caminho para a teoria da distribuição dinâmica.
4. Teoria Dinâmica da Distribuição do Ônus da Prova
A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova surgiu como reação às limitações do modelo estático, ao reconhecer que impor rigidamente o encargo ao autor ou ao réu nem sempre conduzia a uma solução justa. Inspirada na filosofia utilitarista de Jeremy Bentham e desenvolvida na América Latina por Jorge W. Peyrano e Augusto M. Morello, a teoria propõe que o ônus probatório seja atribuído à parte que se encontre em melhores condições de produzi-lo, conforme as circunstâncias do caso concreto.
No Brasil, Antônio Janyr Dall’Agnol Junior foi um dos principais defensores da teoria, ao sustentar a impossibilidade de fixação abstrata do encargo probatório e a necessidade de considerar o caso em sua concretude. A doutrina nacional, com autores como Haroldo Lourenço e Alexandre Freitas Câmara, reforça que o processo deve ser visto sob uma ótica dinâmica, em que direitos e deveres se alternam ao longo da marcha processual.
Antes mesmo de sua positivação, a jurisprudência pátria já aplicava a técnica em hipóteses específicas, sobretudo em litígios de responsabilidade médica e de consumo, nos quais a assimetria informacional dificultava a comprovação por uma das partes. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a legitimidade da redistribuição probatória, desde que fundamentada e respeitado o contraditório.
Com o Código de Processo Civil de 2015 (art. 373, §1º), a teoria ganhou respaldo legal, permitindo ao magistrado redistribuir o encargo probatório sempre que houver impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprimento, ou quando uma das partes tiver maior facilidade de acesso às provas. Assim, a dinamização deixou de ser uma construção exclusivamente doutrinária e jurisprudencial para consolidar-se como técnica processual legítima e instrumento de efetividade da tutela jurisdicional.
5. Aplicações práticas da teoria dinâmica da distribuição do ônus da prova
A teoria dinâmica do ônus da prova consolidou-se especialmente em litígios caracterizados por acentuada desigualdade técnica ou informacional entre as partes. Um dos campos mais recorrentes é o da responsabilidade civil médica, em que ao paciente seria praticamente impossível comprovar o erro, ao passo que os profissionais de saúde detêm melhores condições de documentar os procedimentos realizados.
Outro exemplo significativo está nas relações de consumo, em que o fornecedor possui maior acesso a informações e registros técnicos dos produtos ou serviços. Nessas hipóteses, impor rigidamente ao consumidor o encargo probatório significaria inviabilizar a tutela de seus direitos.
A doutrina e a jurisprudência também apontam a relevância da aplicação em contratos complexos e relações assimétricas, nas quais uma das partes concentra os meios de prova. O Superior Tribunal de Justiça, mesmo antes da positivação da teoria no CPC/2015, já reconhecia a possibilidade de redistribuir o encargo probatório como instrumento de justiça e equilíbrio processual.
Em todos esses casos, a técnica da dinamização reforça a função social do processo, permitindo que a decisão judicial se baseie em uma instrução mais justa e condizente com as peculiaridades do litígio.
6. Considerações Finais
A positivação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova pelo Código de Processo Civil de 2015 representou importante avanço para o direito processual brasileiro. Ao superar o modelo estático, o legislador consagrou uma técnica mais adequada à realidade contemporânea, marcada por relações jurídicas complexas e frequentemente desiguais.
A possibilidade de redistribuição do encargo probatório, desde que fundamentada e observados o contraditório e a ampla defesa, reforça a função instrumental do processo e assegura maior efetividade à tutela jurisdicional. Essa técnica revela-se especialmente necessária em litígios de consumo, responsabilidade civil médica e demais situações em que há nítida assimetria de informações entre as partes.
Conclui-se, portanto, que a dinamização do ônus da prova não apenas fortalece o acesso à justiça, mas também consolida o compromisso do processo civil brasileiro com a justiça material. Mais do que uma inovação legislativa, trata-se de instrumento essencial para garantir decisões jurisdicionais mais equilibradas, justas e legitimadas pelo princípio da igualdade substancial.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
MOREIRA, Pedro Henrique de Deus. A Dinamização do Ônus da Prova como Instrumento de Efetividade da Tutela Jurisdicional no CPC de 2015. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17055748, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 04/09/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-dinamizacao-do-onus-da-prova-como-instrumento-de-efetividade-da-tutela-jurisdicional-no-cpc-2015/. Acesso em: 17/09/2025.