Aprimoramento Cognitivo Farmacológico

Categoria: Ciências da Saúde Subcategoria: Farmácia

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25/03/2025

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MICHELINE NUSS DEL QUIQUI

Curriculo do autor: Farmacêutica e professora com sólida formação acadêmica e prática profissional. Possuo mestrado em Ciências Ambientais e Saúde, com foco interdisciplinar nas relações entre saúde pública, meio ambiente e educação. Atuo com experiência comprovada tanto na área de dispensação farmacêutica, quanto no ensino, desenvolvendo práticas pedagógicas voltadas para a formação crítica e ética de alunos nas áreas de ciências da saúde.

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Resumo

O presente trabalho vem abordar o aprimoramento cognitivo farmacológico. Constatou-se que, na atualidade, a busca pelo aprimoramento cognitivo farmacológico está intimamente ligada ao estilo de vida e ao de sociedade construídos nas últimas décadas. Independentemente da palavra utilizada para nomear o momento histórico vivido, está cada vez mais difícil lidar com a realidade e, nesse contexto, o aprimoramento cognitivo farmacológico revela-se como uma das facetas do fenômeno recente conhecido como psiquiatrização da normalidade. O principal objetivo deste trabalho é analisar a difusão do uso de medicamentos para aprimoramento cognitivo, a partir de publicações midiáticas brasileiras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema abordado. Conclui-se que na propagação de saberes e práticas relacionadas à otimização do desempenho cognitivo pelo uso de substâncias, a internet constitui uma tecnologia midiática potencial para os veículos de divulgação, na disseminação e socialização de tais substâncias. A construção de saberes, noções e representações sociais relacionadas ao tema abordado desafia as instâncias de controle hegemônico do cuidado em saúde. Na esteira dos processos de farmacologização da sociedade, o tratamento público do tema permite estabelecer uma analogia com a “questão das drogas” tornadas ilícitas na contemporaneidade.

Palavras-Chave

Aprimoramento Cognitivo Farmacológico; Psiquiatrização; Drogas; Cuidado em Saúde.

Abstract

This paper addresses pharmacological cognitive enhancement. It was found that, currently, the search for pharmacological cognitive enhancement is closely linked to the lifestyle and society built in recent decades. Regardless of the word used to name the historical moment lived, it is increasingly difficult to deal with reality and, in this context, pharmacological cognitive enhancement reveals itself as one of the facets of the recent phenomenon known as psychiatrization of normality. The main objective of this paper is to analyze the diffusion of the use of drugs for cognitive enhancement, based on Brazilian media publications. The methodology adopted will be a bibliographic analysis of literature, with emphasis on the most current and relevant books and articles on the topic addressed. It is concluded that in the propagation of knowledge and practices related to the optimization of cognitive performance through the use of substances, the Internet constitutes a potential media technology for the dissemination, dissemination and socialization of such substances. The construction of knowledge, notions and social representations related to the topic addressed challenges the instances of hegemonic control of health care. In the wake of the processes of pharmacologization of society, the public treatment of the issue allows us to establish an analogy with the “issue of drugs” that have become illicit in contemporary times.

Keywords

Pharmacological Cognitive Enhancement; Psychiatrization; Drugs; Health Care.

1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do conhecimento científico, paralelo à expansão da indústria farmacêutica, aliado à consolidação do que muitos autores chamam de complexo médico industrial, têm uma importância crucial na remodelação das relações sociais por meio das quais tentamos compreender a nós mesmos, nas sociedades ocidentais contemporâneas. A história da medicina tem sido ligada à história das formas com que os seres humanos têm tentado se tornar melhores do que são (Freitas e Amarante, 2022). As sociedades contemporâneas introduziram um horizonte de aprimoramento constante e uma necessidade permanente de melhoria de nossas capacidades.

Uma questão que atualmente chama atenção é a promessa de que fármacos e suplementos alimentares possam ser utilizados para aumentar o estado de alerta, concentração, memória e outros aspectos do funcionamento cognitivo, configurados num recurso que podemos denominar “aprimoramento cognitivo”. O consumo de substâncias para aprimorar a performance dos processos mentais/ neurocognitivos em indivíduos saudáveis tem objetivos específicos que, em grande medida, residem na expectativa de se obter maior eficiência e melhor desempenho em tarefas profissionais e acadêmicas. As chamadas “smart drugs” ou fármacos nootrópicos têm se expandido crescentemente mediante difusão pela internet, diante da divulgação de substâncias voltadas para a otimização do desempenho cognitivo (Vargas, 2023).

O próprio contexto sociocultural em que essas práticas se propagam diz algo sobre a forma como o fenômeno se apresenta sob uma ética competitiva e individualista característica das sociedades ocidentais contemporâneas. Além disso, toda a compreensão sobre a corporalidade humana baseada no fisicalismo aponta para o entendimento do sistema nervoso como circuitos neuroquímicos absorvidos no desenvolvimento de uma psicofarmacologia apta a possibilitar o aparecimento de tecnologias bioquímicas voltadas à otimização das funções cerebrais (Rohden, 2022). Os limites da fronteira entre tratamento e aprimoramento se mostram cada vez mais nebulosos dentro da variabilidade do que pode ser considerado um ou outro ao longo do tempo e é cada vez mais difícil responder o que é “normal”, “deficiente”, o que é “ser melhor” e o que deve ser submetido a intervenções terapêuticas.

O principal objetivo deste trabalho é analisar a difusão do uso de medicamentos para aprimoramento cognitivo, a partir de publicações midiáticas brasileiras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema abordado.

A propagação do aprimoramento cognitivo com o uso de substâncias e sua popularização pela internet desafiam as instâncias de controle hegemônico de cuidado em saúde, apesar da ampla disseminação do tema no senso comum. A importância da Internet como campo aberto para a difusão de informações e construção de conhecimento, então estamos diante de um potencial incomparável para reconfiguração desses saberes que não seria possível além da comunicação mediada pelas mídias digitais.

Deve-se analisar as relações existentes entre a proibição de determinadas substâncias psicoativas e a promoção de outras e em que medida esses sistemas se realimentam. Nas relações de poder suscitadas a partir da geração e circulação de diferentes discursos acerca dos medicamentos e seus efeitos, o consumo não terapêutico do que antes eram medicamentos aprovados para o tratamento de determinadas condições se confunde com o uso medicamentoso ou não de substâncias tornadas ilícitas (Castro, 2020). Assim, o dispositivo das drogas cristaliza a tensão existente entre drogas de uso lícito e drogas de uso ilícito. As mesmas substâncias se polarizam de um ponto ao outro e o consenso se confunde na nebulosidade das fronteiras postas em questão.

2 APRIMORAMENTO COGNITIVO FARMACOLÓGICO

O aprimoramento cognitivo farmacológico é uma prática que se caracteriza pelo uso de medicamentos psicotrópicos por indivíduos saudáveis que buscam aperfeiçoar seu funcionamento cognitivo, emocional e motivacional, especificamente pelo aumento dos níveis de concentração, de organização e de vigília, com o intuito de melhorar o rendimento escolar, bem como o desempenho no trabalho (Barros e Ortega, 2021).

Além de aprimoramento cognitivo farmacológico, outras denominações são dadas à prática da utilização de medicamentos psicotrópicos por indivíduos saudáveis, como ‛neurologia cosmética’, ‛psiquiatria cosmética’, ‛doping intelectual’ e ‛doping mental’ (Freitas e Amarante, 2022). Neste estudo, optou-se por aprimoramento cognitivo farmacológico; a partir desse ponto, utilizar-se-á a sigla ACF para se fazer referência a essa prática.

No Brasil, a comunidade científica passou a debater esse fenômeno mais intensamente a partir de dezembro de 2008, quando foi publicado o artigo manifesto intitulado Towards responsible use of cognitive-enhancing drugs by the healthy. Desde então, intensificaram-se as publicações que tratam dessa questão, algumas delas posicionando-se favoravelmente ao uso de medicamentos para o ACF; outras manifestando posicionamento contrário a essa prática (Castro, 2020).

Conforme Rohden (2022), o fato é que a busca pelo aperfeiçoamento cognitivo tal como tem sido realizada se dá geralmente por meio do uso de remédios controlados – tarja preta –, que podem causar dependência física e psíquica. Por isso, é necessário compreender, dialeticamente, os motivos que estão na base do ACF, já que eles são historicamente determinados e, portanto, só podem ser compreendidos no seu contexto histórico-social. Eles se transformam de acordo com as mudanças do meio social e das demandas dele advindas.

Não é de hoje que nossa sociedade usa drogas estimulantes para o sistema nervoso central. No entanto, essa busca ganhou contornos farmacológicos mais intensos nas últimas três décadas, quando sujeitos, até então considerados saudáveis, aderiram ao ACF na esperança de potencializar suas funções cognitivas, não obstante o risco de desenvolverem adicção por essas substâncias. Ademais, até agora não há evidências científicas sobre a eficácia e a segurança do uso de qualquer fármaco para o aprimoramento cognitivo (Barros e Ortega, 2021).

De fato, a sociedade do século XXI vem se tornando cada vez mais competitiva. A produtividade e a eficiência estão entre os valores mais disseminados e perseguidos pelos contemporâneos. Os medicamentos utilizados para essa finalidade são os psicotrópicos ou psicoestimulantes, chamados também pela literatura especializada de nootrópicos, palavra de origem grega formada pela junção do termo nous, que significa ‛mente’, com o termo tropos, do verbo ‛curvar’ ou ‛mudar’, usada para descrever uma classe de substâncias (sintéticas ou naturais) que, supostamente, teriam a capacidade de melhorar o desempenho de funções cognitivas como o pensamento, a linguagem, a percepção, a memória, a aprendizagem e a atenção, sem apresentarem toxicidade ou potencial para a adicção (Vargas, 2023).

Dentre os mais conhecidos nootrópicos à venda no Brasil destaca-se os seguintes: Piracetam®, Stavigile®, Venvanse® e a Donepezila®. Nenhum deles, porém, conquistou a popularidade do metilfenidato, liberado no Brasil, em 1998, como Ritalina® e, em 2002, como Concerta®, indiscutivelmente o nootrópico mais consumido no Brasil e no mundo (Rohden, 2022).

Segundo o Boletim de Farmacoepidemiologia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), o aumento exponencial do consumo desses medicamentos se deve ao uso não médico para o ACF, como instrumento para a melhoria do desempenho escolar de crianças, de adolescentes e de adultos. Todavia, esse aumento no consumo de medicamentos coloca em debate a questão da medicalização social, sendo a classe médica uma das responsáveis por esse fenômeno (Castro, 2020).

Em outras palavras, o debate sobre o uso de medicamentos para fins de aprimoramento não está desconectado, segundo Vargas (2023), da atual prática de prescrição médica indiscriminada, nem dos mecanismos da indústria farmacêutica em investir em propagandas que colocam em evidência os medicamentos que prometem melhorar a performance intelectual, ao que é possível se atribuir a devida responsabilidade.

O termo “responsabilidade” abrange conteúdo de semântica ética e jurídica, representa o conhecimento do justo e necessário em um sentido moral imerso dentro do sistema do lícito e ilícito. Especificamente acerca da responsabilidade e sua faceta voltada ao profissional da medicina, leciona Rose (2023, p.265):

No mundo jurídico, pode-se considerar responsabilidade como a obrigação de reparar prejuízo decorrente de uma ação de que se é culpado, direta ou indiretamente. E por responsabilidade profissional, no âmbito do exercício da medicina, como um elenco de obrigações a que está sujeito o médico, e cujo não cumprimento o leva a sofrer as consequências impostas normativamente pelos diversos diplomas legais.

 

A prescrição de tratamento medicamentoso, cuja eficácia é duvidosa e/ou que cause danos à saúde do paciente, pode levar à punição do médico em múltiplas esferas, administrativa, civil e criminal, o que se dá pela potencial lesividade que a conduta representa para o quadro de saúde do paciente (Freitas e Amarante, 2022).

Administrativamente, o Código de Ética Médica elenca como princípios fundamentais (Capítulo I) o aprimoramento científico (V); a responsabilização pessoal pelos atos profissionais (XIX); o acatamento das escolhas do paciente, desde que adequadas e cientificamente reconhecidas (XXI); o evitamento de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários em casos clínicos irreversíveis e terminais (XXII). Na mesma toada, sob pena de incorrer em hipóteses expressas de responsabilidade profissional (Capítulo III), deve o médico se abster de causar danos ao paciente, comissiva ou omissivamente, por imperícia, imprudência ou negligência (art. 1º); assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou quaisquer outros documentos médicos (art. 11), e praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País (Labate et al, 2022).

Cabe ao respectivo Conselho Regional, ao tomar conhecimento de tais violações éticas, apurar a conduta do médico em processo disciplinar, cuja punição administrativa poderá variar da advertência até a cassação do registro profissional, nos termos do art. 22 da Lei nº 3.268/1957 (Rose, 2023).

Maiores complexidades são encontradas quando abordada a responsabilidade civil, mormente em razão da margem de incerteza e intempéries que abstrai a Medicina do mesmo campo de aplicação das demais ciências exatas. Tal como pondera Labate et al (2022), a maior parte dos atos médicos pressupõem, por excelência, riscos para o paciente, de modo que nem sempre intervenções ou tratamentos causadores de danos implicam no chamado erro médico, carreador da responsabilidade nesse campo.

A responsabilidade civil nasce com a ocorrência de um dano provocado por uma conduta ilícita e visa a reestabelecer o equilíbrio jurídico alterado pela lesão, reestabelecendo o chamado status quo ante à vítima ou, na sua impossibilidade, compensá-la pelos seus prejuízos de modo pecuniário. De forma geral, a responsabilidade civil se rege pelos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil (CC), que preveem a reparação dos danos decorrentes da prática de atos ilícitos. Acaso o dano seja ocasionado pelos instrumentos ou pelo corpo clínico auxiliar médico, ou no caso de o médico ser preposto do hospital ou plano de saúde, ainda caberá, a depender das peculiaridades do caso concreto, a extensão da responsabilização a estes, que respondem de forma solidária e objetiva pelos danos causados por seus prepostos, nos termos dos arts. 932, III, do CC (Pasquini, 2023) cumulado com o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Acerca da prescrição de medicamentos, releva-se a questão da abstenção de abuso, consistente na cautela, na observância do lex artis da profissão, o que se observa pela constatação do emprego dos cuidados e técnicas hodiernamente exigidos. O médico que prescreve medicações desnecessárias ou de comprovada ineficácia científica é claramente imprudente e viola dever subjetivo de cuidado, assume um risco excessivo de um dano previsível, ainda que não se utilize de meios invasivos ou de grande porte, o que enseja a sua responsabilidade civil pelos danos eventualmente ocasionados (Rose, 2023).

Da mesma forma, a imprudência na prescrição médica enseja eventual responsabilização do médico na esfera criminal, a qual deverá ser aferida na medida de sua culpabilidade e da adequação típica do caso concreto. Posto isso, fica evidente a gravidade extraível da prescrição medicamentosa feita de forma leviana pelos profissionais de saúde, de modo que seu receitar e consumo devam se dar de modo moderado e ponderado às reais necessidades biopsicológicas dos pacientes (Labate et al, 2022).

2.1 Os Benefícios

Constatou-se que são vários os benefícios relatados que vão de acordo com a motivação do uso: sensação de aprimoramento cognitivo (melhora no desempenho acadêmico como concentração, atenção, raciocínio e memória) e sensação de bem estar, bem como redução da fadiga, do estresse e do sono. No entanto, as respostas observadas podem variar em função de fatores como o estado clínico em que a pessoa se encontra, a capacidade intelectual e se faz atividades físicas. A eficácia no aumento da motivação, da energia e da performance cognitiva tem sido observada em nível baixo ou moderado, sendo que essa melhora pode ocorrer apenas até certo ponto. Além disso, a melhora cognitiva, em alguns casos, pode estar associada a degradação de outras áreas.” (Pasquini, 2023).

O Aprimoramento Cognitivo Farmacológico (ACF), conhecido por vários termos como doping cognitivo e neurologia cosmética. O ACF se refere ao uso de estimulantes visando potencializar a performance cognitiva, ou seja, promover melhoria na capacidade mental como atenção, concentração e memória de pessoas consideradas saudáveis, que não possuem distúrbio neuropsiquiátrico ou cognitivo, como estudantes, profissionais e concurseiros. “Esse fenômeno ganhou contornos farmacológicos mais intensos na passagem do século XX para o XXI. Sujeitos ‘normais’, na esperança de potencializar suas funções cognitivas, passaram a consumir substâncias psicotrópicas de venda controlada que, em sua maioria, podem causar dependências físicas e psíquicas.” (Camargo Júnior, 2023, p.93).

Quadro 1- Apresentação das estruturas químicas de psicofármacos citados nesse estudo

Fonte: Bauman, 2021.

 

Muitas pesquisas comprovam a eficácia dos psicofármacos mencionados no presente estudo (lisdexanfetamina, metilfenidato, cloridrato de donepezila, modafinila e piracetam), mas para indivíduos com diagnósticos definidos. A eficácia do lisdexanfetamina no tratamento do TDAH “foi inicialmente estabelecida com base em três estudos controlados em crianças de 6 a 12 anos de idade, um estudo controlado em adolescentes de 13 a 17 anos de idade, dois estudos controlados em crianças e adolescentes de 6 a 17 anos de idade, dois estudos controlados em adultos e dois estudos de manutenção (um em crianças e adolescentes de 6 a 17 anos e um em adultos). Todos os pacientes que participaram desses estudos atendiam os critérios para TDAH do DSM (…). Nos estudos clínicos, quando os pacientes fizeram uso de dimesilato de lisdexanfetamina uma vez ao dia pela manhã, os efeitos foram observados a partir de 1,5 hora por até 13 horas em crianças e a partir de 2 horas por até 14 horas em adultos com TDAH.” (Alves e Pereira, 2023, p.285).

O metilfenidato tem sido usado há mais de 50 anos no tratamento de crianças e adultos diagnosticados com TDAH e é indicado também para tratamento de narcolepsia. “A sua eficácia no tratamento do TDAH está bem estabelecida. Além de melhorar os sintomas principais do TDAH, o metilfenidato também melhora os comportamentos associados com TDAH, tais como desempenho escolar prejudicado e função social. Estudos publicados mostram que cloridrato de metilfenidato melhora significativamente a sonolência diurna e cataplexia.”. Nesse sentido, Bauman (2021) acrescenta que o metilfenidato é mais eficaz quando o indivíduo apresenta menor nível de atenção/concentração; já as anfetaminas são mais eficazes para aqueles com menor capacidade intelectual.

Quadro 2- Descrição de alguns psicofármacos disponíveis no mercado

Fonte: Bauman, 2021.

 

Cloridrato de donepezila é indicado para o tratamento sintomático da demência de Alzheimer. Para casos que variam de leve a moderadamente grave ele promoveu aumento dose-dependente estatisticamente significativo da porcentagem de pacientes considerados respondedores ao tratamento. Tanto os pacientes designados para o grupo placebo como os para o grupo cloridrato de donepezila apresentaram uma ampla gama de respostas, mas os grupos com tratamento ativo apresentaram maior probabilidade de apresentar melhoras significativas. Para casos grave, a eficácia de cloridrato de donepezila no tratamento é demonstrada pelos resultados de várias pesquisas: estudo sueco de 6 meses; estudo Japonês de 24 semanas e estudo multicêntrico em vários países em pacientes com doença de Alzheimer grave (Esther e Coutinho, 2022).

Estudos demonstram que o modafinila, destinado ao tratamento da narcolepsia, provocando estado de alerta, que resulta em melhora das atividades cognitivas ao ampliar o poder de concentração, de atenção e a memória. Piracetam é indicado para tratamento sintomático da síndrome psico-orgânica, de dislexia e de vertigem. Oferece diversos benefícios para o cérebro de um ser humano, como: ajuda na memória, concentração, foco e atenção (Pasquini, 2023).

Bauman (2021) afirma que para indivíduos saudáveis, vários NEs parecem produzir benefícios na cognição, principalmente naqueles com baixo desempenho basal. Entretanto, em pacientes com esquizofrenia, esses medicamentos foram mais eficazes em aqueles com maior inteligência pré-mórbida. Além disso, alguns NEs não mostram efeitos lineares e sim em forma de U invertido. O uso de NEs pode ser prejudicial causando mudanças neuro-adaptativas ou compensatórias que afetam as ações farmacológicas subsequentes.

Camargo Junior (2023) afirma que as diferenças individuais entre NEs não podem ser avaliadas com precisão, mas elas são fundamentais na mediação da sua eficácia. Fatores como sexo, idade, variação genética e elementos psicossociais, origem étnica e cultura podem afetar a eficácia do uso de NE em graus variados. Ainda de acordo com Alves e Pereira (2023) a complexidade do cérebro e do comportamento humano não pode ser subestimada. Cognição e comportamento resultam de uma interação complexa que flutuam com o tempo. Às vezes os efeitos observados são significativos e em outras circunstâncias, são sutis como por exemplo, os efeitos do modafinil no sono parecem ser mais robustos em indivíduos privados de sono do que naqueles que estão bem descansados e saudáveis. Os NEs afetam vários neurotransmissores simultaneamente como por exemplo, o metilfenidato afeta a noradrenalina e a dopamina. Isso pode favorecer ações opostas no mesmo sistema além de que a dose apropriada para alguns sistemas pode estar associada à sobredosagem em outros

2.2 Os Efeitos Adversos

Efeitos adversos ou manifestações clínicas consequentes ou “eventos adversos medicamentosos são definidos como lesões derivadas do uso de medicações” e variam de acordo com o NE consumido. No entanto, eles são maiores para os pacientes estressados, portadores de doenças clínicas e de fatores de risco cardiológico, em tratamento de algum transtorno mental e usuários de álcool e drogas . “A maioria das manifestações clínicas consequentes do uso de anfetaminas, por exemplo, se devem à estimulação adrenérgica prolongada, principalmente em SNC e cardiovascular.” (Esther e Coutinho, 2022, p.79).

No Quadro 3 encontra-se a relação dos eventos adversos associados ao uso indiscriminado de alguns psicofármacos de acordo com a literatura.

 

Quadro 3- Relação dos efeitos adversos associados ao uso indiscriminado de psicofármacos de acordo com a literatura

Fonte: Barros e Ortega, 2021.

No que se refere aos efeitos adversos percebidos após a administração do medicamento, os resultados apontam que a maioria dos efeitos citados na literatura, conforme quadro 3, foram relatados pelos acadêmicos que fazem ou já fizeram uso do psicofármaco. Camargo Júnior (2023) demonstra preocupação sobre os efeitos destes NEs no cérebro de jovens em desenvolvimento.

Esther e Coutinho (2022) afirma que os benefícios são menores que os efeitos adversos, uma vez que o psicofármaco pode agir em vários sistemas do organismo, como no cardiovascular e no endócrino, além de poder proporcionar dependência física e psíquica. Para Alves e Pereira (2023) o uso indiscriminado de NEs apresenta sérios efeitos adversos pouco conhecidos pelos usuários, uma vez que a maioria não foi orientada pelo profissional da saúde quanto ao seu uso. Os NEs podem ter uma variedade de efeitos no mesmo indivíduo, melhorando aspectos específicos da cognição ao mesmo tempo em que prejudica outros. Além disso, eles podem ser eficazes e úteis para alguns, mas não para outros.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas práticas de aprimoramento cognitivo farmacológico, diversas substâncias têm sido designadas por aqueles que pretendem melhorar o desempenho de características do funcionamento cognitivo como concentração, atenção, memória e estado de alerta. No Brasil, as substâncias mais difundidas para esse fim são os derivados anfetamínicos. O metilfenidato, como tal, é o protagonista de diversos estudos que têm levantado a discussão sobre o uso de medicamentos com essa finalidade. Outros fármacos da mesma classe também são historicamente associados à utilização como estimulantes, haja vista o exemplo das anfetaminas, mais conhecidas por serem prescritas como anorexígenos.

No Brasil, tais compostos são submetidos a um controle específico para o acesso pela população, motivo pelo qual são conhecidos como “medicamentos controlados” ou “tarja preta”. Esse grupo de medicamentos também é associado ao potencial para causar dependência física e/ou psíquica, além dos riscos relacionados ao seu uso contínuo, que envolvem condições cardiovasculares e transtornos mentais, no caso das anfetaminas. Além dessas, diversos outros fármacos de acesso menos controlado vêm sendo divulgados para utilização com fins de aprimoramento cognitivo.

A internet, como tecnologia midiática potencial, constitui o principal meio para difusão de “smart drugs” e nootrópicos, sem o qual seria difícil a propagação das informações sobre tais substâncias. Diante de contextos competitivos e individualistas característicos das sociedades ocidentais contemporâneas, a divulgação dessas substâncias constitui um fenômeno subjacente ao processo de farmacologização da sociedade e aponta para a importância dos veículos de divulgação midiática na disseminação e socialização da possibilidade de aprimoramento cognitivo a partir do uso de recursos farmacológicos.

Nesse sentido, as racionalidades que direcionam a gestão desses usos ainda têm muito a explicitar sobre o entendimento dessas práticas. O progresso do debate que envolve o uso drogas numa abordagem mais ampla, incluídos os medicamentos, depende das perspectivas trazidas pelos usuários, sem deixar de considerar o poder de agenciamento das próprias substâncias e os sentidos que lhes são atribuídos nos processos de socialização.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Nuss Del Quiqui, Micheline (ORCID 0009-0006-2087-4241) . Aprimoramento Cognitivo Farmacológico. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências da Saúde, Farmácia, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.15083090, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 25/03/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/aprimoramento-cognitivo-farmacologico/. Acesso em: 24/04/2025.