O Liberalismo Político e o Direito Fundamental à Igualdade

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Aprovado em 25/01/2024

Submissão: 15/01/2024

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Sara Coelho da Silva

Curriculo do autor: Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA. Pós-graduada em Direito Penal. Foi assessora de Promotoria de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará. É analista judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.

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Resumo

Este artigo explora a tensão entre liberdade individual e igualdade no contexto dos direitos fundamentais, com foco nas teorias de John Rawls e Ronald Dworkin. John Rawls, uma figura proeminente na filosofia política, apresenta seu conceito de "justiça como equidade", argumentando que uma sociedade justa deve garantir a distribuição igualitária de direitos e recursos. Sua ideia do "véu da ignorância" incentiva os indivíduos a escolher princípios de justiça sem conhecer suas circunstâncias pessoais, promovendo, assim, a imparcialidade e a igualdade. O artigo também aborda os desafios do pluralismo nas perspectivas morais e como a teoria de Rawls busca criar um consenso sobre a justiça que acomode crenças diversas. Ao contrastar o liberalismo igualitário de Rawls com as visões de Dworkin, o texto convida a uma reflexão mais profunda sobre como essas teorias abordam as complexidades do equilíbrio entre liberdade e igualdade nas sociedades modernas.

Palavras-Chave

Liberalismo Igualitário. Justiça como Equidade. Véu da Ignorância

Abstract

This article explores the tension between individual freedom and equality within the context of fundamental rights, focusing on the theories of John Rawls and Ronald Dworkin. John Rawls, a prominent figure in political philosophy, presents his concept of "justice as fairness," arguing that a just society must ensure equal distribution of rights and resources. His idea of the "veil of ignorance" encourages individuals to choose principles of justice without knowledge of their personal circumstances, thus promoting impartiality and equality. The article also addresses the challenges of pluralism in moral perspectives and how Rawls’s theory seeks to create a consensus on justice that accommodates diverse beliefs. By contrasting Rawls’s liberal egalitarianism with Dworkin’s views, the text invites a deeper examination of how these theories address the complexities of balancing freedom and equality in modern societies.

Keywords

Liberal Egalitarianism. Justice as Fairness. Veil of Ignorance

1. INTRODUÇÃO

No contexto de aprimoramento e evolução teórica dos direitos fundamentais, a corrente liberal enfrenta o desafio direto do embate com o direito à igualdade. As tensões entre liberdade individual e igualdade de condições são inevitáveis e precisam ser discutidas. É partindo dessa premissa que as linhas a seguir discorrem acerca das compreensões de dois eminentes teóricos do tema, John Rawls e Ronald Dworkin, quanto à problemática em discussão.

2. O LIBERALISMO IGUALITÁRIO DE JOHN RAWLS

Precursor do modelo político liberal-igualitário, John Rawls apresentou em sua obra intitulada Uma teoria da justiça[1], publicada em 1971, defesa à teoria da justiça como equidade. É indiscutível a relevância de Rawls no mundo da filosofia política. O teórico inaugura uma nova concepção de liberalismo, pautado na busca por uma igualdade entre os indivíduos, lado a lado ao princípio da liberdade, típico dessa vertente política.

John Rawls rompe com o pensamento liberal clássico de defesa precípua da liberdade individual, para inserir aí, também, uma preocupação moral com o alcance da igualdade entre os indivíduos. Ele trabalha com a ideia de uma sociedade ordenada, ordenamento este que somente é possível com uma distribuição equitativa de direitos, obrigações e bens primários entre os indivíduos. A justiça constitui-se, então, o objetivo central dessa sociedade.

Em simplórias palavras, a forma pela qual a sociedade alcança esse ordenamento, segundo Rawls, seria a partir da eleição de princípios gerais pela comunidade, num estágio inicial de convivência.

Eminentemente contratualista[2], Rawls entende que os membros de uma sociedade, agindo sob o “véu de ignorância”, isto é, desconhecendo a si mesmos, seus gostos, desejos e vontades próprios, elegem os princípios gerais de justiça. Trata-se, como veremos logo adiante, de um conjunto de seres racionais, em pé de igualdade inicial, decidindo imparcialmente, posto que livres de seus interesses pessoais, mutuamente desinteressados, comprometidos na construção de um ideal de justiça e na definição dos meios para alcançá-la.

3. O CONTRATUALISMO RAWLSANIANO: “O VÉU DE IGNORÂNCIA”

Decerto, os argumentos do contrato social não são novos. Remetem, em sua origem, ao Leviatã[3], de Thomas Hobbes, publicado em 1651, e ao Segundo tratado sobre governo[4], de John Locke, na década de 1680, e também aos escritos de Jean-Jacques Rousseau, em A origem da desigualdade entre os homens[5], e, claro, ao Contrato Social[6].

Rawls, entretanto, surge trazendo uma nova roupagem à teoria contratualista até então discutida.a década de 1960, Rawls retoma a tradição lockeana de contrato social, reagindo, em certos aspectos, às insuficiências do utilitarismo, que parecia estar estagnado numa batalha entre o utilitarismo subjetivo e o utilitarismo objetivo[7]. O interesse numa noção de política renovada se deu, então, em certa medida, pela urgência moral da época[8].

Logo no prefácio de Uma teoria da Justiça, Rawls deixa claro a sua adesão ao contrato. ele explica:

Minha tentativa foi generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do contrato social representado por Locke, Rousseau e Kant. (…) Além disso, essa teoria parece oferecer uma explicação sistemática alternativa de justiça que é superior, ou pelo menos assim considero, ao utilitarismo dominante na tradição. A teoria resultante é altamente kantiana em sua natureza.

A sugestão de Rawls é de que, numa metáfora elucidativa de sua teoria do contrato hipotético, imaginemos que na eleição dos princípios gerais de governo, as pessoas não tivessem conhecimentos específicos a respeito delas próprias, tais como seus gostos, preferências, sexo, cor, deficiências ou não, anseios pessoais, circunstâncias físicas e temporais, capacidade intelectual, etc.

O acordo inicial seria realizado debaixo do que ele denomina como “véu de ignorância”, isto é, por pessoas desprendidas do conhecimento de seus próprios dados e, por conseguinte, livres de possíveis favorecimentos pessoais. Para Shapiro[9], a proposta de Rawls “é como se nos pedissem para concordar com as regras de um jogo do qual iremos participar antes de saber se elas nos serão vantajosas ou não”.

Rawls propõe uma estrita separação entre a ética privada e a moral pública na base de justificação do Estado. Noutras palavras, para o teórico, a escolha dos princípios basilares do governo deve ser feita livre de quaisquer convicções pessoais. Preza-se pela imprescindível neutralidade do Estado face às opções de vida individuais.

Um dos desafios postos ao contratualismo reside na pluralidade constante de pensamentos ou posições morais entre os indivíduos. Essa discordância é antiga e natural em todo e qualquer acordo social feito por seres pensantes. A novidade trazida por Rawls está, então, em como ele pensa as implicações políticas desse pluralismo permanente, a saber, que se deve exigir menos do que as pessoas podem razoavelmente pôr em acordo[10]. Nesse raciocínio, o teórico recorreu ao desenvolvimento de princípios neutros em relação à concepções individuais de bem viver dos contratantes. Shapiro[11] assim descreve:

Ele apela para um “consenso coincidente” (overlapping consensus) em torno de princípios que provavelmente continuarão existindo por gerações, e reunirão um conjunto relativamente grande de adeptos em um regime constitucional mais ou menos justo, um regime no qual o critério de justiça é essa própria concepção política.

4. IGUALDADE DE BENS PRIMÁRIOS

John Rawls propõe, como teoria de justiça distributiva, a igualdade de bens primários entre os indivíduos, e o faz em reação à disputa entre os utilitaristas acerca de qual instrumento de distribuição poderia registrar maior grau de bem estar.

Segundo a teoria do bem-estar, os recursos devem ser distribuídos de forma desigual de acordo com o que satisfaz os desejos de cada indivíduo e, assim, a igualdade é alcançada à medida que o bem-estar de cada um é alcançado, conforme as concepções pessoais de vida. Esta teoria é, de fato, atraente, porque considera a qualidade de vida do indivíduo, sendo os recursos apenas meio para o seu objetivo final, desta forma, aparentando ser o melhor modelo a ser adotado como método de justiça distributiva. Ademais, privilegia as pessoas em condições especiais, tais como as que possuem algum tipo de deficiência e, por conseguinte, demandam mais recursos.

Todavia, a teoria do bem-estar apresenta um sério problema que é a ausência de parâmetros na distribuição dos recursos. Quer-se dizer, não há níveis mínimos ou máximos abalizadores da dispensa de recursos, uma vez que, partindo da premissa de que se busca o bem estar, esta distribuição se dará de acordo com o sentimento de satisfação de cada indivíduo.

Considerando que a concepção de bem-estar, naturalmente, variará de indivíduo para indivíduo, a satisfação dos desejos de um demandará muito mais recursos que a de outros, o que certamente dará azo ao cometimento de injustiças.

Rawls, por sua vez, formula sua concepção de justiça distributiva baseada no objetivo de proporcionar o máximo proveito que os grupos menos favorecidos da sociedade possam ter. A lógica do teórico consiste, em síntese apertada, em que os contratantes que estão sob o “véu de ignorância”, isto é, desconhecendo suas próprias condições socioeconômicas, tenderão a eleger princípios de justiça que visem a melhor condição dos que estão na região mais baixa da pirâmide, tendo em vista a possibilidade de também estarem ali. Por consequência lógica, se se aumenta a distribuição de bens aos que estão embaixo, logo, os que estão acima também terão seus bens elevados.

Segundo o princípio da diferença[12], dos mais debatidos de Rawls, as desigualdades devem funcionar em privilégio dos menos favorecidos. Este princípio admite uma redistribuição profunda que não necessariamente seja igualitária. Basta que beneficie os menos

favorecidos. Isto é, o grande objetivo das medidas distributivas, aqui, está em elevar os bens primários dos menos favorecidos, pouco importando se tais medidas sejam igualitárias ou não em relação ao restante da sociedade ou a algum grupo específico.

Impõe trazer à tona, neste ponto, que Rawls se vale de uma ordem lexical na utilização dos princípios que controlam os variados bens primários. Noutras palavras, pode-se dizer que os princípios (ou compromissos morais) observam uma ordem de prioridades a ser seguida. Por exemplo, o princípio de distribuição de liberdade está à frente do segundo princípio, que seria da ampla igualdade de oportunidades, que, por sua vez, antecede o princípio da diferença.

Desta forma, se em um caso concreto estes princípios vierem a colidir, deverá ser observada a ordem lexical em que estão postos. Por essa razão dissemos no primeiro capítulo que, para Rawls, caso a liberdade e a igualdade entrem em conflito, a primeira sempre prevalecerá. Essa ideia fica nítida nos seguintes trechos:

A prioridade da liberdade significa que, sempre que as liberdades podem ser efetivamente estabelecidas, não é permitido trocar uma liberdade menor ou desigual por uma melhoria do bem-estar econômico. Só quando as circunstâncias sociais não permitem o estabelecimento efetivo desses direitos básicos é que podemos consentir com sua limitação[13].
(…) as reivindicações da liberdade devem ser satisfeitas primeiro. Até conseguirmos isso, nenhum outro princípio entra em jogo.[14]

5. O LIBERALISMO ABRANGENTE DE RONALD DWORKIN

Durante a década de 1990, Dworkin empregou esforços no trabalho de desenvolver uma teoria substantiva de justiça, elaborando uma hipótese política sofisticada. Nas palavras de Ronaldo Porto Macedo Jr.[15], o teórico “procura mostrar como nossas instituições fundamentais em torno da centralidade do conceito de igualdade podem ser melhor descritas (com melhor “Fit” e mais coerência) como uma teoria da igualdade de recursos e não igualdade de bem estar”.

Em sua obra A virtude soberana, Dworkin apresenta ao universo da filosofia política um liberalismo igualitário abrangente e sua teoria de justiça distributiva baseada na igualdade de recursos. Logo na introdução de seu livro, o autor faz uma defesa intensa da igualdade perante as instituições básicas da sociedade que, pela importância, pedimos licença do leitor para já adentrarmos no caminho dworkiniano com a transcrição do seguinte trecho:

Podemos dar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais.[16]

Dworkin questiona a ideia de que liberdade e igualdade são princípios em conflito, advogando a tese de que ambos podem encontrar-se em comunhão, acrescendo ainda o conceito de comunidade a esta simbiose. Guest[17]pontua que “estamos acostumados a pensar que as teorias do liberalismo fazem sentido apenas com base no pressupostos de que a igualdade e a liberdade são opostos polares. A vigorosa defesa da igualdade por Dworkin, pelo contrário, é simultaneamente uma vigorosa defesa da liberdade.”

Ainda de acordo com Furquim[18], se para o liberalismo político de Rawls as diferentes concepções de bem da sociedade são toleradas em razão de sua posição de imparcialidade às questões morais dos indivíduos, “Dworkin nos apresenta uma versão de liberalismo mais abrangente porque não separa a ética da moralidade, além de não ser incompatível com a tolerância liberal”..

6. A TEORIA DA CONTINUIDADE

Dworkin não se contenta com o contratualismo rawlsaniano, baseado numa separação entre ética privada e moral pública[19]. Como explicitamos acima, o “véu de ignorância” proposto por Rawls impede que as pessoas, na eleição dos princípios de justiça iniciais, conheçam a si mesmas. Dworkin, ao revés, acredita na continuidade entre ética e moral como base mais sólida do que o contrato para a definição de princípios gerais de justiça. Por isso mesmo sua tese pode ser reconhecida como um liberalismo igualitário abrangente. Ambos os teóricos defendem o liberalismo, mas o justificam de forma diferente.

A tolerância liberal tem o mérito de permitir o florescimento de planos de vida individuais em meio ao pluralismo permanente[20]. Um acordo, então, pode ser firmado para que princípios de justiça sejam escolhidos com a aceitação de todos, apesar das diferentes concepções de vida. Esta é a via eleita por Rawls. Mas Dworkin não acredita nessa justificação moral do liberalismo, justamente porque deixa de lado as doutrinas filosóficas, morais e religiosas abrangentes, das decisões políticas mais relevantes.

Vita[21] aduz que é a motivação moral que garantirá o contrato:

Em suma, a motivação moral é o que faz que um acordo sobre princípios comuns de justiça possa ser alcançado. É com base na suposição de que essa motivação se encontra presente em um grau suficiente na conduta humana que podemos afirmar que as partes contratantes aceitarão as restrições impostas por esses princípios às formas pelas quais cada um poderá empenhar-se em realizar seus fins, quer se trate do interesse próprio de indivíduos ou de grupos, quer se trate de determinada visão abrangente do bem.

Furquim[22], por sua vez, assevera que Dworkin parece sugerir que essa motivação moral não estaria em grau suficientemente forte a ponto de garantir a força categórica do contrato proposto por Rawls. Essa base de respeito e cooperação mútuos enfrenta problemas. Dworkin advoga, então, uma continuidade entre ética e moralidade adotando um método interpretativo construtivo como justificação mais densa que o contrato.

A grande questão, para a tese da continuidade de Dworkin, reside no fato de como garantir a neutralidade do liberalismo e a postura imparcial em relação às concepções de vida dos indivíduos da sociedade, se a ética fizer parte da escolha dos princípios de justiça.

Logo, Dworkin precisa de uma atração ou apelo visionário para garantir a “força categórica” de sua teoria. Uma concordância maior em que a ética pessoal faz parte, mas sem recair numa predileção pessoal, é o apelo visionário de Dworkin para a defesa da continuidade. Mas como não recair em uma opção pessoal específica? Ele parte do princípio de que conceitos como “igualdade” e “liberdade” são interpretativos, e nessa tarefa, o intérprete não pode abrir mão da ética pessoal.

7. PLATEAU IGUALITÁRIO E PRINCÍPIOS DE DIGNIDADE

Dworkin não se conforma com o fato de que as diversas teorias de justiça não aprofundem as questões éticas de como o indivíduo deve levar sua vida. Nesse sentido, ele aduz que a dignidade é construída sobre dois princípios basilares, a saber, o princípio do valor intrínseco e o princípio da responsabilidade pessoal[23]. O primeiro nos remete à igualdade, o segundo, por sua vez, informa-nos a liberdade individual nele contida[24].

Dois princípios do individualismo ético me parecem fundamentais para qualquer teoria liberal abrangente, e juntos eles dão forma e apoio à teoria da igualdade defendida neste livro. O primeiro é o princípio da igual importância: é importante, de um ponto de vista objetivo, que a vida humana seja bem sucedida, me que de desperdiçada, e isso é igualmente importante, daquele ponto de vista objetivo para cada vida humana. O segundo é o princípio da responsabilidade especial: embora devamos todos reconhecer a igual importância objetiva do êxito na vida humana, uma pessoa tem responsabilidade especial e final por esse sucesso – a pessoa dona de tal vida.[25]

O princípio do valor intrínseco, ou da igual importância, diz respeito ao valor único da vida de cada um; toda vida é importante e deve lhe ser garantido o mínimo para que realize suas vontades. Noutros termos, equivale dizer que toda vida tem um valor objetivo associado a uma potencialidade do indivíduo a partir do momento em que nasce.

Já o princípio da responsabilidade pessoal refere-se à responsabilidade que o indivíduo deve ter com o sucesso de sua própria vida e com a realização de seus anseios pessoais, bem como com a vida da comunidade. Ou seja, devemos viver a vida da melhor forma que pudermos e quisermos, sem que alguém ou alguma instituição imponha um molde a ser seguido, porém desde que não prejudique a boa vida dos demais.

Nas esclarecedoras pontuações de Heraldo Montarroyos[26],

Nessa obra, Ronald Dworkin tem um único objetivo, que é aperfeiçoar constitucionalmente o processo de inclusão comunitária criando um ambiente ético- liberal motivador e atraente aos olhos dos direitos individuais existencialistas. Desse modo, a inclusão constitucional deve promover a combinação do princípio da igualdade com o princípio da liberdade, sendo mediados pelo princípio da responsabilidade existencialista, pública e privada.

8. A IGUALDADE DE RECURSOS

Dworkin não aceita a igualdade de bem-estar, defendida pelos utilitaristas, nem a igualdade de bens primários pregada por Rawls (explorada acima), como métricas distributivas mais justas. Para ele, em que pese as teorias difundidas serem realmente atraentes, elas olvidam as particularidades dos indivíduos e também a responsabilidade que deve ser atribuída a cada um.

No desafio de apresentar uma proposta tão atraente quanto aquelas, mas ainda mais completa e adequada, Dworkin apresenta sua teoria de igualdade de recursos. Nas palavras de Guest, a questão crucial suscitada é: “a que recursos as pessoas devem ter direito na sociedade ideal em que todas as pessoas são tratadas como iguais?”

Os recursos podem ser classificados como pessoais e impessoais. Os primeiros correspondem às características físicas e mentais inatas do ser humano, como nossos talentos e habilidades. Desta forma, em razão de sua própria natureza personalíssima, não podem ser comercializados. Já os recursos impessoais são os bens de que dispomos, ou não, os quais devem ser objeto de distribuição, pela teoria da igualdade de recursos, para fins de compensação das desigualdades.

Neste ponto, convém assinalar que, para Dworkin, o mercado é um forte aliado na minimização de desigualdades, em virtude de sua capacidade de gerar prosperidade e atuar como importante vetor na construção de liberdades individuais. O comércio será um instrumento importante para uma efetiva distribuição de recursos[27].

O mecanismo de mercado utilizado por Dworkin para ilustrar sua teoria é o leilão hipotético, para o qual separamos o tópico seguinte.

9. O LEILÃO HIPOTÉTICO

Dworkin faz uso de uma linguagem metafórica para nos explicar como pode se dar uma divisão igualitária de recursos. Ele desenvolve a ilustração de um leilão propositadamente artificial, evitando, assim, problemas que decorreriam naturalmente no mundo real, para garantir os propósitos de sua teoria. Neste ponto, nada melhor que a transcrição in litteris da proposta de Dworkin30[28]:

Suponhamos que um grupo de náufragos vá para uma ilha deserta que tem recursos em abundância e é desabitada, e que o grupo talvez só venha a ser resgatado depois de muitos anos. Esses imigrantes aceitam o princípio de que ninguém tem direito prévio a nenhum dos recursos, mas que devem ser divididos igualmente entre todos. (Ainda não perceberam, digamos, que talvez fosse sensato manter alguns recursos como propriedade comum de qualquer Estado que venham a criar.) Também aceitam (pelo menos provisoriamente) o seguinte teste da divisão igualitária de recursos, o que chamarei de teste de cobiça. Nenhuma divisão de recursos será uma divisão igualitária se, depois de feita a divisão, qualquer imigrante preferir o quinhão de outrem a seu próprio quinhão.

A distribuição, então, será justa, quando aprovada pelo teste de inveja. Dworkin apela ao senso de justiça e igualdade como valores mais abstratos e que pressupõem um consenso comum entre os indivíduos, retornando, assim, à ideia de plateau igualitário, como aduzido alhures. Cumpre esclarecer, neste ponto, que o termo inveja é aqui empregado não no sentido emocional, mas no sentido de conformação com o quinhão que lhe foi distribuído porque é justo em relação aos demais.

Ao contrário do que o “véu de ignorância” propõe, no leilão os indivíduos têm plena consciência do estoque de recursos disponíveis na ilha e o quanto suas escolhas afetarão a distribuição destes mesmos recursos entre todos. Isto parece permitir que os indivíduos desenvolvam um sentimento de comoção com a situação de toda a coletividade, e não apenas com a satisfação dos próprios desejos. Nesse sentido, Dworkin aduz que:

O leilão propõe o que o teste de cobiça[29] de fato assume, isto é, que a verdadeira medida dos recursos sociais dedicados à vida de uma pessoa seja determinada indagando sobre a real importância desse recurso para os outros. Repito que o custo, avaliado desta forma, aparece na noção que cada pessoa tem do que é seu com justiça, e no juízo que cada um faz da vida que deve levar, dado aquele mesmo comando da justiça.

Logo, o mecanismo do leilão se prestará a verificar se as distribuições estão sendo justas ou injustas, além de aferir qual o nível de desigualdade existente. Para Furquim[30], o teste de inveja torna-se atraente para uma concepção liberal de justiça, pelo menos por dois motivos:

primeiro porque evidencia que a injustiça está relacionada a ter menos recursos dadas as circunstâncias em que se vive, como pessoas com terras menos férteis. Segundo, ele pode acomodar as diferentes escolhas de planos de vida das pessoas, alguns podem querer uma vida de sucesso no mercado de ações, outros podem preferir cultivar verduras orgânicas.

10. SORTE POR OPÇÃO E SORTE BRUTA. O SEGURO HIPOTÉTICO

Ao contrário do que propõe a teoria dos bens primários, a igualdade de recursos não atenta para a posição do indivíduo na pirâmide social, porém aos motivos pelos quais ele está onde está. Em outras palavras, Dworkin está interessado em saber se a situação em que se encontra determinada pessoa é produto de suas escolhas ou de circunstâncias alheias à sua vontade.

Voltando ao leilão, precisamos verificar que, de acordo com a hipótese de Dworkin, após a distribuição de recursos ter passado pelo teste de inveja, os imigrantes provavelmente irão produzir e/ou comercializar os recursos que receberam. Se considerarmos as diferenças de talentos entre uns e outros, os mais talentosos deverão ter vantagens em relação aos menos talentosos. De qualquer forma, seja por talento ou não, os recursos tenderão a se concentrar mais sobre as mãos de alguns e, obviamente, a reduzir nas mãos de outros. Dessa forma, como o leilão poderá dar conta de situações desiguais?

Para dar uma resposta coerente a essa indagação, Dworkin classifica as desigualdades como decorrente de sorte por opção e ou de sorte bruta. A sorte por opção refere-se àquele que podemos ter a partir de nossas escolhas, ou à situação em que podemos nos encontrar devido ao risco da aposta que assumimos. Por exemplo, caso um imigrante decida comercializar seus recursos, as vantagens ou desvantagens que ele obtiver, serão produto da sorte ou má sorte de sua opção de praticar o comércio. A sorte bruta, por sua vez, é aleatória, independente de nossas escolhas e vontades. Trata-se, por exemplo, de casos fortuitos, como desastres naturais, ou mesmo algum tipo de deficiência. Situações tais provocam uma desvantagem não escolhida pelo indivíduo.

Não há razões para negar a compatibilidade da sorte por opção com a igualdade de recursos, uma vez que esta teoria preconiza, justamente, a liberdade de escolha individual. A responsabilidade que cada um deve ter com os seus ganhos e perdas é a forma também como a igualdade de recursos lida com os gostos dispendiosos, questão acerca da qual restam silentes as teoria do bem-estar e dos bens primários. Noutro vértice, no que tange à sorte bruta, tendo em vista que esta não decorre da vontade do indivíduo, a resposta de Dworkin é no sentido de que a igualdade de recursos deve buscar um meio de compensar as desvantagens, o que, para o autor, é representado pelo seguro hipotético. Esta ideia consiste na escolha do indivíduo de destinar parte de seus recursos para pagar um prêmio pela cobertura de eventuais desvantagens advindas de fatos não queridos. Para Furquim, “esse seguro seria uma forma do governo ter um fundo para a compensação daqueles que efetivamente sofrerem por conta das contingências”.

Seguindo essa linha de intelecção, as questões de sorte e o seguro hipotético parecem ter estreita relação com os princípios de dignidade, porquanto de acordo com o princípio do valor intrínseco ou do valor objetivo da vida, é dado ao indivíduo o que chamaria de “poder dever” de viver a vida como lhe apraz, auferindo os lucros que conseguir. De outro lado, refere- se também ao princípio da responsabilidade pessoal, ou da autenticidade, uma vez que o indivíduo deve ser objetivamente responsáveis pela sua vida, assumindo os riscos a ela inerentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acessado em: 05 de março de 2017.

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. A Justiça distributiva e seus críticos. São Paulo: ed. WMF Martins.

[1] Versão brasileira: Rawls, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2000;

[2] Rawls deixa explícita sua posição contratualista em Uma teoria da Justiça (2010, p. 13).

[3] Versão brasileira: Hobbes, Thomas. Leviatã. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2014.

[4] Versão brasileira: Locke, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Mantin Claret, 2012.

[5] Versão brasileira: Rousseau, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: ed. L&PM, 2008.

[6] Versão brasileira: Rousseau, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 1999.

[7] O utilitarismo é doutrina ética difundida a partir de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, nos idos do século XVIII e XIX, cujo discurso é, em suma, um sistema ético teleológico que fixa a concepção moral com base no resultado final. “o que se chama habitualmente utilitarismo, sustenta a posição segundo a qual o fim o último é o maior bem geral – que um ato ou regra de ação é correto se, e somente se, conduz ou provavelmente conduzirá a conseguir-se, no universo como um todo, maior quantidade de bem relativamente ao mal do que qualquer outra alternativa; é errado o ato o regra de ação quando isso não ocorrer e é obrigatório, na hipótese de conduzir ou de provavelmente conduzir a obtenção no universo, da maior quantidade possível de bem sobre o mal”. Frankena, Willian K. Etica. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. p. 143.

Em Uma teoria da Justiça, Rawls (2010, p. 12) não nega a relevância do utilitarismo no universo político, contudo afirma sua proposta de apresentar uma via alternativa.

[8] Shapiro, Ian. Op., cit., p. 147.

[9] Shapiro, Ian. Op., cit., p. 148.

[10] Shapiro, Ian. Op., cit., p. 150.

[11] Ibidem, p. 151.

[12] Para Shapiro, o princípio da diferença é apenas o rebatizado princípio antigo da economia do bem-estar chamado

maximin, abreviação de “maximizar a cota mínima”. Shapiro, Ian. Op., cit., p. 170.

[13] Rawls, John. Op., cit., p. 164.

[14] Ibidem, p. 267.

[15] Na apresentação da versão brasileira da obra Ronald Dworkin, de Stephen Guest.

[16] Dworkin, Ronald. A virtude soberana. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2011. p. 9.

[17] Guest, Stephen. Op., cit., p. 246.

[18] Ibidem, p.14.

[19] Em A raposa e o porco-espinho, Dworkin explica sua utilização dos termos “ética” e “moral”: “uso os termos “ético” e “moral” de um modo que talvez pareça especial. Os padrões morais prescrevem como devemos tratar os outros; os padrões ético, como nós devemos viver”. Dworkin, Ronald. A raposa e o porco-espinho. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2014. p. 291.

[20] Vita, Álvaro de. A Justiça Distributiva e seus Críticos. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2007. p. 274.

[21] Vita, Álvaro de. Op., cit, p. 283.

[22] Furquim, Lilian de Toni. Op., cit., p. 19.

[23] Em A raposa e o porco-espinho, seu último livro publicado em vida, Dworkin atualiza a terminologia “princípio da responsabilidade pessoal” para “princípio da autenticidade”. Vide: Dworkin, Ronald. A raposa e o porcoespinho. São Paulo: ed. WMF Martins Fontes, 2014.

[24] Furquim, Lilian de Toni. Op., cit., .p. 67.

[25] Dworkin, Ronald. Op., cit., p. 4.

[26] Montarroyos, Heraldo Elias de Moura. Observatório constitucional Ronald Dworkin: reconstruindo o liberalismo do livro “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/view/2182. Acessado em 05 de março de 2017.

[27]

[28] Dworkin, Ronald. Op., cit., p. 86.

[29] O termo utilizado na tradução para a versão brasileira é “cobiça”, mas optamos por utilizar “inveja”, em razão de ser mais comum.

[30] Furquim, Lilian de Toni. Op., cit., p. 149.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Sara Coelho da. O Liberalismo Político e o Direito Fundamental à Igualdade. Revista Di Fatto, Direito, Engenharia de Produção, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-liberalismo-politico-e-o-direito-fundamental-a-igualdade/. Acesso em: 28/10/2025.