Relato de experiência com leitura literária: “O meu pé de Laranja Lima” no Ensino Médio
Autores
Resumo
Este artigo é um relato de experiência sobre o ensino planejado das aulas de leitura nas eletivas do Ensino Médio. O relato foi construído com base na vivência pedagógica que possibilitou a esses estudantes o acesso à obra e a democratização da literatura. Esse trabalho apresentará como ocorreram esses momentos de leitura do livro O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, e como, durante esse processo, foi possível gerar debates que exploravam suas temáticas centrais, como a infância, a solidão, a imaginação, as desigualdades sociais do Brasil daquela época, as relações familiares e seu impacto na vida dos sujeitos. A proposta é possibilitar, através da leitura compartilhada e das discussões que ela suscita, o incentivo à reflexão crítica sobre o contexto da história, sobre as emoções do protagonista, o menino Zezé, e do personagem ‘pé de laranja lima’ tanto literal quanto metaforicamente, representando o refúgio emocional para Zezé. As discussões foram guiadas de maneira a articular a linguagem literária e emoções que os estudantes precisam conhecer e entender a partir de suas próprias experiências. Durante as aulas, os alunos foram desafiados a pensar sobre as dificuldades enfrentadas por crianças em situações de vulnerabilidade social, promovendo a empatia e a criticidade. A avaliação foi feita por meio da participação ativa durante as leituras e suas discussões, fomentando assim, a curiosidade necessária para que os estudantes, por conta própria, pudessem realizar outras leituras nos mesmos moldes aplicados em sala de aula.
Palavras-ChaveLeitura. Experiência. Literatura
Abstract
This article is an experience report on the planned teaching of reading classes in high school electives. The report was constructed based on the pedagogical experience that allowed these students access to the work and the democratization of literature. This work will present how these moments of reading the book O Meu Pé de Laranja Lima, by José Mauro de Vasconcelos, occurred and how, during this process, it was possible to generate debates that explored its central themes, such as childhood, loneliness, imagination, social inequalities in Brazil at that time, family relationships and their impact on the lives of the subjects. The proposal is to enable, through shared reading and the discussions it raises, the encouragement of critical reflection on the context of the story, on the emotions of the protagonist, the boy Zezé, and the character 'pé de orange lima' both literally and metaphorically, representing the emotional refuge for Zezé. Discussions were guided in a way that articulated the literary language and emotions that students needed to know and understand from their own experiences. During classes, students were challenged to think about the difficulties faced by children in socially vulnerable situations, promoting empathy and criticality. The assessment was carried out through active participation during the readings and their discussions, thus encouraging the necessary curiosity so that students, on their own, could carry out other readings along the same lines applied in the classroom.
KeywordsReading. Experiences. Literature
1. “O DESCOBRIDOR DE COISAS” – A DESCOBERTA DA POSSIBILIDADE DA LEITURA EM AMBIENTE ESCOLAR
A 1ª seção desse artigo faz referência ao capítulo introdutório da obra lida nas aulas e na experiência aqui relatada :O Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. No capítulo, o personagem Zezé é apresentado ao leitor e sua vivacidade, própria de uma criança feliz, apesar dos problemas que vivencia, mostra quantas descobertas ligadas à curiosidade que o move é capaz de fazer. “E eu estava muito contente porque meu irmão mais velho estava me dando a mão e ensinando as coisas” (VASCONCELOS, 2009, p.11)
No Ensino Médio de uma escola pública regular, muitos estudantes não têm contatos constantes com obras literárias e é importante que o professor possa mediar esse contato para que seja possível a eles se tornarem também “descobridores de coisas” tanto a partir das aulas de leitura quanto pelas reflexões que ela suscitará nas vidas desses sujeitos.
o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Daí sua importância na escola, ou melhor, sua importância em qualquer processo de letramento, seja aquele oferecido pela escola, seja aquele que se encontra difuso na sociedade. (COSSON, 2022, p.12).
Nos anos que sucederam à pandemia do COVID-19, pode-se perceber uma maior falta de contato entre os estudantes e a leitura literária. Muitas vezes, o trabalho com a literatura no Ensino Médio tem um currículo atrelado às discussões sobre a análise de obras clássicas, seus autores, escolas literárias, principais características.
No ensino médio, o ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura brasileira, usualmente na sua forma mais indigente, quase como uma cronologia literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores, acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma coisa de retórica em uma perspectiva para lá de tradicional. (COSSON, 2022, p.21)
Num contexto escolar pós pandêmico, em que a relidade da falta de acesso às aulas remotas atingiu grande parte desse público, era preciso repensar as práticas pedagógicas para que fosse possível, a partir de um trabalho planejado e sistemático, possibilitar a esses sujeitos o contato com a leitura literária na escola.
A escola é o ambiente que mais propicia contatos sistemáticos com esse tipo de leitura e, através de uma mediação planejada pelo professor, possibilita a descoberta, por parte do aluno, de narrativas diversas, enriquecendo sua experiência como leitor e ampliando o repertório sociocultural desses estudantes. (MEDEIROS, 2024, p. 01)
A literatura e a forma como ela é ensinada possibilitam a discussão das necessidades dos sujeitos e a democratização de conhecimentos sistemáticos, mediados pela figura do professor e saberes empíricos que fomentam essas reflexões. “o certo é que a literatura não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza” (COSSON, 2022, p.23)
A partir da necessidade de repensar o ensino da literatura, dialogando com as mudanças ocasionadas pela implantação do Novo Ensino Médio (NEM), que culminou com a discussão do currículo dessa etapa de ensino e com a elaboração da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), é que a experiência aqui apresentada foi pensada, planejada e excutada. “Em relação à literatura, a leitura do texto literário, que ocupa o centro do trabalho no Ensino Fundamental, deve permanecer nuclear também no Ensino Médio” (BRASIL, 2018, p.499)
Há, na perspectiva educacional, para cada proposta curricular organizada e sistematizada, um currículo oculto que interage com os saberes compartilhados pela tradição. É necessário adaptar esse currículo às necessidades do ser humano através da contribuição da escola ao legitimar esses saberes na vida em sociedade.
Um dos maiores desafios da escola do século XXI é, rivalizando com a dinamicidade das redes sociais, fomentar no jovem do Ensino Médio, o gosto pela leitura e o desenvolvimento do hábito de ler. Além das dificuldades relacionadas ao pouco domínio da língua materna no que diz respeito à falta de fluência e proficiência leitora, a escola se vê responsável por ser um espaço de formação cidadã de jovens que, exceto pelo próprio meio escolar, pouco ou nenhum acesso têm a acervos literários diversos. (MEDEIROS, 2024, p.02)
A obra que norteou as leituras compartilhadas nessa experiências é o livro: O Meu Pé de Laranja Lima, do brasileiro José Mauro de Vasconcelos. A obra é uma autobiografia que oportuniza a reflexão sobre temáticas universais, como a infância do protagonista, sua fértil imaginação, as dificuldades que vivencia, as relações de amizade e familiares que o cercam.
Zezé, ao precisar se mudar com a família por problemas financeiros, “Tudo isso é para juntar dinheiro e pagar o aluguel dessa nova casa. A outra, papai já está devendo bem oito meses” (VASCONCELOS, p.2009, p.16), encontra na nova casa um pé de laranja lima, com quem estabelece uma amizade que flui por meio do fluxo de consciência do menino, que desabafa com a árvore sobre suas tristezas, problemas, desafios e sonhos. “Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aquí no meu tronco que você escuta meu coração bater “(VASCONCELOS, 2009, p.33). É a partir dessa amizade e dessas conversas que ele consegue lidar com os sentimentos que vivencia em sua rotina: abandono e tristeza.
A leitura dessa obra possibilitou aos estudantes, através da narrativa da vida de Zezé, fazer uma análise e reflexão sobre as emoções humanas e das complexidades que cercam a vida de uma criança pobre. O objetivo desses momentos de leitura compartilhada foi possibilitar aos alunos não apenas compreenderem a trama e conhecerem as particularidades de seus personagens, mas também se identificarem com os sentimentos e desafios enfrentados pelo protagonista.
(…) se o texto falar de experiências semelhantes às já vividas pelo leitor, se a história se situar em locais de sua vivência, se o tempo retratado for aquele que o leitor conheceu, a leitura vai ter o sabor gratificante do reconhecimento. Se, ao contrário, o mundo da ficção lida for totalmente diferente da experiência do leitor, ele terá o prazer da descoberta (SILVA, 2009, p.24).
2. “O PASSARINHO, A ESCOLA E A FLOR”- METODOLOGIA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA EXECUTADA NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
O título dado à seção deste artigo, que vai apresentar a metodologia dessa experiência, faz alusão ao capítulo da obra lida em que Zezé é, oficialmente apresentado e introduzido no ambiente escolar. O menino chega à escola já sabendo ler. Esse feito se constitui em um mistério para sua família, pois ele não foi ensinado e, aos cinco anos, na época em que a narrativa acontece, as crianças não tinham acesso à educação infantil. Ao mostrar que sabia ler, Zezé é enfim levado à escola: “E vieram as novidades. As brigas. As descobertas de um mundo onde tudo era novo.” (VASCONCELOS, 2009, p.69)
As turmas selecionadas para o trabalho sistemático de leitura foram as eletivas dos 1º anos do Ensino Médio. Com a implantação das mudanças promovidas pelo NEM, foram introduzidos no currículo escolar os itinerários formativos.
Tais formas diversificadas de organização dos espaços e tempos escolares possibilitam uma flexibilização curricular tanto no que concerne às aprendizagens definidas na BNCC, já que escolhas são possíveis desde que contemplem os diferentes campos, como também às articulações da BNCC com os itinerários formativos (BRASIL, 2018, p.489).
Para que fosse possível o trabalho com a leitura coletiva, as turmas foram reagrupadas não em suas séries de matrículas, mas em grupos diversos nos quais os alunos de todos os 1º anos estariam em interação através de grupos de eletivas diferentes: “vai além de possibilitar aos estudantes vivências situadas das práticas de linguagens. Envolve conhecimentos e habilidades mais contextualizados e complexos.” (BRASIL, 2018, p.489) Dois desses grupos, um no período matutino e outro no período vespertino, foram organizados sob o título de Clube Círculo de leitura.
Como o pressuposto do trabalho girava em torno da democratização da literatura, a professora utilizou, nesse processo, seu acervo próprio, visto que já possuía o livro em quantidade suficiente para que a leitura fosse realizada em duplas. Cada aula consistia em 50 minutos, e o roteiro do momento era previamente organizado de forma que a cada momento fossem lidas 10 páginas da história, ou partes em que se pudesse suspender a leitura, fomentando nos alunos a curiosidade com o que seria lido depois ou como aquele capítulo seria concluído.
Na escola, um círculo de leitura é uma estratégia didática privilegiada de letramento literário porque, além de estreitar laços sociais, reforçar identidades e solidariedade entre os participantes, possui um caráter formativo essencial ao desenvolvimento da competência literária, possibilitando, no compartilhamento da obra lida por um grupo de alunos, a ampliação das interpretações individuais. (COSSON, 2023, p.09)
Para ler a obra completa, foram necessárias um total de 15 aulas. Em cada momento de interação com a obra, era possível, através do trabalho de mediação da professora estabelecer o envlvimento da turma tanto com a leitura em si, como com as reflexões que a narrativa fomentava: “é uma prática de leitura compartilhada na qual os leitores discutem e constroem conjuntamente uma interpretação do texto lido anteriormente” (COSSON, 2023, p. 09).
A primeira parte do livro, intitulada “No Natal, às vezes nasce o menino diabo”, nos apresenta Zezé e sua numerosa e pobre família. Aqui, os estudantes conheceram os irmãos de Zezé, os vivos, “os doados” e os natimortos. Foi possível então, conhecer a realidade de um Brasil onde era comum famílias numerosas, fome, desemprego, mortalidade e trabalho infantil. “Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis anos de idade quando fizeram a Fábrica que puseram ela trabalhando” (VASCONCELOS, 2009, p.30).
A leitura é, portanto, uma espécie de atualização em que o texto do passado passa a ser do presente, mantendo paradoxalmente ambas as posições, ou seja, o texto é do passado, mas porque o li, ele também passa a ser do meu presente. (Cosson, 2023, p. 15)
A segunda parte da história de Zezé chamada: “Foi quando apareceu o Menino Deus em toda a sua tristeza”, apresenta o menino conhecendo aquele que se tornaria seu grande amigo, o Portuga, Manuel Valadares. Como essa amizade surge de um primeiro contato muito tumultuado, em que o menino apanha após tentar pegar “morcego” (carona na traseira) do carro do português, ele e seu novo amigo resolvem manter a amizade em segredo: “no começo o segredo existiu só porque eu tinha vergonha de ser visto no carro do homem que me dera umas palmadas Depois persistiu porque era bom existir um segredo” (VASCONCELOS, 2009, p.119)
É nessa parte do livro que os alunos conhecem a violência contra uma criança ao lerem sobre as “Duas surras memoráveis” que Zezé sofre por parte de sua irmã mais velha e de seu pai. A violência das pancadas chamou a atenção dos estudantes e houve um debate sobre como muitas crianças e adolescentes eram tratadas antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “o círculo de leitura ocupa uma posição privilegiada pelos benefícios que oferece tanto ao aprendizado da leitura quanto ao desenvolvimento integral do aluno como cidadão.” (COSSON, 2023, p.23)
Através dessa leitura guiada e motivada pela professora, os estudantes/leitores tiveram também contato com uma das maiores perdas da literatura brasileira: a morte trágica do grande amigo de Zezé, o Portuga e com o luto profundo que se abateu sobre a criança, que todos atribuíam ao fato de o pé de laranja lima ser arrancado em breve para que a rua fosse ampliada. Como a amizade era secreta, poucos souberam a verdadeira causa da tristeza que revestiu o menino. “A casa foi-se vestindo de silêncio como se a morte tivesse passos de seda (…). E eu não me esquecia dele. Das suas risadas. Da sua fala diferente” (VASCONCELOS, 2009, p.169).
Aqui, também se entende que o título da obra e o pé de laranja lima era uma metáfora. O fluxo de consciência que Zezé deixava aflorar quando conversava com a árvore demonstrava sua precoce maturidade para muitos dos problemas que a ele se apresentaram durante a narrativa. Quando Zezé vive o luto pela perda do amigo e todos atribuem sua tristeza ao fim próximo da árvore com a qual fez amizade, o leitor pode perceber, em uma conversa entre Zezé e seu pai, que o pé de laranja lima é, para o menino, o Portuga.
E, olhando o seu rosto que também se encontrava chio de lágrimas, murmurei como um morto:
– Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima. (VASCONCELOS, 2009, p.182).
3. “A CONFISSÃO FINAL” – CONSIDERAÇÕES FINAIS
O título da última seção desse artigo é também o título do último capítulo da obra que motivou esse trabalho de leitura. Aqui, é possível perceber o caráter autobiográfico da obra de Vasconcelos e perceber como aquele menininho conseguiu transfomar sua dor em palavras. “A verdade, meu querido Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo” (VASCONCELOS, 2009, p.183).
A leitura sistematizada na eletiva Clube Círculo de leitura atingiu seu objetivo. Além de fomentar a participação dos alunos durante as aulas, nos momentos de leitura e de discussão, a história do menino Zezé comoveu a maior parte dos estudantes, que se sentiram motivados a fazer outras leituras de obras literárias sugeridas pela professora.
Em suma, como leitura compartilhada, um círculo de leitura é uma atividade pedagógica privilegiada para incentivar, desenvolver e consolidar diversas práticas de leitura e de socialização que são fundamentais tanto na formação do leitor quanto na educação integral do aluno (COSSON, 2023, p. 25).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. Ed. 13ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2022. 140 p.
COSSON, Rildo. Como criar Círculos de Leitura na sala de aula. 1. Ed. 1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto,2023. 128 p.
MEDEIROS, Ana Reges Pinheiro de. A formação do leitor literário através da prática sistemática de leitura nas aulas de Língua Portuguesa. Revista Ft, Acopiara, v. 28, n. 139, p. 01-02, 31 out. 2024.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. Leitura Literária & outras leituras: impasses e alternativas no trabalho do professor. Belo Horizonte: Rhj, 2009. 216 p.
VASCONCELOS, José Mauro de. O Meu Pé de Laranja Lima. 3 Ed. São Paulo: Editora Melhoramentos,190 p.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
MEDEIROS, Ana Reges Pinheiro. Relato de experiência com leitura literária: “O meu pé de Laranja Lima” no Ensino Médio. Revista Di Fatto, Subcategoria Artes e Letras, Literatura, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14707368, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 20/01/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/relato-de-experiencia-com-leitura-literaria-o-meu-pe-de-laranja-lima-no-ensino-medio/. Acesso em: 24/04/2025.