Os limites da coisa julgada coletiva e a inconstitucionalidade do Artigo 16 da Lei Nº 7.347/1985
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Resumo
Este artigo analisa o conceito de coisa julgada no direito processual brasileiro e sua relação com a segurança jurídica, essencial para estabilizar as relações submetidas ao Judiciário. Ao contextualizar a coisa julgada nos artigos da LINDB e do Novo CPC, a pesquisa revisa as interpretações doutrinárias e examina o impacto da decisão do STF que considerou inconstitucional o art. 16 da Lei de Ação Civil Pública, ao limitar a eficácia territorial das sentenças coletivas. Essa decisão visou assegurar a igualdade e a proteção ampla dos direitos coletivos, considerando o alcance regional ou nacional dos interesses em jogo.
Palavras-ChaveCoisa julgada inconstitucional. Direitos coletivos. Segurança jurídica
Abstract
This article examines the legal concept of res judicata and its connection to the principle of legal certainty, aiming to explore the conditions under which judicial decisions should remain unchangeable. Analyzing legislative and doctrinal perspectives, it discusses the importance of stabilizing legal relations and highlights recent judicial developments that challenge limitations to res judicata, particularly in the context of collective lawsuits. The study focuses on a recent Supreme Court ruling that declared Article 16 of the Public Civil Action Law (Law 7.347/1985) unconstitutional, thereby extending the effectiveness of collective judgments beyond territorial limits. By reinstating the original provisions of the article, the ruling reinforces equal protection, procedural efficiency, and consistent nationwide application of collective judgments.
KeywordsUnconstitutional res judicata. Collective rights. Legal certainty
1. INTRODUÇÃO
Qualquer definição de coisa julgada passa necessariamente pelo conceito de segurança jurídica, uma vez que, dentre outras finalidades, almeja-se com a estabilização das relações jurídicas submetidas ao crivo do Poder Judiciário atingir um dos escopos do processo, qual seja a pacificação social. Para isso, o legislador se desincumbiu de seu ônus e há muito tempo o previu, conforme se extrai do art. 6º, §3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
(…)
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.
Na mesma direção, o Novo Código de Processo Civil (CPC) destacou capítulo específico para tratar do tema, entre os arts. 502 e 508, definindo-a no primeiro dispositivo:
Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
No estudo da doutrina, existem diversas noções para a coisa julgada com enfoques diversos sobre o que se tornaria imutável a partir da sentença judicial. No entanto, como bem observa Daniel Amorim Assumpção Neves, há pontos em comum, sobre os quais se costuma convergir:
Apesar da notória discussão doutrinária, uma análise profunda das três principais correntes doutrinárias expostas é suficiente para se notar que existem mais semelhanças do que diferenças entre os doutrinadores. Todos reconhecem que toda sentença tem um elemento declaratório, consubstanciado na subsunção da norma abstrata ao caso concreto, e considerado pelo aspecto de elemento que compõe o conteúdo da decisão ou que gera efeitos práticos para fora do processo, torna-se imutável e indiscutível. Parecem também concordar que eventos futuros, referentes à vontade das partes, poderão modificar outros efeitos gerados pela sentença, como ocorre no efeito condenatório no caso de pagamento da dívida ou do novo casamento no caso do divórcio.[1]
Como se denota, a importância do tema para o processo civil é de extrema relevância, ganhando ainda mais força quando se está a tratar dos processos coletivos, os quais, por natureza e como regra geral, são dotados de maior alcance do que as lides individuais.
Nesse cenário, o escopo do presente artigo é analisar o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 7.347/1985, com redação dada pela Lei nº 9.494/1997, e determinou a consequente aplicação do disposto no art. 93 do Código de Defesa de Consumidor (CDC) no processo coletivo de abrangência nacional ou regional, no intuito de explicitar o alcance subjetivo das referidas decisões judiciais.
2. A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 16 DA LEI DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Delimitar a eficácia subjetiva de uma decisão judicial constitui etapa precedente para se verificar a quem será destinado o comando normativo nela contido. Com efeito, o art. 506 do CPC assevera que a sentença atinge apenas àqueles que participam do processo, sendo vedado causar prejuízo a quem nele não intervenha:
Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.
No processo coletivo, a regra principal encontra-se situada na Lei nº 7.347/1985, a qual disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico outras providências. Trata-se do principal diploma legislativo que disciplina o processo coletivo nacional. O art. 16, em sua redação original, assim regulava a eficácia subjetiva da coisa julgada:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
Posteriormente, por intermédio da Lei nº 9.494/1997, o legislador federal visou restringir o alcance da sentença coletiva, ao incluir a limitação territorial para aquela do seu órgão prolator:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
A inovação legislativa não foi bem recebida pela doutrina, uma vez que poderia acarretar prejuízos à jurisdição, dentre as quais violações à economia processual, à isonomia, à segurança jurídica, à máxima eficiência da tutela coletiva, dentre outras. A título exemplificativo, uma ilicitude poderia ser reconhecida em determinado município de um Estado da Federação, ao passo que na cidade vizinha, pertencente a outra jurisdição, mas separada apenas por uma rua, não se faria contrária ao ordenamento jurídico.
Ademais, Hugo Nigro Mazzilli acentua que a reforma confundiu os conceitos de competência, coisa julgada e eficácia da decisão:
Com efeito, a Lei 9.494/97 confundiu competência com coisa julgada. A imutabilidade erga omnes de uma sentença não tem nada a ver com a competência do juiz que a profere. A competência importa para saber qual órgão da jurisdição vai decidir a ação; mas a imutabilidade do que ele decidiu estende-se a todo o grupo, classe ou categoria de lesados, de acordo com a natureza do interesse defendido, o que muitas vezes significa, necessariamente, ultrapassar os limites territoriais do juízo que proferiu a sentença.[2]
Nesse caminhar, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconhecia a invalidade da alteração promovida pela Lei nº 9.494/1997, pois, de fato, percebeu-se a confusão entre competência territorial e limites da coisa julgada:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. ART. 16 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO COLETIVA. LIMITAÇÃO APRIORÍSTICA DA EFICÁCIA DA DECISÃO À COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO JUDICANTE. DESCONFORMIDADE COM O ENTENDIMENTO FIRMADO PELA CORTE ESPECIAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM JULGAMENTO DE RECURSO REPETITIVO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (RESP N.º 1.243.887/PR, REL. MIN. LUÍS FELIPE SALOMÃO). DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS.
1. No julgamento do recurso especial repetitivo (representativo de controvérsia) n.º 1.243.887/PR, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a regra prevista no art. 16 da Lei n.º 7.347/85, primeira parte, consignou ser indevido limitar, aprioristicamente, a eficácia de decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante.
2. Embargos de divergência acolhidos para restabelecer o acórdão de fls. 2.418-2.425 (volume 11), no ponto em que afastou a limitação territorial prevista no art. 16 da Lei n.º 7.347/85.
STJ. Corte Especial. EREsp 1134957. Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 24/10/2016.
Destarte, antes mesmo da manifestação definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a matéria, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já havia se posicionado por intermédio da Nota Técnica nº 1/2020 – PRESI, na qual concluiu que a controvérsia possuiria natureza infraconstitucional e, por esse motivo, seria de atribuição do STJ dar a última palavra, que, como delineado, seria pela ilegalidade da limitação proposta:
REPERCUSSÃO GERAL 1.075. ART. 16 DA LEI 7.347/1985. COISA JULGADA COLETIVA. LIMITES TERRITORIAIS. AUSÊNCIA DE QUESTÃO CONSTITUCIONAL. ADEQUAÇÃO DO ENTENDIMENTO FIRMADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
1. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em diversos precedentes, inclusive de natureza vinculante, que a questão da coisa julgada coletiva é de índole infraconstitucional, não devendo, portanto, o Tribunal, modificar o atual pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, que é o constitucionalmente competente para a causa. Referência: Tema 715 da Repercussão Geral: “Limites territoriais da eficácia de decisão prolatada em ação coletiva”.
2. Como ressalta a totalidade da doutrina processual coletiva, o alcance da coisa julgada coletiva é definido pelo art. 103 do CDC e depende, como em qualquer caso, individual ou coletivo, das dimensões do direito material litigioso e do perfil do litígio coletivo concretamente verificado, essas dimensões terão a eficácia e validade estabilizadas na decisão que transitará em julgado. As regras de competência territorial são um conjunto de normas destinadas a distribuir processos entre juízes, não a definir o alcance das decisões de cada um deles. Tanto é assim que a distribuição dos municípios nas diferentes comarcas é feita por ato infralegal dos tribunais, não por lei. Isso significa que o art. 16 da LACP, em sede de interpretação exegética, permitiria que os tribunais interferissem no alcance das decisões dos juízes, ferindo, dentre outras, a garantia constitucional do juiz natural.
3. A literalidade do art. 16 prejudica o cidadão integrante da coletividade titular de direitos coletivos, que teria menores oportunidades de acesso à jurisdição, eis que seriam necessárias, para a tutela adequada de seus direitos, tantas ACPs quantas fossem as comarcas e subseções judiciárias do país.
4. Tal caminho interpretativo tampouco interessaria ao agente econômico regular, porque, em vez de ser demandado em uma única ACP, na qual poderia obter uma coisa julgada com eficácia erga omnes de improcedência da pretensão, passará a ser demandado em múltiplas de ações, em todo o país.
5. A literalidade do art. 16 da LACP cria oportunidade de concorrência desleal em favor de agentes econômicos que operam nacionalmente em detrimento daqueles que concentram suas atividades localmente. Estes poderão ser demandados em uma única ação, enquanto os primeiros poderão se beneficiar de atos ilícitos que pratiquem, desde que os distribuam em diversas comarcas do país, contando com a inatividade dos legitimados coletivos.
6. Conclusão pelo não reconhecimento de questão constitucional ou, caso reconhecida, pela manutenção do atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Por derradeiro, o STF corroborou as conclusões dos demais órgãos supracitados e em sede de precedente qualificado estatuiu a inconstitucionalidade da redação atual do dispositivo com fundamento na ampla proteção dos interesses difusos e coletivos e no retrocesso representado pela alteração legislativa, o que vai de encontro à evolução normativa relativa ao tema. Pesaram, ainda, os argumentos atinentes à violação à isonomia e à efetividade da prestação jurisdicional, uma vez que o local de residência do jurisdicionado o colocaria em posição de vantagem ou desvantagem, além de não se razoável a propositura da mesma ação em diversas comarcas do país.
Ementa: CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 16 DA LEI 7.347/1985, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 9.494/1997. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO DOS EFEITOS DA SENTENÇA AOS LIMITES DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO PROLATOR. REPERCUSSÃO GERAL. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS DESPROVIDOS.
1. A Constituição Federal de 1988 ampliou a proteção aos interesses difusos e coletivos, não somente constitucionalizando-os, mas também prevendo importantes instrumentos para garantir sua pela efetividade.
2. O sistema processual coletivo brasileiro, direcionado à pacificação social no tocante a litígios meta individuais, atingiu status constitucional em 1988, quando houve importante fortalecimento na defesa dos interesses difusos e coletivos, decorrente de uma natural necessidade de efetiva proteção a uma nova gama de direitos resultante do reconhecimento dos denominados direitos humanos de terceira geração ou dimensão, também conhecidos como direitos de solidariedade ou fraternidade.
3. Necessidade de absoluto respeito e observância aos princípios da igualdade, da eficiência, da segurança jurídica e da efetiva tutela jurisdicional.
4. Inconstitucionalidade do artigo 16 da LACP, com a redação da Lei 9.494/1997, cuja finalidade foi ostensivamente restringir os efeitos condenatórios de demandas coletivas, limitando o rol dos beneficiários da decisão por meio de um critério territorial de competência, acarretando grave prejuízo ao necessário tratamento isonômico de todos perante a Justiça, bem como à total incidência do Princípio da Eficiência na prestação da atividade jurisdicional.
5. RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS DESPROVIDOS, com a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “I – É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original. II – Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). III – Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas”. STF. Plenário. RE 1101937/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 7/4/2021 (Repercussão Geral – Tema 1075) (Info 1012).
Na mesma decisão, a Corte Suprema definiu de quem seria a competência para o julgamento das ações civis públicas, a depender da extensão do dano: tratando-se de reflexo local, aplica-se o art. 2º da Lei nº 7.347/1985 (“as ações previstas nesta Lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa”), ao passo que, em se cuidando de ato com impacto regional ou nacional, em conformidade com o disposto no art. 21 da mesma lei e no art. 90 do CDC, que refletem a adoção de um microssistema processual coletivo, deve-se seguir o que aponta o art. 93, II, do Código Consumerista:
Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor
Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:
(…)
II – no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
3. CONCLUSÃO
Com base no exposto, pode-se concluir que a tentativa de limitação imposta pelo legislador federal mediante a alteração promovida pela Lei nº 9.494/1977 no art. 16 da Lei 7.347/1985 esbarrou em fortes argumentos jurídicos, mas também lógicos. Uma situação jurídica decidida em dado território não se modifica se levada a outro. A competência territorial não é sinônima de limites subjetivos de coisa julgada. Trata-se de institutos distintos e com propósitos também díspares. Assim, são outros os fatores que devem ser considerados para se definir aqueles que serão atingidos pela sentença judicial coletiva, como, a título ilustrativo, a abrangência das partes envolvidas, a representatividade adequada, a identidade de situações jurídicas, os interesses individuais não representados, dentre outros.
[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Volume Único. 12. Ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 864.
[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em Juízo. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 698.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
FARIAS, Rodney Martins. Os limites da coisa julgada coletiva e a inconstitucionalidade do Artigo 16 da Lei Nº 7.347/1985. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciência Política, Ciências Contábeis, Ciências Humanas, Direito, Economia, Gestão Pública, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/os-limites-da-coisa-julgada-coletiva-e-a-inconstitucionalidade-do-artigo-16-da-lei-no-7-347-1985/. Acesso em: 24/04/2025.