O Caso Americanas: Lições Sobre Compliance, Governança E Gestão De Riscos
Introdução
O caso Americanas evidenciou a importância de práticas sólidas de governança corporativa, compliance e gestão de riscos no ambiente empresarial. A confiança dos investidores e a sustentabilidade das empresas dependem diretamente da implementação eficaz desses mecanismos. Neste artigo, será analisado como a ausência de controles adequados permitiu a ocorrência de fraudes contábeis, culminando na recuperação judicial da companhia.
Resumo do “Caso Americanas”
No início de 2023, a Americanas, gigante do setor varejista brasileiro, tornou pública a notícia de que teriam identificado “inconsistências em lançamentos contábeis” da empresa envolvendo um valor aproximado de R$ 20 bilhões. Segundo a Americanas, seus controles internos foram manipulados pela antiga diretoria que maquiava os resultados financeiros da empresa para demonstrar um falso aumento de caixa, valorizando artificialmente as ações da companhia na bolsa de valores brasileira[1]. Com a crescente desvalorização de suas ações, a Americanas optou por entrar com um pedido de recuperação judicial dias após noticiar publicamente a identificaçao da fraude.
À época, a auditoria externa da Americanas era realizada pela PricewaterhouseCoopers (“PwC”), segunda maior empresa de auditoria financeira do mundo[2], conhecida como uma das “Big 4” companhias do ramo. Outra “Big 4”, KMPG, foi responsável técnica pelas auditorias na Americanas de 2016 a 2018[3].
O caso originou uma investigação pela Polícia Federal e a abertura de processos administrativos pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) por omissão e negligência. A Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e Trabalhador (“Abredecont”) também se manifestou através da propositura de uma ação civil pública contra a PwC e a CVM.
A importância do programa de compliance para enfrentamento dos riscos
No Brasil, o art. 56 do Decreto nº 11.129/2022, que regulamenta a Lei nº 12.846/2013, introduziu o conceito de “Programa de Integridade” como sendo o conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes, com objetivo de (a) prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e (b) fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional. Atualmente, é comum nos referirmos alternatiavamente ao “Porgrama de Integridade” como “Programa de Compliance”, “Instituto Compliance” ou simplesmente “Compliance”, como será visto neste trabalho.
O objetivo das normas de compliance é focar o resultado a ser atingido, ou seja, mitigar os riscos decorrentes do cometimento de condutas pessoais ou organizacionais consideradas ilícitas ou incoerentes com princípios, missões, visão ou objetivos de uma empresa[4]. Isto é, o programa de compliance visa reduzir riscos, sejam financeiros ou reputacionais, através da adoção de mecanismos que previnam irregularidades. O programa deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada empresa, a qual, por sua vez, deve garantir o constante aprimoramento e a adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade[5]. Além da criação de normas de conduta, é essencial a participação e o comprometimento da alta gestão e a realização de treinamentos e ações de comunicação para reforçar a eficácia do programa.
Dessa forma, a adoção de um programa de compliance bem estruturado é importante e fundamental para a redução de potenciais risco que uma empresa possa estar exposta. Correlacionando com o caso Americanas, é seguro dizer que não foram adequadamente adotados mecanismos internos de controle suficientes ou adequados à prevenção das irregularidades constatadas (manipulação de dados) que, como soubemos, já vinham ocorrendo por tempo considerável, culminando em um pedido de recuperação judicial e afentado sua reputação frente a diversos players no mercado.
A correlação entre governança, gestão dos riscos e compliance
A governança corporativa, gestão de riscos e compliance, são áreas correlacionadas que integram harmoniosamente o que é denominado de “GRC”. A atuação conjunta dessas áreas tem o propósito de garantir a uniformidade de processos e evitar atuações conflitantes dentro da estrutura organizacional.
A governança corporativa é o conjunto de práticas destinado à criação de valor para a companhia, seus proprietários e partes interessadas. A governança corporativa apresenta as boas práticas a serem adotadas pela corporação, de modo a aumentar o seu valor, facilitando o acesso ao capital e garantindo a sua continuidade[6], e é baseada em quatro princípios: transparência, equidade, prestação de contas (accountability), e responsabilidade corporativa[7].
A gestão de riscos é o conjunto de práticas que tem como objetivo a identificação, avaliação e adoção de ações de mitigação e monitoramento de riscos de forma a garantir a continuidade e sustentabilidade do negócio empresarial. A gestão de riscos é aplicável a ampla gama das atividades da organização em todos os níveis, incluindo estratégias, decisões, operações, processos, funções, projetos, produtos, serviços e ativos, e é suportado pela cultura e pela estrutura (ambiente) de gestão de riscos da entidade[8].
O compliance, por sua vez, visa implementar práticas dentro de uma companhia para garantir a conformidade com normas internas e externas.
Quando implementados em conjunto (governança corporativa, gestão de riscos e compliance), os riscos de desconformidades, fraudes, e outras irregularidades, diminuem significativamente. No caso Americanas, a ausência de efetividade ou adoção rigorosa de tais práticas permitiu que irregularidades contábeis passassem despercebidas, causando grandes danos financeiros e reputacionais à companhia.
O princípio da proporcionalidade na adoção do programa de compliance
Como dito, o programa de compliance deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica. Isto é, o programa deve ser adequado às características (porte, complexidade, etc.) atuais da empresa, garantindo, dessa forma, que atenda à sua finalidade.
É comum que empresas de grande porte, como a Americanas, adotem um sistema robusto de programa de integrade devdo ao volume de dados e informações transitando diariamente dentro da companhia. O porte empresarial também é fator significante para a opção da robustez, uma vez que o impacto financeiro ao qual estão expostas é muito maior. Em contrapartida, é comum que empresas de pequeno porte adotem controles menos sofisticados e, por vezes, manuais, inclusive devido ao baixo custo envolvido.
Aliás, o custo de implementação de ferramentas relacionadas ao programa de compliance é fator decisivo para várias companhias de pequeno e médio porte. Isso porque, na visão empresarial, as despesas envolvidas devem ser alocadas conforme a necessidade empresarial e não podem ser tamanhas a ponto de prejudicarem a operação e sobrevivência do negócio.
A importância da auditoria e da controladoria
A auditoria e a controladoria, embora áreas relacionadas, são distintas. A auditoria, que pode ser feita por equipe interna ou externa, tem por finalidade auditar (obviamente), isto é, revisar e avaliar, de forma independente e com base em um banco de dados fornecido pela empresa, se determinadas normas estão sendo seguidos pela companhia. Em outras palavras, a autoria faz a checagem de conformidade da empresa.
A controladoria, por sua vez, faz a gestão dos controles internos da companhia e tem por objetivo garantir que as informações sejam acuradas e as normas seguidas. A controladoria exerce um papel fundamental no acompanhamento da sustentabilidade das companhias, reunindo dados sobre transações, investimentos, receitas e custos, e gerando relatórios capazes de apontar desperdícios, erros e, em casos mais complexos, fraudes[9].
O compromisso da alta gestão e a responsabilidade dos gestores
Uma das chaves para o sucesso de qualquer programa de compliance é a participação e o compromisso da alta gestão devido a sua influência em relação ao resto da companhia e seu dever de liderança “pelo exemplo”. Afinal, são os executivos quem dão o “tom” da companhia, pois sabem (ou deveriam saber) qual é o melhor rumo a ser tomado para o sucesso do negócio (também usa-se “tone from the top” – em português, “tom do topo”).
Nesse sentido, aqueles que estão à frente do negócio são os primeiros que devem respeitar aos princípios éticos e norma internas e externas aderidas. Sem o apoio da alta administração, é improvável que a área de compliance ou de prevenção à lavagem de dinheiro consiga contribuir de maneira eficiente com a cultura da empresa. Dificilmente as ações de compliance irão se sobressair na instituição quando falta apoio financeiro, de pessoal e, principalmente, incentivo por parte dos gestores. Consequentemente, não haverá independência e autonomia do setor responsável pelo programa, o que dificulta ainda mais a sua atuação.[10]
No caso Americanas, a omissão dos executivos (que não foram conniventes com a fraude) em tratar com a devida seriedade e assegurar que as políticas e normas de integridade fossem seguidas, culminou no maior escândalo que a companhia já vicenciou em toda a sua história e que apesar de poder ser superada financeiramente, com certeza, ficará registrada por um bom tempo na memória daqueles quem mantêm algum relacionamento com a companhia, cuja credibilidade pode demorar para ser definitivamente restaurada.
Conclusão
O caso Americanas reforça a importância da governança corporativa, do compliance e da gestão de riscos na prevenção de fraudes e na sustentabilidade dos negócios. Empresas que negligenciam essas áreas estão mais sujeitas a impactos financeiros severos, danos reputacionais e perda de confiança do mercado.
A implementação de um programa de compliance eficiente, alinhado à governança e à auditoria, não é apenas uma exigência regulatória, mas um diferencial competitivo essencial para garantir a continuidade e credibilidade das organizações no mercado atual.
Referências
AMERICANAS: entenda a fraude que levou à operação da PF e à recuperação judicial de R$ 50 bilhões. G1 – Negócios. Disponível em: https://g1.globo.com/negocios. Acesso em: 15 nov. 2024.
COELHO, Claudio Carneiro Bezerra Pinto; SANTOS, Fernando Silva Moreira dos. Compliance. Apostila FGV, 2024.
Controladoria de Bancos. Deloitte. Disponível em: https://www.deloitte.com/br/pt/services/audit-assurance/perspectives/controladoria-de-bancos.html. Acesso em: 15 nov. 2024.
DECRETO Nº 11.129, DE 11 DE JULHO DE 2022. Art. 56, parágrafo único. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2022/L01129.htm. Acesso em: 15 nov. 2024.
Gestão de Riscos: Avaliação de Maturidade. Tribunal de Contas da União (TCU). Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/0F/A3/1D/0E/64A1F6107AD96FE6F18818A8/Gestao_riscos_avaliacao_maturidade.pdf. Acesso em: 15 nov. 2024.
Na CPI da Americanas, auditorias tentam se blindar e rebatem provas da empresa. Infomoney. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/na-cpi-da-americanas-auditorias-tentam-se-blindar-e-rebatem-provas-da-empresa/. Acesso em: 15 nov. 2024.
Princípios de Governança Corporativa. IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/blog/principios-de-governanca-corporativa. Acesso em: 15 nov. 2024.
The Big 4 Accounting Firms – The Complete Guide. Disponível em: https://www.accountingtools.com/articles/what-are-the-big-four-accounting-firms.html. Acesso em: 15 nov. 2024.
Importância da alta administração no programa de integridade. AML Reputacional. Disponível em: https://www.amlreputacional.com.br/2020/07/08/importancia-alta-administracao-programa-de-integridade/. Acesso em: 15 nov. 2024.
[1] AMERICANAS: entenda a fraude que levou à operação da PF e à recuperação judicial de R$ 50 bilhões. G1 – Negócios. Disponível em: https://g1.globo.com/negocios. Acesso em: 15 nov. 2024.
[2] The Big 4 Accounting Firms – The Complete Guide. Disponível em: https://www.accountingtools.com/articles/what-are-the-big-four-accounting-firms.html. Acesso em: 15 nov. 2024.
[3] Na CPI da Americanas, auditorias tentam se blindar e rebatem provas da empresa. Infomoney. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/na-cpi-da-americanas-auditorias-tentam-se-blindar-e-rebatem-provas-da-empresa/. Acesso em: 15 nov. 2024.
[4] COELHO, Claudio Carneiro Bezerra Pinto; SANTOS, Fernando Silva Moreira dos. Compliance. Apostila FGV, 2024.
[5] DECRETO Nº 11.129, DE 11 DE JULHO DE 2022. Art. 56, parágrafo único. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2022/L01129.htm. Acesso em: 15 nov. 2024.
[6] COELHO, Claudio Carneiro Bezerra Pinto; SANTOS, Fernando Silva Moreira dos. Compliance. Apostila FGV, 2024.
[7] Princípios de Governança Corporativa. IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Disponível em: https://www.ibgc.org.br/blog/principios-de-governanca-corporativa. Acesso em: 15 nov. 2024.
[8]Gestão de Riscos: Avaliação de Maturidade. Tribunal de Contas da União (TCU). Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/data/files/0F/A3/1D/0E/64A1F6107AD96FE6F18818A8/Gestao_riscos_avaliacao_maturidade.pdf. Acesso em: 15 nov. 2024.
[9] Controladoria de Bancos. Deloitte. Disponível em: https://www.deloitte.com/br/pt/services/audit-assurance/perspectives/controladoria-de-bancos.html. Acesso em: 15 nov. 2024.
[10] Importância da alta administração no programa de integridade. AML Reputacional. Disponível em: https://www.amlreputacional.com.br/2020/07/08/importancia-alta-administracao-programa-de-integridade/. Acesso em: 15 nov. 2024.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
FERREIRA, Bruna Cristina Alves. O Caso Americanas: Lições Sobre Compliance, Governança E Gestão De Riscos. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/colunas/o-caso-americanas-licoes-sobre-compliance-governanca-e-gestao-de-riscos/. Acesso em: 24/04/2025.