Responsabilidade da Administração Pública na terceirização de serviços e o ônus da prova da fiscalização
Autores
Resumo
A terceirização de serviços surgiu como resposta à necessidade industrial decorrente do aumento da demanda no cenário pós-Segunda Guerra Mundial. Esse modelo de gestão empresarial possibilita que as organizações deleguem atividades secundárias, otimizando assim a alocação de recursos para suas funções principais. Atualmente, a terceirização é amplamente adotada tanto no setor privado quanto no público. Entretanto, para proteger o trabalhador contra a precarização das condições laborais, é imprescindível que se assegure a responsabilidade do tomador de serviços, conforme estabelecido em lei. Este estudo tem como objetivo principal examinar a quem incumbe o ônus da prova do cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias quando a administração pública figura como contratante, considerando as inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações. A Lei nº 14.133/2021 representa uma mudança de enfoque, priorizando a governança e a busca por eficiência como objetivos centrais da licitação, em detrimento do combate exclusivo à corrupção. A fiscalização do contrato configura-se como instrumento fundamental para o alcance desses objetivos, além de indicar sobre quem recai o ônus da prova em casos de descumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias pela contratada.
Palavras-ChaveTerceirização. Lei 14.133/2021. Fiscalização. Ônus da Prova.
Abstract
The outsourcing of services emerged as a response to the industrial need resulting from the increase in demand in the post-World War II scenario. This business management model enables organizations to delegate secondary activities, thus optimizing the allocation of resources to their core functions. Currently, outsourcing is widely adopted in both the private and public sectors. However, to protect the worker against the precariousness of working conditions, it is essential to ensure the responsibility of the service taker, as established by law. The main objective of this study is to examine who has the burden of proof of compliance with labor and social security obligations when the public administration is a contractor, considering the innovations brought about by the New Bidding Law. Law No. 14,133/2021 represents a change in focus, prioritizing governance and the search for efficiency as central objectives of the bidding, to the detriment of the exclusive fight against corruption. The inspection of the contract is a fundamental instrument for achieving these objectives, in addition to indicating who has the burden of proof in cases of non-compliance with labor and social security obligations by the contractor.
KeywordsOutsourcing. Law 14,133/2021. Surveillance. Burden of Proof.
1. INTRODUÇÃO
A terceirização de mão de obra configura-se como uma estratégia voltada ao aprimoramento dos métodos produtivos. Esse modelo de gestão permite à organização delegar funções acessórias, direcionando seus recursos e capacidades produtivas para a atividade principal.
Consiste numa abordagem de gestão que permite delegar a um agente externo a responsabilidade operacional por processos ou serviços até então realizados na empresa (FRANCESCHINI et al., 2004).
A terceirização, inicialmente presente no setor privado, foi adotada pela administração pública, especialmente durante a transição da administração burocrática para a gerencial.
A legislação pátria trouxe dispositivo expresso acerca da terceirização na Administração Pública, no art. 10, § 7º, do Decreto-Lei 200/67, que instrumentalizou a reforma administrava, com enfoque na redução da máquina pública, no seguinte sentido:
para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos da execução.
O modelo de execução indireta tem sido objeto de discussões quanto às possíveis implicações para as condições de trabalho, considerando os princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho previstos na Constituição Federal do Brasil (art. 1º, III e IV, CF/88).
Observa-se a necessidade de definir a responsabilidade do tomador de serviços, seja do setor privado ou público, enquanto beneficiário da mão de obra.
A doutrina e jurisprudência brasileiras indicam que o tomador de serviços pode ser responsabilizado em casos de inadimplemento das obrigações trabalhistas e previdenciárias pela empresa contratada, com variações conforme a natureza jurídica do tomador.
A jurisprudência consolidada do TST prevê, em sua súmula 331, que:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
A Administração Pública, ao contratar mão de obra por meio de empresa interposta, pode ser responsabilizada subsidiariamente pelo descumprimento das obrigações trabalhistas pelo empregador, caso haja falha na fiscalização. Esse posicionamento foi ratificado pela Nova Lei de Licitações, que estabelece de forma expressa deveres da administração quanto à fiscalização dos contratos de prestação de serviços e prevê a responsabilidade em situações de inadimplemento.
2. INOVAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 14.133/2021
A Lei 14.133/2021, conhecida como Nova Lei de Licitações, revogou integralmente as disposições da antiga Lei de Licitações (8.666/1993) e da Lei 10.520/2002, que regulamentava o Pregão, incorporando suas diretrizes. O novo marco legal fundamenta-se na governança e na busca pela eficiência nas contratações públicas, priorizando os resultados das contratações em relação aos procedimentos formais.
O art. 5º da nova lei acrescentou princípios aos já expressos na legislação anterior, dispondo que:
Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
A incorporação de princípios como eficiência, planejamento, celeridade, economicidade, eficácia e segurança jurídica demonstra o objetivo da lei de aprimorar a eficiência e governança dos procedimentos licitatórios e da execução contratual. A gestão e fiscalização dos contratos são questões consideradas pelo legislador na elaboração da Lei 14.133/2021.
Em seu art. 18, a nova lei dispõe que “a fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata” e deve “abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação”, dentre eles a definição das condições de execução e pagamento (inciso III), o regime de prestação de serviços (inciso VII) e análise dos riscos que possam comprometer a boa execução contratual (inciso X).
Ademais disso, o modelo de gestão do contrato deve constar do termo de referência (art. 6º, XXII) e o edital deve conter as regras relativas à aquisição, entrega do objeto, fiscalização e à gestão do contrato administrativo a ser celebrado (art. 25).
O autor Marçal Justen Filho classifica a preocupação da novel legislação com o planejamento como um “compromisso com a verdade” (JUSTEN FILHO, 2021).
Especificamente quanto à terceirização de serviços, o art. 48 da mencionada lei restringe o objeto da contratação a “atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituam área de competência legal do órgão ou da entidade”.
Institui-se um regime especial de ingerência da administração para o acompanhamento de contratos envolvendo a contratação de serviços sob regime de dedicação exclusiva de mão de obra. Nessas situações, exige-se que o contratado atenda integralmente às demandas fiscalizatórias da administração, sob pena de aplicação de multa, especialmente no que se refere à comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas, incluindo o FGTS. Para tanto, devem ser apresentados documentos como: registro de ponto; comprovante de pagamento de salários e demais verbas salariais; comprovante de depósito relativo ao FGTS; recibo de concessão e pagamento de férias, bem como do respectivo adicional; comprovante de quitação das obrigações trabalhistas e previdenciárias; e recibos referentes ao pagamento de vale-transporte e vale-alimentação, quando aplicável. Todas essas exigências estão previstas no art. 50 da Nova Lei de Licitações e Contratos.
A responsabilidade pela fiscalização contratual é atribuída ao fiscal de contrato, oficialmente nomeado pela Administração, preferencialmente dentre os empregados ou servidores do quadro permanente. Este profissional deve acompanhar rigorosamente a execução do contrato, registrar todas as ocorrências relacionadas em documento próprio e adotar as providências necessárias para assegurar a regularidade do cumprimento contratual, bem como aplicar penalidades por eventuais infrações cometidas pela contratada ou pelos defeitos identificados, conforme dispõe o artigo 177.
A Administração Pública deve assumir especial compromisso com a capacitação dos agentes incumbidos de exercer tal mister. Tamanha a sua importância, a lei determina que ainda na fase de planejamento da licitação se empreenda esforços para a capacitação do pessoal que assumirá a atividade de fiscalização e gestão do contrato (art. 18, §1°, X).
A aplicação da nova lei requer o interesse pelo conhecimento, responsabilidade e aptidão dos envolvidos, vez que o foco é na eficiência e nos resultados com alto grau de tecnicidade. (…) Capacitar é necessário (GIROTO; SILVA, 2021).
A legislação estabelece as responsabilidades tanto do contratado quanto da Administração, prevendo obrigações recíprocas. Ao ente público cabe a fiscalização, enquanto ao prestador privado compete permitir e viabilizar esse acompanhamento, sem possibilidade de justificativas ou impedimentos à atuação fiscalizatória.
3. DEVERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA FISCALIZAÇÃO CONTRATUAL
A fiscalização da execução contratual constitui prerrogativa da administração pública, configurando-se como um dever institucional. A inexecução total ou parcial do contrato pode resultar na aplicação de penalidades ou, nos casos mais graves, na extinção do vínculo contratual, conforme previsto no artigo 104 da Lei 14.133/2021.
Segundo Justen Filho, essa prerrogativa constitui-se de um poder-dever, que é outorgado à Administração não no interesse próprio – mas para melhor realizar um interesse indisponível. O autor acrescenta que, verificados os pressupostos normativos, a Administração tem o dever de intervir no contrato e introduzir as modificações necessárias e adequadas à consecução dos interesses fundamentais (JUSTEN FILHO, 2023).
O exercício do poder-dever de acompanhamento contratual e verificação de sua conformidade não é uma faculdade do poder público, mas uma obrigação que deve ser observada, sob pena de responsabilidade.
Justen Filho assevera que, do mesmo modo, a fiscalização não é uma faculdade da administração, mas consiste no dever de acompanhar atentamente a atuação do particular.
A atividade permanente de fiscalização permite à Administração detectar, de antemão, práticas irregulares ou defeituosas. Isso permitirá identificar antecipadamente que o cronograma previsto não será cumprido. Enfim, a Administração poderá adotar com maior presteza as providências necessárias para resguardar os interesses fundamentais. (JUSTEN FILHO, 2023. Cit, p. 1324).
A fiscalização deve ser realizada por agente devidamente capacitado, conforme mencionado anteriormente, e não pode ser conduzida de forma negligente; ao contrário, requer uma atuação contínua e sistemática, em conformidade com a Lei 14.133/2021 e nos termos estabelecidos no edital e no contrato, visando assegurar o cumprimento dos deveres atribuídos à parte contratada.
Ademais, o novo regramento permitiu expressamente à Administração contratar terceiros para auxiliar o fiscal do contrato no cumprimento dos seus deveres (art. 117). Previu, ainda, a possibilidade de o fiscal ser auxiliado pelos órgãos de assessoramento jurídico e controle interno no ente respectivo, “que deverão dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual” (§ 3º, art. 117).
A fiscalização adequada do cumprimento das obrigações pela contratada, além de observar os princípios da eficiência, economicidade, eficácia e segurança jurídica, desempenha papel relevante na garantia dos direitos dos trabalhadores vinculados à empresa contratada, refletindo ainda na responsabilização da Administração em caso de inadimplência desses encargos.
4. RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A Lei 8.666/1993, previa, em seu art. 71, § 1º, que a “A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento”.
A Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, no entanto, pacificou-se no sentido de que:
“O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial” (Súmula 331, IV).
O TST entende que os integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem nesses mesmos moldes, caso evidenciada a sua conduta culposa, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora (Súmula 331, V).
Apesar do entendimento sumulado da Corte Superior Trabalhista, havia divergência jurisprudencial quanto à aplicação de tal responsabilidade, isso porque o art. 71, § 1º, da Lei 8.666/1993 aparentava prever o contrário.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC 16, definiu que o § 1º do art. 71 da Lei 8.666/1993 é constitucional e que a responsabilidade contratual da administração no caso de terceirização de serviços, ainda que na modalidade subsidiária, não é automática, mas depende da comprovação de conduta omissiva ou comissiva na fiscalização do contrato.
A questão foi mais uma vez submetida ao crivo do Supremo, que, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 760931 (Tema 246), complementou o debate acerca da responsabilização subsidiária do poder público, firmando tese no sentido de que:
“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao poder público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”.
A recente Lei de Licitações estabelece, de forma explícita, a responsabilidade da Administração em relação aos encargos previdenciários e trabalhistas das empresas contratadas.
A regra é similar ao normativo anterior, no sentido de que a inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações (art. 121, § 1°).
Contudo, exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, nos termos do § 2º do art. 121, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas. Mas isso, se comprovada a falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado, na esteira do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADC 16.
Note-se que a novel previsão legislativa foi mais rigorosa no que toca às obrigações previdenciárias, instituindo solidariedade em caso de inadimplemento.
A orientação quanto ao descumprimento das obrigações trabalhistas incorporou a jurisprudência consolidada do TST e STF quanto ao tema, de modo a pacificar de uma vez a questão.
Confirma-se, portanto, a importância da fiscalização eficaz e sistematizada do cumprimento das obrigações da contratada, não só para assegurar os direitos fundamentais do trabalhador, mas também para resguardar a Administração Pública de prejuízos incontáveis e não previstos no orçamento público.
5. ÔNUS DA PROVA DA FISCALIZAÇÃO
Apesar da definição de responsabilidade da Administração Pública pelos descumprimentos da contratada, tanto pela jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto pela Lei 14.133/2021, limitada aos casos em que há comprovação de falha na fiscalização das obrigações do contratado, ainda existe discussão sobre quem deve arcar com o ônus da prova da fiscalização quando há descumprimento das obrigações da contratada para fins de responsabilidade subsidiária da Administração Pública.
A distribuição clássica do ônus da prova impõe tal dever, quanto ao fato constitutivo do direito, a quem alega e, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito pleiteado, ao demandado (art. 818 da CLT e 373 do CPC).
Quanto à teoria estática da distribuição do ônus da prova, de acordo com a natureza dos fatos, leciona Chiovenda:
Provados pelo autor os fatos constitutivos, o réu, por seu lado, deve prover a sua prova, o que pode acontecer de dois modos: a) o réu entende de provar fatos que atestam a inexistência do fato provado pelo autor, de modo direto ou indireto, e temos a prova contrária ou contraprova; b) ou o réu, sem excluir o fato provado pelo autor, a forma e prova um outro que elide os efeitos jurídicos daquele, e temos a verdadeira prova do réu, a prova da exceção no sentido amplo.
A distribuição estática pode, em algumas situações, não ser a mais apropriada para o caso analisado, sendo possível que a inflexibilidade na atribuição do ônus da prova dificulte o reconhecimento do direito material.
O direito processual moderno admite a flexibilização dessa regra, especialmente nas hipóteses em que haja situação de desigualdade entre as partes ou que impossibilite a produção da prova por uma delas, podendo o juiz impor à parte que mais tem condições de produzir a prova o seu encargo.
Segundo Cambi, a inversão do ônus evita injustiças, não se podendo “proporcionar a vitória da parte mais forte, pela extrema dificuldade ou impossibilidade de a mais fraca demonstrar fatos que correspondem ao normal andamento das coisas ou quando isso pode ser facilmente provado pela parte contrária”.
Na lição de Marinoni, a inversão do ônus da prova é cabível:
Quando as especificidades da situação de direito material, objeto do processo, demonstrarem que não é racional exigir a prova do fato constitutivo, mas sim exigir a prova de que o fato constitutivo não existe, ou seja, a inversão do ônus da prova é imperativo de bom senso quando ao autor é impossível ou muito difícil provar o fato constitutivo, mas ao réu é viável, ou muito mais fácil, provar a sua inexistência.
A distribuição dinâmica do ônus da prova tem sido aplicada pelos tribunais para dirimir a questão de a quem pertence o ônus da prova da falha na fiscalização pela Administração Pública para fins de responsabilidade pelo descumprimento das obrigações da contratada.
Vale mencionar que no julgamento do Tema 246 o STF não definiu a quem compete o ônus da prova nesses casos, entendendo tratar-se de questão de natureza infraconstitucional.
Todavia, mais tarde, o Supremo afetou a questão à repercussão geral, no tema 1.118, até o momento pendente de julgamento, mediante o qual definirá o “ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246)”.
No âmbito trabalhista, o TST pacificou entendimento no sentido de que é do tomador dos serviços o ônus de demonstrar que fiscalizou de forma adequada o contrato de prestação de serviços, conforme definiu a SBDI-1, ao julgamento do E-RR-925-07.2016.5.05.0281.
A Corte Superior Trabalhista considerou que a Lei 8.666/93 ao impor ao ente público o dever de fiscalizar o cumprimento oportuno e integral das obrigações assumidas pelo contratado, indica que cabe ao poder público o ônus de demonstrar que fiscalizou de forma adequada o contrato de prestação de serviços.
Todavia, antes mesmo do julgamento do Tema 1118 (STF), a Suprema Corte já vinha dando indícios de que sua posição não seria convergente com o TST, isso porque as decisões da Corte Trabalhista deram ensejo a diversas reclamações no STF, cujo mérito vinha sendo acolhido pela Suprema Corte.
Por fim, ao concluir o julgamento do Tema da Repercussão Geral 1118, o STF (RE 1.298.647), definiu que o ônus da prova da fiscalização incumbe ao trabalhador (“Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público”), diante da eficácia vinculante dos precedentes qualificados, não há outra alternativa à Corte Trabalhista senão adequar sua jurisprudência aos termos definidos pela Corte Constitucional.
6. CONCLUSÃO
Cabe à Administração Pública a fiscalização da execução dos contratos e do cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias das empresas contratadas, de forma sistemática e efetiva, especialmente em casos de contratação de mão de obra exclusiva. Para isso, pode utilizar as prerrogativas previstas na lei, edital de licitação e contrato, devendo designar um fiscal de contrato capacitado.
Se houver descumprimento das obrigações pela contratada, e nos casos de serviços contínuos com dedicação exclusiva, a Administração será responsável solidária pelos encargos previdenciários e subsidiária pelos trabalhistas, caso falhe na fiscalização das obrigações da contratada, conforme § 2º do art. 121 da Lei 14.133/2021.
O entendimento do Tribunal Superior do Trabalho era firme no sentido de que, considerando que à Administração compete o dever de fiscalizar a execução do contrato, é certo que ela tem aptidão para produzir prova de que procedeu à fiscalização do cumprimento das obrigações da contratada, competindo-lhe, no caso concreto, o ônus da prova da fiscalização do cumprimento das obrigações pela empresa contratada.
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal definiu, ao julgamento do Tema de Repercussão Geral 1118 (RE 1.298.647), que (“Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público”.
Diante disso, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho deve se adequar à posição da Suprema Corte, passando a decidir no sentido de que o ônus da prova da fiscalização deficiente por parte da Administração Pública compete ao trabalhador, não se admitindo a presunção de falha pelo simples inadimplemento das obrigações por parte da contratada.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
ABREU, Vitória Maria Carvalho. Responsabilidade da Administração Pública na terceirização de serviços e o ônus da prova da fiscalização. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17297988, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 08/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/responsabilidade-da-administracao-publica-na-terceirizacao-de-servicos-e-o-onus-da-prova-da-fiscalizacao/. Acesso em: 28/10/2025.
