O papel contramajoritário do Poder Judiciário em assegurar Direitos Fundamentais aos Povos Indígenas

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito, Escrita científica

Este artigo foi revisado e aprovado pela equipe editorial.

Aprovado em 25/01/2024

Submissão: 15/01/2024

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Daniel de Jesus Santana

Curriculo do autor: Graduado em Jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia e em Direito pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina – FACAPE, com pós-graduação em Direito Constitucional aplicado pela faculdade Legale.

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Resumo

Este texto aborda a distinção entre direitos fundamentais e direitos humanos, destacando que os primeiros são protegidos pelo ordenamento jurídico interno, enquanto os segundos são regulados por tratados internacionais. A análise se aprofunda nos direitos fundamentais dos povos indígenas no Brasil, conforme estabelecido pela Constituição de 1988, que reconhece seus direitos tradicionais sobre as terras que ocupam, embora com limitações que restringem o pleno direito de propriedade. A obra discute também a evolução da jurisprudência da Corte Constitucional, incluindo a recente rejeição da teoria do marco temporal, em favor da teoria do indigenato, reafirmando a titularidade das terras indígenas como um direito fundamental. O texto conclui que, apesar das limitações impostas, o reconhecimento da propriedade indígena é essencial para garantir a dignidade e a continuidade cultural desses povos.

Palavras-Chave

Direitos fundamentais. Propriedade indígena. Jurisprudência constitucional

Abstract

This text explores the distinction between fundamental rights and human rights, emphasizing that the former are protected by domestic legal frameworks, while the latter are governed by international treaties. The analysis delves into the fundamental rights of indigenous peoples in Brazil, as established by the 1988 Constitution, which recognizes their traditional rights over the lands they occupy, albeit with limitations that restrict full property rights. The work also discusses the evolution of jurisprudence by the Constitutional Court, including the recent rejection of the temporal framework theory in favor of the indigenous theory, reaffirming land ownership as a fundamental right. The text concludes that, despite imposed limitations, the recognition of indigenous property rights is essential for ensuring the dignity and cultural continuity of these peoples.

Keywords

Fundamental rights. Indigenous property. Constitutional jurisprudence

1. Introdução

Em se tratado de direitos fundamentais, é importante inicialmente estabelecer uma distinção entre aqueles e os direitos humanos. Na concepção majoritária do ordenamento jurídico, os direitos fundamentais são aqueles que recebem proteção no âmbito interno do Estado, tendo como principal diploma normativo de proteção a Constituição.

A respeito dos direitos fundamentais, Diego Pereira Machado ensina que:

[…] Relacionam-se à previsão constitucional dos direitos das pessoas que se encontram dentro de um determinado Estado. Eles representam a proteção interna (sistema interno ou nacional) de salvaguarda aos direitos. Devem estar previstos nas Leis Fundamentais dos países, sob pena de não ser possível falar em constituição, conforme preceitua a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: art. 16º- ‘Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição’ (2021, p 40).

Nessa perspectiva, Bernardo Gonçalves afirma que:

Os direitos fundamentais são produtos de um processo de constitucionalização dos direitos humanos, entendidos estes últimos como elementos de discursos morais justificados ao longo da História. Assim, os direitos fundamentais não podem ser tomados como verdades morais dadas previamente, mas como elementos em constante processo de (re) construção, haja vista que sua justificação e normatividade decorrem de uma constituição positiva, igualmente mutável (Gonçalves, 2015, p. 311 a 312).

Já os direitos Humanos possuem uma concepção mais elástica. É fruto de uma construção histórica e se consolidou principalmente após as atrocidades decorrentes da primeira e segunda guerras mundiais, sendo os tratados e os pactos internacionais os principais diplomas que determinam as regras de proteção.

É importante reconhecer que as lutas sociais em tornos das conquistas relacionadas aos direitos fundamentais não é um ponto estático e acabado. As disputas para manter e consolidar os direitos até então conquistas e pelo alargamento de outras dimensões dos direitos fundamentais é uma constante na arena social.

Colaborando com pensamento em desenvolvimento, Portela afirma que:

A importância do Direito Internacional dos Direitos Humanos no atual cenário internacional parte da percepção de que a proteção da dignidade humana foi alçada a interesse comum superior de todos os Estados e passou a ter caráter de valor que se reverte de primazia diante de outros bens jurídicos. Com isso, as normas internacionais de direitos humanos adquirem relevância tal que passam a constituir um verdadeiro imperativo superior de proteção da pessoa com o qual devem ser comprometer todos os membros da sociedade internacional em caráter prioritário. Com isso, as normas internacionais de direitos humanos assumem status de prevalência, devendo ser aplicadas antes de qualquer outra, limitando a própria soberania nacional, e passando a ser incluídas dentre os preceitos de jus cogens ( 2015, p. 819).

Sendo assim, embora o sistema normativo e doutrinário realize ponderação, estabelecendo a existência de diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos, os dois ramos não são estanques. Ambos os sistemas jurídicos foram criados para assegurar a dignidade da pessoa humana e limitar o poder extroverso do Estado em relação as obrigações impostas à sociedade.

2. O Constituinte originário e limitação do direito fundamental à propriedade aos povos originários

Ao longo da história, a relação dos índios com a natureza sempre foi marcada pela harmonia, sem estabelecer uma concepção mercantil. Pois, a terra é um lugar sacramentado, do qual e no qual as tribos retiram seus sustentos, se reproduzem, estabelecem laços afetivos e transmitem saberes culturais de geração a geração, criando, assim, memórias afetivas e um modo de viver.

Atento aos preceitos humanos e aos direitos fundamentais pertinentes aos indígenas, o constituinte de 1988 dedicou o capítulo VIII da Carta Maior aos povos originários, conhecendo às idiossincrasias inerentes àquela comunidade, conforme caput do artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/1988, ao dispor que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Embora tenha havido o reconhecimento de tais direitos, bem como também seja inquestionável que os indígenas tenham sido os primeiros povos a habitam o território em que o Estado brasileiro foi constituído, a eles não foi dado o direito de propriedade. Pois, para o ordenamento jurídico consagrado na CRFB/1988, todas as terras que os indígenas habitam são de propriedade da União, cabendo aos índios apenas a titularidade de usufrutuário. É o que preceitua o artigo 231 da CRFB/1988, ao determinar que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

A lógica construída pelo Estado se pauta na concepção de incapacidade patrimonial dos povos indígenas para atuar como gestor dos próprios bens, tanto é que o § 3º do artigo 231 da CRFB/88 afirma que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional […]”, em que pese o diploma maior tenha garantido o poder de participação na tomada de decisão e assegurada a participação nos resultados econômicos obtidos pela exploração do território.

Mesmo a união exercendo esse encargo de tutela em relação aos grupos indígenas, há de se reconhecer que o constituinte de 1988 retirou deles o direito de propriedade, em relação às terras, gerando, assim, como consequência, violação de um direito fundamental.

Pois, a própria Constituição da República Federativa do Brasil vigente, através do artigo 5º, inciso XXII, assegura a todos que habitam o solo brasileiro, o direito de propriedade. Contudo, há uma discriminação negativa em relação aos índios, devido a conjugação dos artigos 20, inciso XI e 231, § 2º, estabelecer que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios pertencem à União.

Há de se ressaltar que tratamento diferente foi dado às comunidades formadas por afrodescendentes, já que na dicção do art. 68 da CRFB/88 foi assegurado aos “remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

3. A jurisprudência da Corte Constitucional e o acesso à terra como um direito fundamental dos indígenas

A Constituição Federal de 1934 foi a primeira a reconhecer o direito de usufruto dos indígenas em relação à terra que ocupa, pois, o artigo 129 daquela Carta Maior estabelecia que “será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.

Após a referido previsão, todas as outras Constituições Federais reproduziram o mesmo direito aos ocupantes originários. Entretanto, a partir da Carta Magna vigente, passaram a pairar, de forma mais consistente, no ordenamento jurídico brasileiro a teoria do indigenato e a do marco temporal, as quais visam discutir a partir de qual momento histórico os territórios podem ser reconhecidos como dos povos originários.

De acordo com a teoria do indigenato, são terras indígenas todas aquelas tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, sendo um direito inato e anterior à formação do Estado brasileiro, cabendo a este apenas realizar a demarcação das terras e declarar, assim, o direito reconhecido.

Embora a referida teoria tenha passado a ser discutida com maior incidência a partir da CRFB/88, João Batista e José do Carmo explicam que:

A teoria do indigenato foi tratada pela primeira vez pelo jurista João Mendes Júnior em três conferências proferidas na “Sociedade de Ethnographia e Civilisação dos Indios”, em 1902, e posteriormente compiladas em obra intitulada “Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e politicos”, de 1912. Afirmou o referido estudioso que “o instituto do indigenato não se confunde com a ocupação e com a mera posse, sendo uma fonte primária e congênita da posse territorial, não dependendo de qualquer legitimação posterior, enquanto a ocupação, como fato posterior, é título adquirido, necessitando de requisitos que a legitimem (pág. 11).

Já pela tese ou teoria do marco temporal, os referidos autores ensinam que “seriam terras indígenas somente aquelas ocupadas tradicionalmente pelos índios na data de 5/10/1988, data da promulgação da CF/88, ou se na referida data, os povos indígenas não as ocupavam por conta de renitente esbulho” (pag. 4).

Em um primeiro momento, no julgamento finalizado em março de 2019, a teoria do marco temporal foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal na Petição nº 3.388 de Roraima da ação popular, a qual tinha como objeto a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em uma virada jurisprudencial, por meio do recurso extraordinário 1.017.365, tema 1.031, cujo julgamento final foi proferido em 21 de setembro de 2023, por maioria, abandonou a tese do março temporal e adotou a do indigenato, reconhecendo que a data da promulgação da CRFB/88 não impede o reconhecimento de outros territórios indígenas diferentes daqueles ocupados quando entrou em vigor a Carta Maior.

4.Considerações finais

É inquestionável que a propriedade é consagrada como um direito fundamental no sistema jurídico brasileiro, sendo ainda indispensável para a concretização de diversos outros sensíveis previstos na Carta Magna, a exemplo do direito à moradia, à alimentação, à saúde, à educação, à maternidade e à infância.

É importante reconhecer que o constituinte originário não se omitiu e foi expresso ao estabelecer um sistema de proteção de eficácia plena em relação aos povos indígenas. Entretanto, a estrutura normativa constitucional se demonstra incompleta por subtrair uma das vigas estruturais que é o direito de propriedade, em relação às terras pertencentes a esta comunidade originária.

Contudo, atuando de forma subsidiária e buscando fechar as arrestas deixadas pelo constituinte de 1988, o Judiciário, pontualmente, tem buscando revisar a própria jurisprudência e fazer prevalecer e assegurar os direitos fundamentais mesmo implícitos, como aqueles referentes às terras pertencentes aos indígenas, ao decidir expurgar a teoria do marco temporal, pautando-se, dentre outros fundamentos, no prisma de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, conforme inciso XXXV do artigo 5º da CRFB/88.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. Salvador: Juspodivm, 2015.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Daniel de Jesus. O papel contramajoritário do Poder Judiciário em assegurar Direitos Fundamentais aos Povos Indígenas. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, Escrita científica, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-papel-contramajoritario-do-poder-judiciario-em-assegurar-direitos-fundamentais-aos-povos-indigenas/. Acesso em: 28/10/2025.