O papel do Advogado-Geral da União no controle concentrado de constitucionalidade: evolução da jurisprudência do STF

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: C.E.R. em 2025-10-14 13:24:00

Submissão: 13/10/2025

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Simone Rodrigues Miranda

Curriculo do autor: Graduação em Direito pela Universidade Ceuma Pós-graduação MBA Executivo em Políticas Públicas pela Faculdade Única Pós-graduação em Direito da Seguridade Social - Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale

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Resumo

O presente artigo analisa o papel institucional da Advocacia-Geral da União (AGU) no controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, especialmente no âmbito das ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Prevista no artigo 103, §3º, da Constituição Federal, a atuação da AGU consiste em defender a constitucionalidade dos atos normativos impugnados, exercendo uma função singular no sistema constitucional brasileiro. O estudo aborda os fundamentos constitucionais e legais dessa atribuição, bem como os principais debates doutrinários sobre a natureza dessa defesa. Além disso, examina manifestações relevantes da AGU em casos paradigmáticos, buscando identificar tendências jurisprudenciais e desafios práticos. Por fim, discute-se a importância da atuação técnica da AGU para a legitimidade do controle concentrado, bem como propostas de aperfeiçoamento institucional. A pesquisa utiliza método dedutivo, com base em análise normativa, doutrinária e jurisprudencial.

Palavras-Chave

AGU. Controle concentrado. Constitucionalidade; STF.

Abstract

This article examines the institutional role of the Office of the Attorney General of the Union (Advocacia-Geral da União – AGU) in Brazil’s system of concentrated constitutional review, particularly in actions brought before the Federal Supreme Court (STF). As established in Article 103, §3 of the Federal Constitution, the AGU is tasked with defending the constitutionality of challenged normative acts, performing a unique function within the Brazilian constitutional system. The study explores the constitutional and legal foundations of this role, as well as the main doctrinal debates regarding the nature of such defense. In addition, it analyzes relevant AGU submissions in landmark cases, identifying jurisprudential trends and practical challenges. Finally, it discusses the importance of the AGU’s technical role for the legitimacy of constitutional review and presents proposals for institutional improvement. The research adopts a deductive method, based on normative, doctrinal, and jurisprudential analysis.

Keywords

AGU. Concentrated constitutional review. Constitutionality. Federal Supreme Court.

1. Introdução

O controle de constitucionalidade no Brasil foi substancialmente alterado pela Constituição de 1988. Se antes predominava o controle difuso, exercido incidentalmente por qualquer juiz ou tribunal, o novo texto constitucional, ao introduzir mecanismos como a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, o mandado de injunção e o mandado de segurança coletivo, ampliou significativamente o sistema, passando a um modelo misto de controle, com clara predominância do controle concentrado.

É bem verdade que a ordem constitucional anterior já previa um instrumento de controle concentrado das leis, a Representação de Inconstitucionalidade, introduzida pela Emenda Constitucional n° 16 de 1965. No entanto, a legitimidade para a propositura era exclusiva do Procurador-Geral da República, cenário amplamente alterado em 1988.

Assim, a nova sistemática inaugurada com a Constituição de 1988 reforça a importância de um mecanismo amplo e eficiente de controle de constitucionalidade para salvaguardar a supremacia da Constituição, impedindo que normas violadoras dos seus preceitos subsistam no ordenamento jurídico.

Conquanto caiba ao STF a palavra final sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis questionadas em face da Constituição, o modelo atual destaca a imprescindibilidade da participação de outros atores no processo de discussão, notadamente ampliando o rol de legitimados, possibilitando a participação do amicus curiae e destacando a atuação do Procurador-Geral da República (PGR) e do Advogado-Geral da União (AGU).

Quanto à participação do AGU, a Constituição Federal, ao dispor sobre a ação direta de inconstitucionalidade no art. 103, ressalta que o STF, “ao apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado”. O comando constitucional parece ser claro, devendo o AGU defender a constitucionalidade da norma questionada. Entretanto, toda regra comporta exceções e interpretações literais não são capazes de abarcar todas as situações possíveis no caso concreto.

Dessa maneira, como traduzir o papel do AGU no controle de constitucionalidade concentrado? Ele deve sempre se posicionar em defesa da lei? Há margem para outras interpretações? O AGU deve defender incondicionalmente a constitucionalidade da norma, mesmo que a considere manifestamente inconstitucional ou contrária aos interesses da União? Este trabalho pretende fazer uma análise da jurisprudência do STF e da interpretação doutrinária da questão.

2. Breves apontamentos sobre o controle de constitucionalidade no Brasil

O modelo brasileiro de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos compõe um sistema misto, resultante de outros dois modelos: o abstrato-concentrado e o concreto-difuso.

O modelo concreto-difuso tem origem no constitucionalismo norte-americano e assegura a qualquer membro do Poder Judiciário, ao decidir um caso concreto, o poder afastar a aplicação de uma norma que considere incompatível com a Constituição. Para Novelino (2017, p. 181) a principal finalidade desse modelo de controle é a proteção de direitos subjetivos, pois a questão é analisada incidentalmente, diante de um caso concreto, cuja legitimidade para a alegação é de qualquer pessoa que tenha o seu direito violado, podendo, até mesmo, a inconstitucionalidade ser reconhecida de ofício.

Nesse sentido, a inconstitucionalidade é declarada, e essa decisão produz efeitos, em regra, somente entre as partes envolvidas no processo, efeitos esses que são retroativos (ex tunc), prevalecendo a teoria da nulidade, isto é, a lei inconstitucional é nula. Conforme leciona Lenza (2025), o controle difuso, repressivo ou posterior:

É também chamado de controle pela via de exceção ou defesa, ou controle aberto, sendo realizado por qualquer juízo ou tribunal do Poder Judiciário. Quando dizemos qualquer juízo ou tribunal, devem ser observadas, é claro, as regras de competência processual, a serem estudadas no processo civil. O controle difuso verifica-se em um caso concreto, e a declaração de inconstitucionalidade dá-se de forma incidental (incidenter tantum), prejudicialmente ao exame do mérito. Pede-se algo ao juízo, fundamentando-se na inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ou seja, a alegação de inconstitucionalidade será a causa de pedir processual.

Importa salientar que, apesar da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso poder ser feita por qualquer juiz ou tribunal, nos órgãos colegiados deve ser observada a cláusula de reserva de plenário, em atenção ao disposto no art. 97 da Constituição Federal: “Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Já no modelo abstrato-concentrado, ou modelo austríaco, a inconstitucionalidade é analisada em tese, sem que haja um caso concreto, e a competência é reservada a um único tribunal, produzindo efeito erga omnes e não retroativos, prevalecendo a teoria da anulabilidade. Para Braga (2023, p.188), esse modelo possui as seguintes caraterísticas:

1 – Influência de Hans Kelsen na elaboração da Constituição austríaca de 1920 (e na reforma de 1929). 2 – O controle, nesse modelo, é concentrado (isto é, atribuído a um órgão determinado, mais precisamente, a um tribunal constitucional). 3 – Não há caso concreto (a lei é examinada em abstrato). 4 – Os efeitos são “erga omnes” (isto é, atingem todas as pessoas). 5 – A lei inconstitucional é apenas anulável (ela não é nula). 6 – A decisão que anula a lei inconstitucional possui natureza constitutiva negativa ou desconstitutiva (não é uma decisão declaratória). 7 – Os efeitos da decisão são “ex nunc” (não retroativos) ou “pro futuro”.

A Constituição de 1988 consagrou um sistema misto, reunindo mecanismos dos dois modelos de controle, o difuso e o concentrado. Para Mendes (2013, p. 1009), nos modelos mistos, geralmente os órgãos ordinários do Poder Judiciário têm o poder-dever de afastar a aplicação da lei nas ações e processos judiciais, enquanto que a competência para proferir decisões em ações de perfil abstrato ou concentrado é deferida a determinado órgão de cúpula, um Tribunal Supremo ou Corte Constitucional. No Brasil, essa competência é exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, a ideia de um sistema de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos se origina da necessidade de resguardar a supremacia da Constituição, impedindo que normas que a violem permaneçam no ordenamento jurídico. Segundo Mendes (2013, p. 1006), “o reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos Poderes Públicos torna inevitável a discussão sobre formas e modos de defesa da Constituição e sobre a necessidade de controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público, especialmente das leis e atos normativos”.

De acordo com Braga (2023, p. 192), isso se refere à função clássica do controle de constitucionalidade, que atua como uma atividade legislativa negativa exercida pelo Poder Judiciário, uma oposição à atividade legislativa positiva exercida pelo Poder Legislativo. Nesse sentido, ao retirar do ordenamento normas que violam dispositivos constitucionais, o Judiciário exerce uma função em sentido oposto à função criativa do Legislativo, com o objetivo de salvaguardar a supremacia da Constituição e seu principal mecanismo é a ação direta de inconstitucionalidade (ADI).

Para o referido autor, o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade é complexo e não se resume à função clássica. Há, ainda, a função básica que tem os seguintes objetivos: declarar a constitucionalidade de uma norma, transformando a presunção relativa em presunção absoluta de constitucionalidade, através da ação declaratória de constitucionalidade (ADC); conferir aplicabilidade às normas constitucionais que carecem de complementação para que sejam plenamente eficazes, através da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e assegurar o cumprimento dos preceitos fundamentais, por meio da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

Apesar da complexidade do sistema e do leque de ações disponíveis no controle concentrado brasileiro, é inegável que a ação mais utilizada é a ADI, instrumento da função clássica que tem a finalidade de controlar a validade de lei ou de ato normativo federal ou estadual confrontado em face da Constituição Federal, sendo esse controle realizado em tese e dotado de generalidade, impessoalidade e abstração.

Com o intuito de garantir um procedimento em contraditório e possibilitar o debate justo em torno da declaração de inconstitucionalidade dos atos normativos, a Constituição determinou a oitiva prévia do Procurador-Geral da República (art. 103, § 1º, da CF/88) e a citação do Advogado-Geral da União para defender o ato ou texto impugnado (art. 103, § 3°, da CF/88).

A participação do PGR é obrigatória e ele deve ser ouvido não apenas nas ações do controle de constitucionalidade, mas em todos os processos de competência do STF (CF, art. 103, § 1º). Para Novelino (2017, p. 207), “cabe-lhe exercer a função de custos constitutionis, zelando pela supremacia da constituição e pela proteção da ordem constitucional objetiva”. Vale lembrar que o PGR é também um dos legitimados ativos para a propositura das ações do controle concentrado e, para Braga (2023, p. 305), pode se manifestar livremente sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma submetida ao controle do STF. Segundo Novelino (2017, p. 208), ele pode até mesmo emitir parecer em sentido contrário à ação por proposta.

Mais controversa, no entanto, é a atuação do AGU, pois uma interpretação literal do § 3º do art. 103 da Constituição Federal poderia supor que a função de defensor da lei ou ato normativo questionado não comporta exceções, sendo-lhe vedado pugnar pela sua inconstitucionalidade. No entanto, a questão chegou ao STF e foi objeto de mudança de entendimento ao longo dos anos. Nesse sentido, passa-se a analisar a evolução jurisprudencial da matéria e a opinião doutrinária a respeito.

3. Fundamentos constitucionais e legais da atuação do AGU

A Advocacia-Geral da União está prevista no art. 131 da Constituição Federal, no capítulo dedicado às funções essenciais à justiça, enquanto instituição responsável pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. Tem como chefe “o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada” (art. 131, § 1º, da CF/88).

Quanto à atuação do AGU no controle concentrado de constitucionalidade o fundamento está no art. 103, § 3° da Constituição:

Art. 103, § 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.

A lei nº 9.868/99 que regula o processo de julgamento da ADI também dispõe sobre a participação do AGU: “Art. 8o Decorrido o prazo das informações, serão ouvidos, sucessivamente, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, cada qual, no prazo de quinze dias”.

De acordo com Braga (2023, p. 306) a participação do AGU tem um objetivo muito específico, defender o ato ou texto impugnado. Nesse sentido, ele adverte:

Portanto, a CF/88 determina, com clareza, que o AGU não atua livremente opinando pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado (ao contrário do que ocorre com o PGR), tendo ele de defender o ato impugnado. O AGU, então, no controle abstrato de constitucionalidade, tem o papel de fazer a defesa do ato impugnado, isto é, de dizer que o ato não tem vício de natureza constitucional.

Conforme leciona Novelino (2017, p. 207) não cabe ao AGU opinar ou exercer função fiscalizadora, pois essa função já foi conferida ao PGR. Para o autor, a função de defensor legis atribuída ao AGU possibilita ao STF ter uma visão dialética e de maior amplitude sobre a controvérsia e, por isso, o AGU deve trazer em sua manifestação, argumentos contrários aos expostos na petição inicial, contribuindo para a formação do contraditório no processo constitucional objetivo.

No entanto, esse entendimento não é pacífico e, segundo adverte Braga (2023, p. 306), “pode levar a situações inusitadas em que ele se veja colocado em uma situação desconfortável”. O autor cita como exemplo uma situação em que o AGU tenha aconselhado o Presidente da República a ajuizar uma ADI em face de uma lei contrária aos interesses da União. Cumprindo seu papel constitucional, ele pode até mesmo elaborar a petição inicial, caso em que terá que fazer a defesa de uma norma que ele acredita ser inconstitucional.

No mesmo sentido observou Leite (2010, p. 29), indicando que a obrigatoriedade de defesa da norma impugnada pelo AGU é capaz de gerar situação potencialmente contraditória:

Embora este tenha sido o entendimento que efetivamente se consolidou na doutrina constitucionalista, não passou totalmente despercebida, já nos primeiros anos de vigência da Constituição, a situação potencialmente contraditória em que eventualmente se encontraria o Advogado-Geral da União por ter de acumular o dever de “representar a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo—lhe (…) as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo [federal]” (art. 131, CRFB) e a obrigação de defender todo e qualquer ato normativo (mesmo as leis estaduais) que fosse objeto de ADIn. O acúmulo de tais atribuições pode não ser absurdo, e seria até bastante razoável no caso de uma ADIn ajuizada imediatamente após a edição de uma medida provisória, quando então o Advogado-Geral da União estaria, de certo modo, a um só tempo defendendo a constitucionalidade do ato normativo (em atenção ao art. 103, §3°, CRFB) e os interesses do Poder Executivo federal. Mas em diversas outras hipóteses – e talvez até probabilisticamente mais freqüentes – o conflito entre as duas atribuições constitucionais seria flagrante, como no caso de uma ADIn ajuizada contra lei estadual (e a federação brasileira compreende 27 Estados, além do Distrito Federal) sob a alegação de usurpação de competência legislativa da União federal.

Ao se deparar com a questão pela primeira vez, o STF, em questão de ordem no bojo da ADI nº 97/RO, reafirmou a interpretação de que o comando exarado pelo texto constitucional no § 3° do art. 103 é imperativo e não pode deixar de ser aplicado ou ter seu alcance reduzido. Para a Corte, o AGU exerce função de curador da presunção de constitucionalidade da norma. Confira a ementa do julgado:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Competência do Advogado-Geral da União. Exegese do parágrafo § 3°, artigo 103 da Constituição. 

– Compete ao Advogado-Geral da União, em ação direta de inconstitucionalidade, a defesa da norma legal ou ato normativo impugnado, independentemente de sua natureza federal ou estadual. Não existe contradição entre o exercício da função normal do Advogado-Geral da União, fixada no caput do artigo 131 da Carta Magna, e o da de defesa de norma ou ato inquinado, em tese, como inconstitucional, quando funciona como curador especial, por causa do princípio da presunção de sua constitucionalidade. Questão de ordem que se decide no sentido da devolução dos autos à Procuradoria-Geral da República, para que apresente a defesa das normas estaduais impugnadas.

O entendimento da Corte foi reforçado pelo Ministro Celso de Mello que, ao justificar seu voto, destacou que a Constituição de 1988 atribuiu ao Advogado-Geral da União a função de “verdadeiro curador da integridade jurídica da norma ou preceito infraconstitucional questionado”, o que, em um primeiro momento, poderia parecer conflitar com a natureza objetiva das ações do controle concentrado de constitucionalidade. No entanto, o papel do AGU vai além da defesa dos interesses subjetivos da União, devendo pautar-se pela defesa objetiva dos atos normativos impugnados. Confira trecho do voto do ministro que ilustra bem a questão:

Ocorre, porém, que o Advogado-Geral da União, nesse plano, não procederá à defesa dos interesses subjetivos da União Federal. Pelo contrário, o interesse objetivamente custodiado pelo Chefe da Advocacia-Geral da União é, precisamente, o da validez dos preceitos infraconstitucionais questionados no processo de controle concentrado.

A indeclinabilidade do exercício dessa atividade constitucionalmente deferida ao AGU não lhe permite, em conseqüência, exonerar-se desse especial encargo constitucional que lhe foi cometido. Trata-se aí de função anômala e extraordinária do Advogado Geral da União, que não atua, no processo de ação direta, como representante judicial dessa pessoa estatal, mas como defensor impessoal da validade dos preceitos infraconstitucionais, quer emanados da própria União federal, quer editados pelos Estados-membros.

Na ADI n° 72/ES o STF novamente se manifestou pela necessidade de defesa da norma pelo AGU, enfatizando que, em atenção ao princípio do contraditório, não é permitido que o AGU se exonere desse do encargo constitucional que lhe foi cometido, confira a ementa:

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Advogado-Geral da União: Indeclinabilidade da defesa da lei ou ato normativo impugnado (cf. art. 103, par. 3.). Erigido curador da presunção da constitucionalidade da lei, ao Advogado-Geral da União, ou quem lhe faça as vezes, não cabe admitir a invalidez da norma impugnada, incumbindo-lhe sim, para satisfazer requisitos de validade do processo da ação direta, promover-lhe a defesa, veiculando os argumentos disponíveis.

Analisando a jurisprudência do STF até então (por exemplo: ADI n.º 97 QO/RO – j. em 22/11/1989; ADI n.º 72 QO/ES – j. em 22/03/1990; ADI n.º 242/RJ – j. em 20/10/1994), conclui-se que estava consolidado o entendimento da defesa incondicional pelo AGU da norma questionada no controle concentrado de constitucionalidade.

No entanto, quando do julgamento da ADI n° 1.616/PE, julgada em 24 de agosto de 2001, a Corte mudou o seu tradicional entendimento, abrindo a possibilidade de flexibilizar o § 3° do art. 103 da Constituição Federal quando o próprio STF já tiver se manifestado pela inconstitucionalidade na norma. Veja trecho da ementa de relatoria do Ministro Maurício Corrêa:

O múnus a que se refere o imperativo constitucional (CF, artigo 103, § 3°) deve ser entendido com temperamentos. O Advogado-Geral da União não está obrigado a defender tese jurídica se sobre ela esta Corte já fixou entendimento pela sua inconstitucionalidade.

Como se pode perceber, o AGU não está mais obrigado a defender o ato normativo questionado se a tese jurídica já tiver sido declarada inconstitucional pelo próprio STF no exercício de sua jurisdição constitucional. Nesse contexto, a flexibilização do entendimento tradicional da Corte motivou o AGU a atuar com uma certa liberdade em suas manifestações. Para Braga (2023, p. 307), ‘o AGU passou a extrapolar os limites fixados pela Suprema Corte”. Com efeito, em diversas oportunidades o AGU chegou a defender a inconstitucionalidade da norma (a título de exemplo, ADI n° 4.249/SP e ADI n° 4271/DF).

A matéria voltou a ser discutida na ADI n° 3.916/DF em questão de ordem levantada pelo ministro Marco Aurélio que questionou a obrigatoriedade de o AGU defender a lei impugnada tendo em vista a sua manifestação pela inconstitucionalidade formal da norma. Para o ministro, “o curador não pode atacar o curatelado. O papel da Advocacia-Geral da União é o de proteção ao ato normativo atacado, como está na parte final” (do § 3° do art. 103 da CF/88).

Nesse sentido, suscitou questão de ordem nos seguintes termos:

É a questão de ordem que suscito no sentido de ter-se o processo como não aparelhado para julgamento, porque não há a defesa querida pela Carta da República a cargo da Advocacia-Geral da União. Que proceda ela segundo o figurino constitucional.

No entendimento do ministro, o AGU não teria essa liberdade de posicionamento, tendo em vista que precisa haver um contraponto, isto é, “alguém deve defender o ato normativo”, sendo seguido pelo ministro Joaquim Barbosa, para quem o texto da Constituição Federal é claro.

No entanto, a maioria dos ministros entendeu em sentido contrário, admitindo que o AGU teria autonomia para agir. Nesse sentido a ministra Cármen Lúcia: “A AGU manifesta-se pela conveniência da constitucionalidade e não da lei” e também o ministro Ayres Britto: “… a Advocacia-Geral da União defenderá o ato ou o texto impugnado quando possível, quando viável” reforçando que a Advocacia-Geral deveria ter a oportunidade de escolher como se manifestar, “conforme a convicção jurídica” segundo completou o ministro Cezar Peluso. O ministro Ayres Britto ainda chamou atenção para um ponto bastante pertinente: “… não se pode constranger o Advogado-Geral da União a ponto de, para defender o ato atacado, agredir a própria Constituição; ou seja, ele sairá em defesa da lei menor e em combate da Lei Maior, porque há situações em que a inconstitucionalidade é patente, é evidente”.

A decisão tomada na questão de ordem foi pela desnecessidade de suspender o julgamento para que o AGU apresentasse a defesa da norma impugnada. A maioria dos ministros defendeu o direito de manifestação do AGU e não a defesa incondicional da norma, visto que em determinadas situações defender a constitucionalidade da norma se choca frontalmente contra os interesses da União. Para a ministra Carmen Lúcia, em casos como esse “prevaleceria a possibilidade de o Advogado-Geral da União se manifestar segundo o que lhe parecesse de conveniência da defesa da constitucionalidade, digamos, e não da lei propriamente”.  Ademais, o ministro Cezar Peluso levantou uma questão pertinente: O STF não tem competência para impor sanção alguma ao AGU caso entenda que ele deixou de exercer a função que a Constituição lhe confere, pois, o próprio texto constitucional não previu nenhuma sanção para o caso. Desse modo, a Corte entendeu pela possibilidade de o AGU deixar de defender a norma e se manifestar conforme sua convicção institucional.

Posteriormente, no entanto, a Corte parece ter voltado ao seu tradicional entendimento de que o AGU deve obrigatoriamente fazer a defesa da lei ou ato normativo questionado em face da Constituição Federal, conforme dispôs no julgamento da ADI n° 3.413/RJ, julgada em 2011, confira a ementa abaixo:

PROCESSO OBJETIVO- AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ATUAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO. Consoante dispõe a norma imperativa do § 3º do artigo 103 da Constituição Federal, incumbe ao Advogado-Geral da União a defesa do ato ou texto impugnado na ação direta de inconstitucionalidade, não Ihe cabendo emissão de simples parecer, a ponto de vir a concluir pela pecha de inconstitucionalidade.

O entendimento foi seguido na ADI n° 2.433/RN julgada em 2015, confira:

ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO – CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE – ARTIGO 103, § 3º, DA CARTA DA REPÚBLICA. Ante a imperatividade do preceito constitucional, o papel da Advocacia-Geral da União é o de proteção à norma impugnada.

Para o relator, o ministro Marco Aurélio, não cabe ao AGU a emissão de parecer, mas a defesa do ato ou texto impugnado, pois ele age como curador, nos termos do preceito constitucional que rege a matéria (art. 103, § 3°, CF/88), portanto, fez constar no seu voto que “a ordem jurídico-constitucional não oferece opção. Cumpre ao Advogado-Geral da União, ante a norma imperativa, defender o ato”. Cumpre destacar, no entanto, a divergência apontada pelos ministros Rosa Weber e Teori Zavascki, que fez constar no seu voto o seguinte: “eu estou de pleno acordo, com uma única observação, que não interfere no resultado. É quanto à posição do Ministro-Relator em relação à natureza da manifestação da AGU, que a jurisprudência do Supremo é majoritária num sentido diferente, e por isso eu faço essa ressalva”.

Diante do exposto, o atual entendimento do STF parece ser no sentido da obrigatoriedade de defesa da norma pelo AGU, ressalvada unicamente a hipótese em que a própria Corte já tenha se manifestado pela incompatibilidade do ato normativo com a Constituição. O entendimento, porém, não é unânime e levanta questionamentos na doutrina. Para Lenza (2025, p. 951) “o STF deveria enfrentar o tema na composição atual, para se ter um posicionamento mais firme”.

De qualquer modo, ao analisar a jurisprudência do STF, a discussão sobre um possível conflito entre a função de defesa da norma e os interesses políticos do Poder Executivo, considerando o papel constitucional da AGU de representar a União judicial e extrajudicialmente, não encontram guarida no entendimento da Corte. Todas as vezes que os ministros se pronunciaram a respeito foi para rechaçar a ideia de conflito de interesses, notadamente porque não se admite a ideia de contradição entre as normas originárias da Constituição. Nesse sentido, a melhor interpretação é a de que os papeis constitucionalmente reservados à Advocacia-Geral da União são distintos e podem, no caso concreto, sofrer temperamentos a fim de harmonizá-los, buscando-se sempre garantir a supremacia da Constituição.

Conclusão

A atuação do Advogado-Geral da União no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade enfatiza o papel institucional único da AGU para a garantia de estabilidade e legitimidade do sistema constitucional. A Constituição de 1988 atribuiu à AGU a função de defender, perante o Supremo Tribunal Federal, os atos normativos impugnados, com fundamento no art. 103, §3º. Essa previsão, inicialmente compreendida como um dever meramente formal de defesa automática dos atos questionados, foi objeto de significativa evolução jurisprudencial e doutrinária ao longo das últimas décadas.

A análise dos precedentes do STF evidencia um movimento de consolidação do papel institucional da AGU como garantidora do contraditório constitucional qualificado. A Corte reconheceu que a atuação do Advogado-Geral da União pela defesa da presunção de constitucionalidade das leis não se confunde com uma defesa incondicional ou política dos atos do Poder Executivo, tampouco pode ser reduzida a uma postura processual neutra ou protocolar. Pelo contrário, espera-se uma manifestação técnica, autônoma e voltada à preservação da supremacia da Constituição, independentemente de eventuais interesses circunstanciais do governo.

Esse reposicionamento jurisprudencial reafirma o caráter estrutural da função da AGU no controle concentrado: trata-se de um ator constitucional que contribui para a densificação do debate jurídico, fornecendo argumentos e elementos técnicos que subsidiam a deliberação do STF. Ao agir como custos legis, a AGU assegura que a Corte tenha diante de si uma defesa consistente dos atos normativos, fortalecendo a legitimidade da decisão final e garantindo a racionalidade do processo constitucional.

Além disso, a evolução jurisprudencial aponta para uma flexibilização da obrigatoriedade de defesa da norma, mormente quando o STF já tiver se manifestado pela sua incompatibilidade com a Constituição. Embora não seja um entendimento unânime, a Corte chegou a assumir a possibilidade de maior liberdade de manifestação ao AGU.   Nesse sentido, defende-se a necessidade de que a matéria seja novamente discutida pelo STF, sobretudo, considerando a renovação da Corte nos últimos anos.

Portanto, conclui-se que a atuação do Advogado-Geral da União no controle concentrado de constitucionalidade evoluiu de uma função defensiva obrigatória para uma função constitucionalmente mais razoável, contribuindo para a estabilidade normativa e para a segurança jurídica. Ao desempenhar esse papel com responsabilidade institucional, a AGU contribui de maneira decisiva para a coerência, estabilidade e legitimidade do sistema de controle de constitucionalidade, fortalecendo o Estado Democrático de Direito e a supremacia da Constituição Federal.

REFERÊNCIAS:

BRAGA, Francisco. Direito constitucional grifado. 3. ed. São Paulo: Juspodivm, 2023.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Em análise de ADI sobre carreira da Polícia Civil, Supremo entende não ser obrigatória defesa de lei pela AGU. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/em-analise-de-adi-sobre-carreira-da-policia-civil-supremo-entende-nao-ser-obrigatoria-defesa-de-lei-pela-agu/. Acesso em: 8 out. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 2.433/RN. Julgado em: 4 fev. 2015. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7924397. Acesso em: 7 out. 2025.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Simone Rodrigues. O papel do Advogado-Geral da União no controle concentrado de constitucionalidade: evolução da jurisprudência do STF. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17352238, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 14/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-papel-do-advogado-geral-da-uniao-no-controle-concentrado-de-constitucionalidade-evolucao-da-jurisprudencia-do-stf/. Acesso em: 28/10/2025.