O crime de injúria racial à luz do Direito Intertemporal
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Resumo
A legislação brasileira enfrenta um dilema significativo no combate ao racismo, particularmente na distinção entre injúria racial e crimes de racismo. O artigo 5º, inciso XLII, da Constituição de 1988 estabelece que o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, garantindo proteção a grupos racialmente marginalizados. No entanto, a Lei nº 7.716/1989 e subsequentes interpretações judiciais criaram uma dicotomia problemática entre as condutas racistas e injúrias raciais. A jurisprudência evoluiu, culminando em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhecem a injúria racial como parte do gênero racismo, devendo, portanto, ser considerada sob a mesma proteção constitucional. A discussão ainda abrange a retroatividade das novas interpretações e a condição de procedibilidade da ação penal, revelando lacunas e inconsistências na legislação atual que precisam ser abordadas para garantir a efetividade na luta contra o racismo.
Palavras-ChaveRacismo. Injúria racial. Jurisprudência
Abstract
This article examines the evolution of Brazil's legal framework addressing racism and racial discrimination, emphasizing the constitutional mandate established in 1988 that criminalizes such acts as inafiançable and imprescriptible offenses. The text explores the inadequacies of previous laws, particularly the Lei nº 7.716/1989, which defined discriminatory behaviors but left gaps, particularly regarding the offense of racial slander (injúria racial). The article highlights the legislative and jurisprudential changes culminating in the recognition that racial slander fits within the broader category of racism, thereby affirming its status as a serious crime under the Constitution. The recent Law nº 14.532/2023 further solidified this understanding, making racial slander an imprescriptible and inafiançable offense. The discussion includes the implications of these legal interpretations for acts committed prior to the new law and the necessity of addressing procedural conditions for prosecuting such crimes. Ultimately, the article underscores the importance of a coherent legal framework to combat racial discrimination effectively in Brazil.
KeywordsRacism. Legal Framework. Constitutional Mandate
1. INTRODUÇÃO
A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Com essas palavras, o Constituinte de 1988 fixou mandado constitucional de criminalização destinado ao enfrentamento ao preconceito, discriminação e segregação raciais. Previsto no inciso XLII do art. 5º, o dispositivo dialoga com o objetivo fundamental da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, norteada pela promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, III e IV). Trata-se, em suma, de um direito fundamental a prestações penais positivas de tutela da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Burilado na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, ramo da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher da Assembleia Constituinte, o art. 5º, XLII, visou a assegurar que a Nova República não incorresse nos mesmos equívocos de política criminal das eras constitucionais anteriores, marcadas por vexatórios eventos de impunidade em face dos autores de atos de preconceito e discriminação fundados em elementos fenotípicos, ancestrais e étnicos. Apenas em 1951 o tema passou a interessar ao direito, por meio da Lei nº 1.390, apelidada de Lei Afonso Arinos, que tipificou atos discriminatórios motivados por preconceito de raça ou de cor. Nada obstante, tais condutas eram versadas como meras contravenções penais – opção política que veio a ser reiterada pela Lei nº 7.437/1985.
Vê-se, assim, que a inserção dos comandos de inafiançabilidade, imprescritibilidade e de sujeição à pena de reclusão não se deram por obra do acaso: ocupou-se o Constituinte de estatuir instrumentos de proteção dos grupos racialmente marginalizados, a fim de superar a proteção penal deficiente (Ubermassverbot) até então vigente no ordenamento pátrio. Conformando-se à perspectiva do garantismo positivo de Alessandro Baratta, o inciso XLII do art. 5º é postulado de intervenção (Schutzgebot), impondo dever estatal de tutela a partir da premissa de que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção.
Tal mandado de criminalização veio a ser corroborado pelo dever estatal veiculado no art. 4º da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, internalizada por meio do Decreto nº 10.932/2022 com status de emenda constitucional (art. 5º, §3º, da Constituição).
2. DA SUPERAÇÃO DA EQUIVOCADA DICOTOMIA ONTOLÓGICA ENTRE OS TIPOS PENAIS DE RACISMO
No ano seguinte à promulgação da Constituição Cidadã, regulamentou-se o mandado do inciso XLII do art. 5º por intermédio da Lei nº 7.716/89, a qual inicialmente tipificou quatorze hipóteses de comportamentos fundados em discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
A Lei Antirracismo prevê condutas de índole discriminatória e segregatória, algumas das quais de subjetividade passiva direta marcadamente individual, como “recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador” (art. 5º). Sendo assim, não deveria haver razão para celeuma quanto à natureza juridicamente racistas de atos ofensivos à honra subjetiva, quando animados por intuito discriminatório.
Ocorre que o legislador federal, talvez pelo apressar da sua tramitação, deixou lacunas na redação original Lei nº 7.716/1989. A fim de assegurar a cominação de penas de reclusão, o novel diploma centrou-se em transmudar os preceitos secundários da 7.437/1985, de modo que não houve grande expansão das hipóteses penalmente protegidas.
Olvidou-se de tipificar, por exemplo, a prática ou instigação genérica de atos de racismo nas ocasiões em que não há sujeito passivo individual, lacuna que viria a ser suprida pela Lei nº 8.081/1990, com o advento do tipo penal do art. 20. Ademais, nada se versou quanto à prática de injúria atentatória aos bens jurídicos do inciso LXII do art. 5º da Constituição, de modo que as ofensas à dignidade e ao decoro alheios permaneceram sob a débil tutela do art. 140 do Código Penal, em sua forma simples.
Em 1997, tentou-se reparar tal previsão insuficiente. Ocorre que o legislador incorreu em desatino novamente: em vez de acrescentar a injúria motivada por preconceito racial entre os crimes da Lei nº 7.716/1989, fê-lo como qualificadora de crime contra a honra há muito previsto no Código Penal: “Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: (…) § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena – reclusão de um a três anos e multa”.
Esse equívoco legislativo foi interpretado pela doutrina e pela jurisprudência como opção deliberada de excluir a injúria racial do âmbito de incidência do mandado de constitucional criminalização de condutas racistas. Consequentemente, os injustos culpáveis fundados no art. 140, §3º, viram-se despidos dos adjetivos da imprescritibilidade, da inafiançabilidade e da sujeição à pena de reclusão.
Pior: a topografia da qualificadora submetia o crime à ação penal privada, em claríssimo prejuízo da proteção do bem jurídico e em descompasso com o dever estatal de censurar tais condutas, porquanto tolhida do Ministério Público a opinio delicti. Tempos depois, a Lei nº 12.033/09 passou a sujeitar a persecução penal à representação como condição da ação penal pública – reafirmando o descumprimento do mandado de criminalização.
Assim, a jurisprudência fixou distinção entre as condutas discriminatórias motivadas por elemento racial que atentassem contra a honra subjetiva (art. 140, §3º, do Código Penal) e aquelas que atentassem contra o direito da coletividade à igualdade (o crime vago do art. 20 da Lei nº 7.716/89): estas eram racistas; aquelas, não.
Por todos, veja-se precedente da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. CRIME DE DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA. INOCORRÊNCIA. INJÚRIA SIMPLES OU QUALIFICADA. QUEIXA OU REPRESENTAÇÃO. DECADÊNCIA. DENÚNCIA REJEITADA. 1. A diferenciação entre o delito de discriminação religiosa e a injúria qualificada reside no elemento volitivo do agente. Se a intenção for ofender número indeterminado de pessoas ou, ainda, traçar perfil depreciativo ou segregador de todos os frequentadores de determinada igreja, o crime será de discriminação religiosa, conforme preceitua o art. 20 da Lei 7.716/89. Contudo, se o objetivo for apenas atacar a honra de alguém, valendo-se para tanto de sua crença religiosa – meio intensificador da ofensa -, caracteriza-se nesse caso o delito o de injúria disciplinado no art. 140, § 3º, do Código Penal. 2. Na hipótese, a declaração tida como discriminatória foi emitida em depoimento prestado na Vara dos Crimes contra Criança e Adolescente, nos autos de ação penal instaurada em desfavor do ex-companheiro da noticiante, vizinho e amigo do denunciado, para apurar a prática de atentado violento ao pudor do pai contra os filhos menores. 3. Pelo que se infere do depoimento prestado ao magistrado de primeiro grau, o denunciado apenas narrou os fatos de que tinha conhecimento, embora tenha emitido juízo de valor sobre a personalidade da representante. Não se encontra externado nos autos eventual preconceito íntimo do denunciado à religião eleita pela noticiante. Se o testemunho robustecia a tese da defesa, não menos certo que o denunciado manteve o equilíbrio entre o dever de falar a verdade e o de evitar causar mal à ofendida, já vítima daquela trágica história familiar. Não cabe potencializar os fatos, nem imprimir interpretação extensiva de forma a incutir característica negativa em expressão que não a contém. 4. Não caracterizado o crime tipificado no art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada pela Lei 9.459/97, a desclassificação para o crime de injúria, simples ou qualificada, esbarra na decadência do direito de queixa ou representação. 5. Denúncia rejeitada. (APn 612/DF, julgado em 17/10/2012)
A distinção jamais encontrou bases sólidas. A uma, porque a injúria qualificada do Código Penal exprimia, objetivamente, discriminação fundada na “utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”, materializando perfeitamente a hipótese repudiada pelo inciso XLII do art. 5º da Constituição, de modo que o discrímen com o tipo do art. 20 da Lei nº 7.716/89 era ilegítimo (ubi eadem est ratio, idem jus). A dois, porque a própria Lei nº 7.716/89 tipifica, desde o seu advento, diversas espécies típicas em que o sujeito passivo é pessoa determinada.
A insubsistência dessa diferenciação, cuja raiz era meramente topológica, foi denunciada pela doutrina sob a liderança de Guilherme de Souza Nucci. Invocando seus argumentos, a Sexta Turma do STJ deu início à virada jurisprudencial em 2015, ao decidir que a injúria racial é “um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão” (AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Desembargador convocado do TJ/SP Ericson Maranho, julgado em 18/08/2015), entendimento reiterado nos anos seguintes (AgRg no AREsp 734.236/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 27/02/2018; AgRg no REsp 1849696/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 16/06/2020).
Apenas em 2021 a questão foi pacificada. O Ministro Edson Fachin, após afetar ao julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, relatou o acórdão em que reconheceu a inserção do crime do art. 140, §3º, do Código Penal, no contexto dos crimes de racismo, a despeito de sua posição externa à Lei nº 7.716/89:
A prática de injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, traz em seu bojo o emprego de elementos associados aos que se definem como raça, cor, etnia, religião ou origem para se ofender ou insultar alguém. Em ambos os casos, há o emprego de elementos discriminatórios baseados na raça para a violação, o ataque, a supressão de direitos fundamentais do ofendido. Sendo assim, não se pode excluir o crime de injúria racial do mandado constitucional de criminalização previsto no art. 5º, XLII, restringindo-lhe indevidamente a aplicabilidade.
STF. Plenário. HC 154248/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 28/10/2021 (Info 1036).
Em 2023, o legislador positivou esse entendimento por meio da Lei nº 14.532/2023, transpondo o tipo para a Lei nº 7.716/1989, na forma do art. 2º-A. Anote-se que apenas foram trasladados parte de seus elementos normativos, remanescendo como qualificadora do art. 140 do Código Penal a injúria fundada em elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência. A idoneidade desse “fatiamento” da antiga qualificado do §3º é tema denso e instigante a ser explorado em artigo próprio.
Diante desse cenário, não há mais dúvidas de que a conduta criminosa de injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, se praticada a partir de 11 de janeiro de 2023, subsome fato sujeito ao mandado constitucional de criminalização do art. 5º, XLII, com todas as suas consequências. Ademais, trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, porquanto não mais atingido pelas amarras do art. 145 do Código Penal.
Mas e quanto aos delitos praticados antes da publicação da Lei nº 14.532/2023? É cediço que ocorreu a continuidade típico-normativa de tais condutas, não havendo falar em abolitio criminis. O que dizer sobre a condição de procedibilidade da representação do ofendido, porém? Sua higidez foi afirmada? A busca da resposta exige a revisão de alguns conceitos.
3. A EXTENSÃO DA EQUIPARAÇÃO DA INJÚRIA RACIAL AOS CRIMES DE RACISMO PROCEDIDA PELO STF
Viu-se que a Suprema Corte assentara, em 2021, que a qualificadora racial do crime de injúria inseria-se no gênero de delitos de racismo objeto do mandado de criminalização do art. 5º, XLII, da Constituição – consumando a virada jurisprudencial iniciada pela Sexta Turma do STJ no sentido de abolir a dicotomia de regimes jurídicos. No sentir do Ministro Edson Fachin,
A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence. (…) Mostra-se insubsistente, desse modo, a alegação de que há uma distinção ontológica entre as condutas previstas na Lei 7.716/1989 e aquela constante do art. 140, § 3º, do CP. Em ambos os casos, há o emprego de elementos discriminatórios baseados naquilo que sociopoliticamente constitui raça (não genético ou biologicamente), para a violação, o ataque, a supressão de direitos fundamentais do ofendido. Sendo assim, excluir o crime de injúria racial do âmbito do mandado constitucional de criminalização por meras considerações formalistas desprovidas de substância, por uma leitura geográfica apartada da busca da compreensão do sentido e do alcance do mandado constitucional de criminalização é restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade, negando-lhe vigência.
Assim, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria, firmou a compreensão de que a injúria racial é imprescritível, pois é espécie do gênero racismo. Se a imprescritibilidade foi expressamente reconhecida na ementa do julgado, a inafiançabilidade o foi de modo implícito, na medida em que a definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS – que declarou, em concreto, inafiançável o crime de injúria – foi textualmente invocada pelo STF como razão de decidir.
4. A RETROATIVIDADE DA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL DA LEI PENAL
Predomina no Brasil o entendimento de que a mudança de interpretação da lei penal não inova o direito – dado que é interpretação, e não lei nova. Consequentemente, seus efeitos são aplicáveis até mesmo aos fatos pretéritos, inclusive in malam partem. Impertinentes, portanto, as normas constitucionais de irretroatividade dos incisos XXXIX e XL, do art. 5º, da Constituição. O único limite a essa retroatividade repousa nos fatos protegidos pelos efeitos da coisa julgada, em deferência à segurança jurídica (art. 5º, XXXVIII, da Constituição).
Para o STF, “entendimento jurisprudencial é interpretação da lei (…) e, ainda, se a Lei é a mesma, não há que se falar em ultratividade de entendimento jurisprudencial” (ARE 1.103.954/RJ, julgado em 29/05/2018). Nessa ordem de ideias, o STJ compreende que a mudança de orientação pretoriana e a interpretação controvertida a respeito de determinado dispositivo legal não são fundamentos idôneos para a propositura de revisão criminal (AgRg no REsp 1447604/SC, julgado em 19/08/2014).
Tal cognição é irretocável, indo ao encontro das lições do penalista alemão Claus Roxin:
Se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorável para o acusado que como o havia feito a jurisprudência anterior, este tem que suportá-la, pois, conforme o seu sentido, a nova interpretação não é uma punição ou agravação retroativa, mas a realização de uma vontade da lei, que já existia desde sempre e que somente agora foi corretamente reconhecida.
À luz da evolução jurisprudencial aduzida nos tópicos anteriores, tem-se a primeira conclusão deste artigo: as condutas tipificadas como injúria racial perpetradas antes da publicação da Lei nº 14.532/2023 são imprescritíveis e inafiançáveis, desde que sobre elas não recaia coisa julgada.
5. A OMISSÃO DO STF QUANTO À CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Em cotejo ao HC 154.248/DF, afere-se que a Suprema Corte não enfrentou adequadamente a questão atinente à compatibilidade, ou não, da sujeição de um crime de racismo à representação do ofendido como condição de procedibilidade.
No voto condutor, o relator Ministro Edson Fachin chegou a tangenciar a questão:
Observe-se, nesse contexto, que o crime em análise, por ser sujeito à pena de reclusão, não destoa do tratamento dado pela Constituição ao que ali se prevê como crime de racismo.
Acrescento ainda que o legislador, na esteira de aproximar os tipos penais de racismo e injúria, inclusive no que se refere ao prazo para o exercício da pretensão punitiva estatal, aprovou a Lei nº 12.033/09, que alterou a redação do parágrafo único do art. 145 do Código Penal, para tornar pública condicionada, antes privada, a ação penal para o processar
e julgar os crimes de injúria racial.
Assim, o crime de injúria racial, porquanto espécie do gênero racismo, é imprescritível. Por conseguinte, não há como se reconhecer a extinção da punibilidade que pleiteiam a impetração.
Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.
O excerto é insuficiente para aferir a interpretação do Ministro quanto à constitucionalidade do enquadramento processual penal da injúria racial como crime de ação penal pública condicionada à representação. Ao mencionar a Lei nº 12.033/2009, buscou o relator simplesmente apontar que a semelhança ontológica entre a espécie delitiva e os demais tipos de racismo foi reconhecida pelo próprio legislador. Fê-lo a título de reforço argumentativo, portanto. A constitucionalidade da lei que condiciona a persecução da injúria à representação não foi explicitamente enfrentada porque desnecessária, no caso concreto, porquanto o ofendido representara à autoridade competente a tempo e modo. No habeas corpus, ação de natureza subjetiva, não se discutia decadência, mas prescrição.
No âmbito da Sexta Turma, que por três vezes declarou o crime de injúria racial como espécie do gênero racismo, apenas uma vez discutiu-se sobre a condição de procedibilidade. Por honestidade intelectual, registra-se que, na oportunidade, a natureza de ação penal pública condicionada à representação do ofendido foi corroborada (AgRg no AREsp 686.965/DF, julgado em 18/8/2015). Todavia, o contexto processual era análogo ao do habeas corpus relatado pelo Ministro Edson Fachin: a vítima havia representado tempestivamente, razão porque se fazia desnecessário perquirir a constitucionalidade dessa condição específica da ação.
6. O VIRTUOSO VOTO IGNORADO DA MINISTRA ROSA WEBER COMO PROPOSTA DE SOLUÇÃO DO CASO
Embora não tenham o STF e o STJ enfrentado a questão com profundidade, a atenta leitura do inteiro teor do acórdão prolatado no HC 154.248/DF nos convida ao rico voto juntado aos autos pela Ministra Rosa Weber.
A par de acompanhar o relator, a magistrada consignou sua convicção de que a condição de procedibilidade em questão seria incompatível com a natureza do crime de injúria racial. Por sua clareza, o trecho exige transcrição:
Ressalto, por fim, ainda que em obter dictum, a existência, a meu juízo, de inconsistência, na legislação penal quanto a este importante tema, ao consagrar a injúria racial como um crime de ação penal pública condicionada a representação. Vale dizer, caso a vítima do crime não represente no prazo de 06 (seis) meses, a contar do dia em que vier a ter conhecimento sobre a autoria do fato, o direito de representação decairá, obstaculizando a propositura da ação penal pelo Ministério Público.
Atenta em especial ao rigor imposto pela Constituição às condutas ensejadoras de discriminação e preconceito, entendo que condicionar a ação penal, no caso de injúria racial, à representação da vítima é incompatível com a proteção constitucional conferida aos grupos vulneráveis.
Lembro, nesse contexto, o caso da Lei Maria da Penha, semelhante à presente hipótese, em que, ao julgar a ADI 4.424/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, este Plenário deu interpretação conforme a dispositivos da Lei 11.340/2006, para assentar que, em crime de lesão corporal no contexto de violência doméstica, a natureza da ação penal é pública incondicionada. Eis a ementa daquele acórdão: “AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações.”
Concluo que a ratio decidendi daquele caso há de ser aplicada ao presente, razão pela qual reputo necessário dar interpretação conforme a Constituição ao parágrafo único do art. 145 do Código Penal, para assentar, também no caso de injúria qualificada pelo racismo (art. 140, § 3º, CP), a natureza pública incondicionada da ação penal.
A tese nos parece de todo coerente. Tratando-se de conduta sujeita a mandado constitucional de criminalização, não era dado ao legislador criar obstáculos processuais extraordinários à ação estatal sobre essas condutas. E diz-se “extraordinários” porque a ação penal pública incondicionada é a regra do sistema – a exigência de representação do ofendido é a exceção (art. 24, in fine, do Código de Processo Penal). Pensar em contrário é negar a força normativa da Constituição, subvertendo o comando do Constituinte de proibição de proteção deficiente.
Foi com esse fundamento, aliás, que a Segunda Turma do STF recentemente entendeu não ser possível a celebração do acordo de não persecução penal em crimes de racismo (HC 222.599/SC, julgado aos 06/02/2023).
Ocorre que a sugestão encartada no voto da Ministra Rosa Weber lamentavelmente não foi objeto de debate pelos demais integrantes da Corte, de modo que a matéria ficou em aberto.
7. CONCLUSÕES
Em arremate a este breve ensaio, sumulam-se as seguintes conclusões a respeito das condutas consistentes em injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, mediante a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem, praticadas anteriormente à publicação da Lei nº 14.532/2023, e não atingidas por sentença revestida pela qualidade da coisa julgada:
(i) subsomem espécie do gênero racismo, em atendimento ao mandado constitucional de criminalização insculpido no art. 5º, XLII, da Constituição Federal;
(ii) a novel legislação consagrou a continuidade normativo-típica entre o art. 140, §3º, do Código Penal, e o art. 2º-A, da Lei nº 7.716/89, não havendo falar em extinção da punibilidade por abolitio criminis;
(iii) aplicam-se-lhes ultrativamente o preceito secundário do art. 140, §3º, do Código Penal, por ser mais benéfico (art. 5º, XL, da Constituição Federal). Pela mesma razão, são inaplicáveis as majorantes acrescentadas pela Lei nº 14.532/2023;
(iv) sujeitam-se à imprescritibilidade e à inafiançabilidade, na forma do art. 5º, XLII, porquanto a Lei nº 14.532/2023 apenas positivou interpretação consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal;
(v) sujeitam-se a ação penal pública incondicionada, porquanto inconstitucional sujeitar-lhe à condição de procedibilidade do art. 145 do Código Penal, tendo em vista a incompatibilidade com os mandados de criminalização e o princípio da proporcionalidade, sob a vertente da proibição da proteção deficiente.
Adere-se, assim, aos percucientes argumentos jurídicos apresentados no voto da Ministra Rosa Weber no HC 154.248/DF, que, embora não tenham chegado a ser apreciados pelos demais integrantes da Corte, representam a única solução consentânea com o direito fundamental à prestação penal positiva consagrada pelo art. 5º, XLII, da Constituição, e pelo art. 4º da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
NETO, Francisco de Salles Bezerra Farias. O crime de injúria racial à luz do Direito Intertemporal. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, Física, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-crime-de-injuria-racial-a-luz-do-direito-intertemporal/. Acesso em: 24/04/2025.