Medicalização do fracasso escolar

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Psicologia

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14/12/2024

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David Sergio Hornblas

Curriculo do autor: Graduação em Psicologia (Universidade São Francisco), Mestrado em Psicologia da Educação (PUC/SP), Doutorado em Saúde Coletiva (UNIFESP); Psicólogo escolar, clínico, psicoterapeuta; Professor universitário e supervisor de estágios. Formação clínica e pedagógica com Carl R. Rogers.

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Resumo

O presente artigo aborda diferentes questões ligadas ao fracasso escolar, quais sejam, a medicalização e patologização dos processos educativos e comportamentos tidos como inadequados. Buscou-se na arqueologia de Illich e Foucault, matrizes ideológicas que suscitam esses fenômenos como causadores dos índices alarmantes no consumo de substâncias psicoativas – particularmente o metilfenidato – tendo em vista a necessidade contemporânea de soluções rápidas eficientes e universais. Buscou-se conhecer as motivações e processos decisórios dos diversos agentes envolvidos nessa dinâmica, a partir de suas perspectivas subjetivas. Para tanto, foi utilizada a metodologia da História Oral de Vida, especialmente adequada para uma abordagem qualitativa, através das narrativas dos atores envolvidos neste processo. .

Palavras-Chave

Fracasso escolar. Medicalização. Patologização. Educação

Abstract

The medicalization of school failure: medical and pedagogical narratives that construct the pathologies of Education. Abstract: This article addresses different issues related to school failure, namely medicalization and pathologization of educational processes and behaviors considered as inadequate. We sought the archeology of Illich and Foucault ideological matrices that raise these phenomena as causing alarming rates of psychoactive substance use - particularly methylphenidate, in view of the contemporary need for efficient and universal rapid solutions. For this, the Oral History of Life methodology was used, through narratives of the actors involved in this process.

Keywords

School failure. Medicalization. Pathologization. Education.

INTRODUÇÃO

O corpo é uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica (Michel Foucault, 1977).

A desmedicalização da vida pode ser considerada como um processo de humanização em Educação e Saúde?

O termo medicalização[2] foi originalmente usado por Ivan Ilich, ao alertar que a ampliação e extensão do poder médico minavam as possibilidades das pessoas de lidarem com sofrimentos e perdas decorrentes da própria vida e com a morte, transformando as dores da vida em doenças. A vida estava sendo medicalizada pelo sistema médico (Moysés e Collares, 2011).

Assim, não se fala das precárias e sofríveis condições de trabalho, principalmente dos professores, mas sim da “Síndrome de Burnout”; não se fala de indivíduos questionadores, mas de portadores de “Transtorno Opositor Desafiador”. A educação encontra suporte nessa lógica medicalizante à medida que dificuldades decorrentes do processo ensino-aprendizagem, ampliadas no interior de um sistema educacional ultrapassado, são facilmente identificadas como supostos transtornos, o que acaba por aliviar o mal-estar de famílias e profissionais de saúde e educação. (Correia, 2013).

Nessa perspectiva, o uso de termos como “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH) e “Dislexia” têm sido usados não somente para classificar alunos na categoria “dificuldades de aprendizagem” como também para justificar, em muitos casos, a não efetividade de trabalhos/práticas didático-pedagógicos realizados em sala de aula.

Segundo Proença (2013), “…esses termos remetem a quadros biológicos, e mesmo entre aqueles que advogam a existência deles, há controvérsias sobre sua incidência na população em processo de escolarização. Portanto, há uma tendência de usá-los de forma inconsequente, o que, obviamente, precisa ser combatido. Inclusive, muitos profissionais comprometidos, das mais diversas áreas de atuação, e que lidam com o fracasso escolar em seus cotidianos de trabalho, tanto na escola privada como na pública, concordam que o sistema educacional tem de ser revisto…”.

Além disso, não só deve-se diferenciar doença de não doença, como também distinguir a medicalização que vem de cima por coerção (médicos) e de medicalização que vem de baixo, por escolha. Não é por mera coincidência que estas estratégias combinam duas funções jurídico-sociais paradigmáticas em saúde mental: 1) Compromisso na defesa da insanidade e 2) Controle social/justificativas. (Szasz, 2007).

Nesta pesquisa, foram estudados certos princípios conectados à Educação e a construção de diagnósticos biologizantes ligados ao desempenho desigual e os comportamentos nomeados como inadequados, desatentos ou hiperativos – ambos no contexto escolar. A partir desses fenômenos, perguntou-se se tais modalidades de funcionamento humano são de fato pertencentes à nosografia clássica médica ou se seu enquadre encontra explicações em outras searas tais como o processo de adestramento do bios, entendimento equivocado de professores, e se a lógica humanizadora pode, efetivamente, dar seu quinhão de contribuição para melhor conduzir essas questões.

A natureza biológica da medicina pode silenciar demandas que surgem numa análise primeira, mas podem ser, de fato, provenientes de outras matrizes, cuja arqueologia se altera quando inserida no formato epistemológico do saber médico.

O curso de medicina tem por objetivo, formar profissionais a respeito do funcionamento do bios, suas características, particularidades e tratamentos. Assim, a abordagem organicista ofusca uma possível leitura eidética, qual seja, a redução ao fenômeno original mínimo possível, para depois obter-se uma compreensão ampliada e considerar outros fatores tais como o binômio psicossocial.

Nem todas as patologias têm origem estritamente biológica, embora possam se manifestar no organismo através de sintomas das mais variadas matizes. Sigmund Freud demonstrou originariamente isso através de seus estudos clínicos sobre histeria e outros transtornos mentais (particularmente as neuroses). E a psicossomática avançou muito. Dentro dessa mesma lógica, é de fundamental importância tratar o sintoma, mas, e sobretudo, os agentes causadores.

Ainda assim e primordialmente, a leitura das questões trazidas ao médico (e outros profissionais de saúde) segue a lógica biologizante tendo em sua semiologia, procedimentos e dispositivos que transformam toda e qualquer queixa em questões de saúde.

Para a medicina e disciplinas afins, o corpo deve ser tratado a partir da leitura orgânica e sintomatológica, entendendo-se que se funciona mal ou diferente do esperado, está adoecido. A isso nomeia-se biopolítica e biopoder. Os conceitos foucaultianos de biopolítica e biopoder[3] surgiram como o ponto terminal de sua genealogia dos micro-poderes disciplinares, iniciada nos anos 1970.

Para Foucault (1975), a Psicologia nunca pôde oferecer a Psiquiatria o que a fisiologia deu a Medicina: o instrumento de análise que, delimitando o distúrbio, permitisse encarar a relação funcional deste dano ao conjunto da personalidade.

Ao mesmo tempo em que eram depositários de um conjunto de análises e conceituações previamente estabelecidas, tais conceitos também inauguraram deslocamentos em relação àquilo que o autor havia pensado anteriormente, em obras como “A Verdade e as Formas Jurídicas” e “Vigiar e Punir” (Duarte, 2006).

Não se pode negar a existência de doenças reais que, num amplo espectro, incapacitam em maior ou menor grau, pessoas para certas atividades do cotidiano (Moysés e Collares, 2007).

As questões investigadas neste estudo são aquelas silenciadas pelas narrativas biologizantes produzidas pelos atores envolvidos na Educação, seus pares e profissionais de diferentes áreas da saúde, que criam padrões de resposta escolar e comportamental, construídos na base binária 1-0 (doente e não-doente) onde os transtornos de natureza orgânica explicam todas as razões do baixo rendimento escolar ou dos comportamentos problemáticos.

Também foram escutados pais que acolhem essa lógica biologizante.

Alguns desempenhos humanos diferentes são considerados patológicos, quando não atendem à distribuição normal (curva de Gauss[4]) estabelecida. Esse modelo engessa a possibilidade de uma análise amplificada dessas demandas e legitima uma lógica biologizante que explica, por exemplo, o fracasso escolar ou comportamentos inadequados como sendo questões de saúde. Um reducionismo da ciência médica moderna que normatiza e legisla sobre o que é saúde e o que doença, tendo em vista suas raízes positivistas. E a formação do médico contemporâneo parece reforçar essa ideia.

O EXCESSO DE DIAGNÓSTICOS

 

Normalmente, fracassar na escola encontra explicações biologizantes tais como o inescrutável TDA/H[5] (Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade), dislexia, disgrafia, etc., além de casuísmos genéricos tais como pais separados, adoção, lutos, histórico de doença mental na família, alcoolismo, etc. Um arsenal de doenças e generalizações intermináveis que se renovam a cada revisão dos manuais de classificação das doenças – DSM e CID.

Nesse estudo, pretendeu-se também, melhor entender como as ações médicas advindas das queixas escolares desencadeiam o processo medicalizante, quando qualificam a fraca produção escolar e estigmatizam padrões de comportamento tido como inadequados, através de narrativas singulares que excluem da aula os alunos problemáticos, encaminhando-os às instâncias superiores – orientadores educacionais, psicólogos, coordenadores pedagógicos e direção – para providências cabíveis. Na sequência, mobilizam os pais e normalmente orientam para algum procedimento[6] na área da saúde: médicos, psicólogos, fonoaudiólogos costumam ser os formadores de opinião e por conseguinte, a construção de diagnósticos explicativos.

Um desses diagnósticos mais frequentes – que se inicia com o olhar, fala e interpretação do professor – é o TDA/H – Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade[7].

Como procedimento-padrão, ocorre o encaminhamento para neurologistas, psiquiatras, fonoaudiólogos ou psicólogos, onde o diagnóstico costuma ser de natureza biológica. Ato contínuo, como tratamento, médicos prescrevem substâncias psicoativas do grupo metilfenidato. Para psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos, a verificação e confirmação da hipótese é feita através de instrumentos como o SNAP-IV, ETDAH-AD[8].

No Brasil, a Ritalina® (metilfenidato de ação curta – 3 a 5h), é a droga mais popular, embora já exista outra mais recente, o Concerta® (metilfenidato de ação prolongada – 8 a 12h). Essas drogas são estimulantes do sistema nervoso central e têm venda controlada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ANVISA; porém, a mídia revela que, em apenas quatro anos, de 2000 a 2004, a venda desses medicamentos aumentou 940% – os dados são do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos e são confirmados pela ANVISA, que declara que o número de caixas vendidas entre 2003 e 2004 cresceu 51% (Tófoli, 2006), excetuando-se a cidade de São Paulo, onde há legislação específica[9] para tal.

Já quando a conduta é determinada por psicólogos, o protocolo é a psicoterapia, eletroestimulação por neurofeedback, psicopedagogia clínica, etc. Raramente se propõe alternativas não medicalizantes com entendimento de que, os motivos que produziram a queixa (fracasso e os comportamentos tidos como inadequados), podem transcender a esfera do bios em suposto funcionamento patológico.

Alunos podem por exemplo, não gostar da escola ou não se adaptar a certos modelos pedagógicos. Podem ser mais lentos ou mais rápidos (altas habilidades); podem não estar biológica, emocional e cognitivamente maduros para aprendizagem coercitiva dos conteúdos programáticos definidos, via de regra, com base numa distribuição estatística normal ou variadas políticas públicas que mudam, de tempos em tempos, as Leis de Diretrizes e Bases da educação nacional (LDB). Raramente a prontidão para aprendizagem é verificada e que poderia avaliar o momento desenvolvimentista em que a criança se encontra. Especialmente na escola pública, onde a progressão é (ainda) automática, independente de resultados. Dentro desta lógica, a medicalização é inexorável.

Para Mesquita (2009), apesar da submissão e da aproximação da Educação ao discurso médico, existe a possibilidade de se construir uma resposta à problemática do TDAH (e outras patologias[10]) resposta que não se reduz simplesmente a nomear, segregar e medicar as crianças. Dessa forma, a relação professor-aluno foi referenciada pelos educadores como a principal intervenção.

De fato, a coerência de uma vida psicológica parece assegurada de maneira diversa que não a coesão do organismo; a integração dos segmentos tende, neste caso, a uma unidade que torna cada um deles possível, mas resume e recolhe-se em cada um: é o que os psicólogos chamam no seu vocabulário tomado à fenomenologia, a unidade significativa das condutas, que encerra em cada elemento — sonho, crime, gesto gratuito, associação livre — o comportamento geral, o estilo, toda a anterioridade histórica e as implicações eventuais de uma existência. A abstração não pode, então, fazer-se do mesmo modo em psicologia e em fisiologia; e a delimitação de um distúrbio patológico exige na patologia orgânica métodos diversos dos da patologia mental” (Foucault, 1975).

PROBLEMATIZAÇÃO

Nas sociedades ocidentais é crescente o deslocamento de problemas inerentes à vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais e biológicas (Moysés e Collares, 2007).

Desta forma, as demandas que escapam deste enquadre, recebem inexoravelmente o status de patológico, numa ordem medicalizante e de cunho higienista.

As práticas atuais em saúde regulam procedimentos que visam garantir uma estratégia de controle, construída com capilaridade de segurança máxima: inescapável. Quando os tratamentos das mais diversas naturezas são propostos diz-se: protocolo definido pela ciência ou genericamente como pesquisas comprovadas.  Impõe-se uma responsabilidade culpabilizadora ao corpo em funcionamento atípico, avalizado pelas instâncias que governam a vida.

Na escola não é diferente: Os chamados problemas de aprendizagem normalmente são encaminhados para profissionais de saúde, visando à construção de motivos biológicos que expliquem tais questões (fracasso e indisciplina). Esses são, portanto, os agentes desta estratégia.

Assim, a escola presume ter cumprido seu papel e ao receber laudos contendo informações técnicas que explicam esse fracasso e indisciplina, pais, professores e educadores em geral, aquietam-se: o problema foi encontrado. A partir daí, inicia-se algum tipo de intervenção (tratamento) como já mencionados anteriormente: psicoterapia, medicação, fonoaudiologia, eletroestimulação por neurofeedback, dentre tantas outras. Por estarem muitas vezes no âmbito da saúde, seguem a lógica biologizante, onde alguma questão orgânica sempre explicará a demanda.

Esta é uma manifestação evidente da biopolítica que governa a vida em todos os seus vértices, onde o biopoder e sua força reguladora – biopotência são as ferramentas básicas. Raramente se questiona um laudo médico ou psicológico. São as verdades insofismáveis garantidas pelo saber científico empoderado.

ALGUMAS HIPÓTESES

Esse processo parece ter dois nascedouros e serão objetos deste estudo:

1)      A leitura do professor, que se desresponsabiliza ante o aluno que fracassa ou não se aquieta, dentro dos padrões tidos como normais. Exclui o diferente da aula e terceiriza a responsabilidade aos superiores, pais ou responsáveis, alertando-os sobre “um sério problema”, e sugere a visitação a algum profissional de saúde para análise, avaliação e eventuais providências (leia-se aqui tratamento).

2)      O olhar médico, por vezes cartesiano, que acolhe tais narrativas e a partir delas, constrói diagnósticos (normalmente sumários) e propõe tratamentos de forma indiscriminada, haja vista, a quantidade prescrita de certos medicamentos de uso controverso, tais como o metilfenidato (Em poucos anos, o Brasil tornou-se o segundo maior consumidor mundial desde produto (Tófoli, 2006).

Uma enorme inquietude se oferece ante o quadro acima proposto, onde narrativas de diferentes fontes, parecem encontrar ressonância diante da queixa: professores que sugerem diagnósticos, médicos que os legitimam, pais que acatam e estudantes que são alvos destes procedimentos.

O discurso, sempre solene: professores não erram, não repensam suas práxis, estão bem preparados e motivados e seguem a lógica de que os métodos adotados funcionam adequadamente para a maioria; a estrutura da aula é irretorquível e o modelo de gestão escolar, impecável. Quem fracassa está apenas incluído nas estatísticas previstas. Os atores da educação estão legitimados por micro poderes que governam todo processo educacional.

Essas questões sempre encontraram ancoragem nas ciências da saúde – Medicina / Psicologia / Fonoaudiologia, etc. – salvaguardando a (des)responsabilidade da escola, do professor e dos pais. Com o diagnóstico feito e identificada a natureza da demanda – quase sempre biologizante – livra-se dos problemas e atribui-se a terceiros, o encargo de resolvê-los.

A partir daí, crianças e jovens recebem tratamento tido como adequado para a queixa inicial, normalmente de natureza médica. Raramente se faz leitura sócio-histórica ou psicopedagógica dessas questões, haja vista, que o discurso em saúde, tem maior credibilidade, considerando sua propedêutica e diagnóstico sumários.

Ao indicar soluções quase instantâneas para os sintomas, rapidamente se tem os resultados esperados, tais como “aquietação” e “melhor focalização” do que é tratado em sala de aula. Estão, por fim, docilizados. Em se tratando do TDA/H, por exemplo, os resultados são imediatos. Em alguns dias o problema estará “resolvido”. Importante lembrar que, a utilização do metilfenidato é recomendada para uso durante a semana e suspenso aos sábados, domingos, feriados e no período de férias. Controla os sintomas tidos como inconvenientes em sala de aula.

Na maioria absoluta das escolas, essa mesma lógica prevalece e converte problemas de aprendizagem e/ou comportamento em problemas de saúde. Desta forma, cria-se uma nova ordem, que produz uma população jovem portadora dos mais variados transtornos e muitos deles, tratados a base de psicotrópicos (metilfenidato, antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos, etc.). Isso vale também para outras ações em saúde – não médicas – tais como a psicoterapia, eletroestimulação por neurofeedback, procedimentos fonoaudiológicos e psicopedagógicos.

Importante ressaltar que as intervenções não médicas, não são necessariamente menos medicalizantes. Quando se encaminha um aluno que fracassa ou se comporta de forma inadequada para o consultório de um psicólogo, fonoaudiólogo ou psicopedagogo clínico, utiliza-se a mesma lógica, tão biologizante quanto, ou seja, a de que haverá sempre uma doença/transtorno em curso e que deverá ser “tratada”.

Especificamente no âmbito médico, no tratamento farmacológico – de maior frequência – os riscos estão evidenciados nas próprias bulas desses medicamentos o que, infelizmente, não serve de alerta para refletir sobre essas ações: vive-se na contemporaneidade tempos muito velozes, líquidos, cobranças de resultados instantâneos como alfabetização precoce, respostas cognitivas sempre anteriores ao tempo médio, tendo em vista as urgentes necessidades de interação social, através das ferramentas midiáticas de alta performance. Afinal, crianças e jovens medicados, quando devidamente ocupados, não aborrecem ninguém: em casa ou na escola.

Existe uma métrica social que considera sentimentos e comportamentos legítimos como sintomas patológicos. Muitas vezes, esses casos são tratados com os chamados tarja preta, que têm sérias sequelas (Proença, 2013).

Lutos, entristecimentos, excitação psíquica, recusas de diversas naturezas, questionamentos constrangedores feitos por alunos, etc., são alguns exemplos de comportamentos tidos como problemáticos e transformados em doenças (TOD, TDA/H, depressão, ansiedade, etc.). Não há espaço para o singular e portanto, devem ser objeto de intervenções na esfera da saúde. E por vezes, coercitivamente, em especial crianças e adolescentes.

É preciso repensar essas práticas que patologizam e reduzem uma gama enorme de conflitos silenciados pela lógica científica que desconsidera a subjetividade do ser humano, em especial, daqueles em desenvolvimento. Cristaliza-se numa ordem reguladora e definida por meio de estratégias de entrelinhas e pouco esclarecidas, tendo por objetivo o sucesso das terapêuticas biológicas.

Ao oferecer o processo de Humanização como nova leitura para esses fenômenos, pretendeu-se verificar se esse caminho, de fato, produziu ações menos medicalizantes.

Se for possível ao médico, professor e pais a compreensão de que o Humano aprende e comporta-se por vezes de forma singular, poder-se-á ter uma Educação mais inclusiva, menos consumidora de medicamentos psicoativos e substituição dos controvertidos tratamentos clínicos ligados ao processo de escolarização por intervenções mais humanizadas.

No âmbito dos usuários – estudantes em geral – evidenciam-se em inúmeras pesquisas[11], melhora na performance escolar e aquietação (como um todo). Efeitos colaterais indesejáveis são desconsiderados, haja vista, os benefícios obtidos. Em outras palavras, essas reações adversas são uma espécie de preço a ser pago pela melhora dos sintomas apresentados. Tal lógica, atenua e desresponsabiliza pais e prescritores deste tipo de medicação, baseada numa premissa inicialmente compreensível, qual seja, o alto grau de sofrimento familiar diante das inúmeras dificuldades no manejo de crianças e jovens com este tipo de demanda. Em tempos líquidos, a melhora de respostas gerais de forma sumária, atende anseios diversos, em especial daqueles que devem lidar com questões singulares, como na produção escolar e nos comportamentos sociais nomeados como mais adequados. Por esta razão, essa medicação recebe o apelido de “droga da obediência” e produz o chamado efeito “zombi like” (Moysés e Collares, 2011).

 

Contudo, o Fórum sobre medicalização da Educação e da Sociedade”, através do grupo de trabalho (GT) “Educação & Saúde” publicou em 2012, um manual de “Práticas não medicalizantes” destinados a profissionais e serviços de Educação e Saúde, oferecendo reflexão e outras possibilidades de ações não-biologizantes para as mesmas questões aqui pontuadas.

Os responsáveis pelos alunos ao consultarem o médico (normalmente pediatras, psiquiatras ou neurologistas) reproduzem o discurso da escola (queixa escolar) sem questionamentos relevantes, tendo em vista, estarem familiarizados com os relatos sobre mau desempenho e/ou comportamentos inadequados. Para eles, a condução do problema precipita e aceita as ações propostas, considerando o imenso desgaste emocional histórico que vivem há muito tempo. Pais relaram com certa frequência que “não aguentam mais essa vida caótica” (SIC). Este autor foi testemunha irrefutável, por diversas vezes, de discurso semelhante.

Portanto, uma intervenção que produza respostas velozes e sanitizadoras do problema será sempre bem-vinda. Esta é a lógica medicalizante.

Mas há, sem dúvida, a singularidade do discurso do professor que encontra certo ancoradouro em suas próprias questões pessoais que excluem uma compreensão dialética (e conveniente) da forma como exercem suas atividades pedagógicas: atribuem a terceiros a tarefa de resolver as demandas com as quais não sabem ou não conseguem lidar. A alegação mais frequente é a de que não foram capacitados para isso e alunos problemáticos são responsabilidade dos pais (ou família).

Essa lógica se encontra muito distante de qualquer leitura humanizadora e produz, por vezes, resultados devastadores em crianças e adolescentes com consequências futuras nefastas, tais como abuso de substâncias psicoativas lícitas (álcool, tabaco, etc.), ilícitas (cocaína, crack, etc.) e fármacos de ação no SNC (estimulantes, ansiolíticos e antidepressivos).

Professores da Educação dos anos iniciais aprendem em sua formação, que as dificuldades escolares existem e são, via de regra, de natureza biológica. Ao analisar a grade curricular dos cursos de Licenciaturas, Pedagogia e Psicologia, encontrar-se-á sempre, pelo menos, uma disciplina que aborda tais questões: Psicologia Escolar e Problemas de Aprendizagem, subdividida em tópicos por características sintomatológicas, que estudam as “doenças” da Educação. Há diagnósticos para tudo: para leitura e escrita: dislexia, disgrafia, disortografia, etc.; para aprendizagem de matemática: discalculia, discalculia léxica; para a fala: dislalia, disartria; para fracasso geral: transtorno do processamento auditivo (TPA); para comportamentos inadequados: transtorno do déficit de atenção com ou sem hiperatividade (TDA/H), transtorno opositor desafiador (TOD), etc.

O processo educacional reforça a dominação na sociedade cujos mecanismos reproduzem, sem reelaboração, as referências ideológicas e as relações sociais. No entanto, contraditoriamente à Educação, pode criticar e superar esses conteúdos ideológicos e assim atuar na resistência à dominação da sociedade, contribuindo para reações político-sociais menos opressoras. Nessa medida tonar-se uma prática transformadora (Severino, 2001). Mas não é efetivamente o que acontece: professores acríticos em suas práticas cotidianas, reproduzem esses dispositivos sem questionamentos ou novos entendimentos. Desta forma, garantem o discurso medicalizante, tendo em vista a zona de segurança que eles – os diagnósticos – os mantêm.

Já para a medicina e o olhar ocidental para as questões mencionadas, por exemplo, o déficit de atenção e (TDA/H), existe tão somente o olhar biológico em funcionamento patológico: daí a frequente prescrição de medicamentos e sugestão de outras intervenções em saúde, como por exemplo, a certificação de exames de imagem – PET SCAN – que indicam um marcador biológico (hipoestimulação de certa área cerebral) suficiente para comprovação científica do transtorno. Mas há controvérsias. Inúmeras. Esse fenômeno (hipoestimulação) tem sido resolvido em alguns países com ações pedagógicas, dentro e fora da escola.

Quando do enfrentamento dessas questões, pais – no limite do esgotamento físico e psíquico – buscam soluções rápidas, universais e definitivas, no sentido de se auto ajudarem diante este panorama reconhecidamente espinhoso.

A produção de diagnósticos sumários costuma silenciar outras questões que ancoram diferentes níveis de subjetivação, demandas familiares e sociais.

Os estudantes medicalizados por essa mesma lógica estruturante, pouco podem fazer: a governabilidade de sua existência (e corpo) está a cargo dos responsáveis e raramente são escutados, seja pela natureza bioempoderada desse procedimento, seja pela impossibilidade (momento do desenvolvimento, faixa etária, etc.) de produzir questionamentos e tomar decisões outras.

METODOLOGIA UTILIZADA

O mundo é feito de histórias, não de átomos, pois, são as histórias que a gente conta, escuta, recria e multiplica, é que permitem transformar o passado em presente, o distante em próximo, possível e visível (Eduardo Galeano).

A concepção sócio-histórica afirma que o ser humano é um ser ativo, social e histórico. Constrói sua existência a partir de ações sobre a realidade, que tem por objetivo satisfazer suas necessidades. Essa perspectiva quebra velhos paradigmas tais como “os fenômenos psicológicos são construídos tão somente a partir das experiências pessoais”. Para a psicologia sócio-histórica, a constituição do sujeito se dá no âmbito coletivo e cultural. Assim, os elementos construtores da subjetividade não são um a priori, mas uma conquista humana a partir de sua atividade e sua intervenção transformadora sobre o mundo. Estudar e compreender o fenômeno psicológico exige a compreensão de ser este um processo, construído historicamente, ou seja, o aparecimento de formas de subjetivação construídas no tempo histórico (Bock, 2008).

A subjetividade individual representa a constituição histórica de relações sociais do sujeito dentro de um sistema individual. O indivíduo, ao viver relações sociais e experiências determinadas em uma cultura que tem ideias e valores próprios, vai se constituindo, ou seja, vai construindo sentido para as experiências que vivencia. Esse espaço pessoal dos sentidos que atribui-se ao mundo se configura como a subjetividade Individual (idem).

A subjetividade social é exatamente a aresta subjetiva da constituição da sociedade. Refere-se ao sistema integrado de configurações subjetivas (grupais ou individuais), que se articulam nos distintos níveis da vida social (ibidem).

Nessa perspectiva, a percepção que professores (educação básica) e médicos (psiquiatras e neurologistas) contemporâneos têm dos problemas escolares, não são diferentes dos médicos e professores do século passado: a lógica preponderante que explica os motivos que levam crianças e jovens ao fracasso escolar em nada mudou, tendo em vista o formato verticalizado da Educação através dos tempos, bem como o entendimento médico desses fenômenos. Salvo em algumas propostas pedagógicas inovadoras, o médico e professor do século passado exerciam suas ações da mesma forma que na contemporaneidade, ou seja, empoderada, governada por micro poderes, assimétricas em relação à compreensão da realidade ao qual se inserem os aprendentes e pacientes, sem considerar novas possibilidades.

É evidente que mudanças ocorreram, tendo em vista estar o conhecimento científico constantemente em desenvolvimento, pesquisa, revisão, experimentação, produzindo novos saberes, propostas e leituras.

As escolas se modernizaram fisicamente, a tecnologia pedagógica se aperfeiçoou, novas estratégias foram desenvolvidas, mas o aqui se questiona é a ideologia mantida nas práticas educacionais utilizadas na construção dos saberes médicos e pedagógicos que produzem profissionais perpetuadores de tais entendimentos. Numa leitura rasa, o modelo filosófico cartesiano ainda é imperativo quando se estabelece predominantemente, relações de causa-efeito.

O interesse primordial desse estudo foi o de avaliar se, procedimentos humanizadores na construção dos saberes médicos e na formação de professores, podem produzir novas leituras a respeito do fracasso escolar e impedir desta forma, a permanência do modelo medicalizante que também governa as salas de aula nas faculdades de medicina e de pedagogia, e que conduz, nas práticas futuras, a reprodução desses entendimentos dentro de escolas e consultórios.

Também aqui se pretendeu melhor entender, as razões pelas quais pais optam pela uso do metilfenidato – mesmo considerando as diversas possibilidades de efeitos colaterais adversos – como panaceia universal para solução das demandas informadas pela escola e vivenciadas em seus cotidianos.

Para tanto, foi desenvolvido estudo transversal prospectivo para a avaliação das atividades didáticas, médicas, ações familiares e vivências dos estudantes em narrativas, mediante o emprego de métodos qualitativos. A escolha de métodos qualitativos decorreu da natureza das questões a serem exploradas, as quais se encaixam plenamente no paradigma sócio-histórico, qual seja, como construções históricas e sociais da humanidade.

Ao buscar a compreensão de quais leituras são feitas por médicos e professores – a partir da História Oral de Vida – buscou-se nas matrizes técnicas e ideológicas utilizadas, os significados atribuídos ao fenômeno medicalização originários em suas próprias experiências formativas.

No âmbito familiar e estudantil, também foram investigadas as matrizes que explicam a opção pelo uso de metilfenidato, bem como as vivências advindas dos efeitos previstos e não previstos.

As informações foram obtidas através de entrevistas semiestruturadas, onde o professor, médico e pais são os atores que conduziram o fluxo discursivo dos temas relevantes para essa pesquisa, qual seja, a construção inicial narrada que oferece consistência para elaboração dos diagnósticos. A metodologia para análise e interpretação dessas narrativas foi de natureza discursiva (entrevistas), depois de transcritas e transcriadas.

Os procedimentos que visaram dar credibilidade e consistência às narrativas foram os da imersão e cristalização.

Imersão refere-se ao processo de aprofundamento na leitura dos dados coletados, observando cuidadosamente todos os detalhes; Para dar consistência, a cristalização é o processo de suspensão temporária do processo de análise ou leitura dos dados (imersão), a fim de refletir sobre a experiência de análise e tentativa de identificar e articular padrões ou temas notados durante o processo de imersão (Borkan, 1999).

O conceito de transcrição em História Oral foi introduzido por Sebe (2010), onde se busca reconstruir do ponto de vista linguístico e transformar a narrativa em texto fluido, o mais próximo possível da realidade intencionada no discurso. Para compreender melhor a relação que se estabelece entre o comportamento humano, conceitos e sentimentos, deve-se partir das manifestações verbais dos professores e médicos.

Nesse sentido e para este estudo, foi o contexto lógico-semântico-estrutural das respostas, que municiou previamente a análise das narrativas, obedecendo ao seguinte fluxograma:

  1. Entrevistas semiestruturas gravadas
  2. Transposição literal dos conteúdos obtidos
  3. Transcriação
  4. Retorno e autorização da narrativa pelo colaborador
  5. Análise das narrativas

As entrevistas foram realizadas com 04 (quatro) profissionais da saúde (especialistas que normalmente recebem este tipo de demanda), 04 (quatro) profissionais da Educação e 04 (quatro) pais com filhos que fazem uso de medicação/procedimentos ligados ao fracasso e/ou comportamentos tidos como inadequados Foram executadas preliminarmente, duas entrevistas-teste, para verificação da validade preditiva do procedimento, tendo em vista que os entrevistados poderiam produzir narrativas inconsistentes para este estudo e desta forma, não forneceriam informações suficientes de modo a constatar ou refutar a hipótese aqui formulada. Por esta razão optou-se por uma pré-testagem com dois narradores – um profissional da Educação e um da Saúde.

Para tanto, foi construído roteiro de entrevista semiestrutura, com as seguintes questões de corte:

Para o(a) profissional da Educação:

1)       Gostaria de conhecer um pouco do seu percurso profissional. Poderia compartilhar?

2)       Como e por que decidiu pela área da Educação?

3)       Como escolheu sua área de atuação?

4)       Como o(a) senhor(a) procede quando um aluno vai mal (fracassa) ou se comporta de forma inadequada?

Para o(a) médico(a):

1)    Gostaria de conhecer um pouco do seu percurso profissional. Poderia compartilhar?

2)    Como decidiu ser médico(a)?

3)    Como escolheu sua especialização?

4)    Como o(a) senhor(a) avalia os encaminhamentos que recebe, de crianças e jovens com queixas escolares (dificuldades de aprendizagem e/ou comportamentos inadequados)?

Na sequência foram ouvidos pais que optaram pelo uso de metilfenidato e estudantes que fizeram (ou fazem) uso do metilfenidato. Aqui, as perguntas de corte serão:

Para os pais:

1)    Gostaria de te conhecer um pouco. Me conte um pouco sobre o que faz, do que gosta, etc.

2)    Gostaria de conhecer os caminhos já percorridos pelo senhor/senhora, em relação às queixas escolares atribuídas ao seu filho(a).

3)    Qual a solução que melhor atendeu suas expectativas? Por que?

OBS: Todos os narradores deverão assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.

Com os dados obtidos nas narrativas iniciais e nas análises dos respectivos conteúdos transcriados, verificou-se uma nova tendência que sinaliza outras questões que serviram para uma importante revisão nessa pesquisa: na hipótese inicialmente formulada foi revelada uma propensão diferente da presumida, ou seja, tanto o educador quanto o médico narram seus entendimentos sobre medicalização, a partir de suas próprias formações acadêmicas, que raramente oferecem leituras mais humanizadas acerca das questões aqui discutidas.

O educador parece entender que quem não aprende ou apresenta comportamentos problemáticos, deve sempre, receber o olhar da saúde, ou seja, que a queixa se encontra muito distante das questões escolares. Foram consultadas algumas grades de formação nas Licenciaturas e Pedagogia, e não há, durante todo percurso acadêmico, disciplinas que possibilitem leituras não medicalizantes. Ao contrário: costumam frequentar uma única disciplina específica para isso: Psicologia Educacional e da Aprendizagem, cuja ementa, restringe-se à apresentação e descrição de todos os supostos transtornos ligados ao fracasso escolar e inadequação comportamental.

Excetuando-se as evidentes patologias incapacitantes – alguns transtornos do neuro- desenvolvimento, déficits sensoriais, quadros sindrômicos, as demais – TDA/H, dislexia, disgrafia, disortografia, discalculia, discalculia léxica e TOD – são de etiologia discutível, sem comprovadas evidências científicas que as certifiquem. Mas continuam em franca utilização, tendo em vista que, através delas, desresponsabiliza-se diante do aluno, creditando a terceiros, a responsabilidade de resolvê-las.

Já na formação médica, o acadêmico aprende a lidar com o bios em funcionamento patológico. Ao receber crianças e jovens com queixa escolar de fracasso ou inadequações, não há, na maioria das vezes, qualquer outra possibilidade analítica que escape do organicismo funcional, ou seja, se está aqui, aqui se está doente.

Desta forma, a presente pesquisa teve como objetivo maior, evidenciar esses fenômenos como constructos-formativos no período de graduação em Educação e Medicina, para que seja possível, repensar tais práticas e reduzir o excessivo processo de transformação das questões escolares em problemas de saúde.

Também foram obtidas informações através das narrativas dos pais que acatam tais procedimentos.

CONCLUSÕES

Na análise preliminar dos dados coletados (narrativas gravadas, transcritas e transcriadas), foram obtidas informações de consistência significativa no grupo dos professores. Todos relatam, ainda que em formatos diferentes, suas dificuldades no manejo pedagógico de crianças que aprendem por caminhos diferentes, que não se aquietam ou ainda, que não se concentram na razão prevista pelo professor. Isso nos conduz para uma realidade problemática – ou pelo menos preocupante – de que os professores tornam-se professores a partir de modelo único e singular, haja vista, que crianças, estatisticamente, respondem à curva de Gauss, já mencionada anteriormente. Professores não se capacitam para ações pedagógicas com crianças diferentes. A grade curricular dos cursos de Pedagogia não oferecem tal capacitação. Uma ou duas disciplinas referentes às questões relativas ao ensino especial são oferecidas apenas como figurantes em um universo de informações padronizadas e imutáveis há anos.

Parece que o nascedouro das questões medicalizantes/patologizantes da Educação começa exatamente pelas ações (ou não-ações) dos professores que não sabem e não aprenderam a lidar com alunos que não se desenvolvem no ritmo-padrão mediano que é oferecido pela maioria das escolas, sejam elas públicas ou privadas.

Já nas entrevistas realizadas com médicos e profissionais de saúde, o discurso reflete precisamente o que se capacitaram para: tratar doenças e doentes. Não se veem leituras menos patologizantes: se há sintomas, certamente há síndromes. E para cada uma delas, um procedimento em saúde. Na maioria das vezes, esses pacientes são capturados pela lógica biologizante, pois, este é o fazer médico (ou da saúde). E dentre os procedimentos mais frequentes estão a prescrição de medicamentos, particularmente o metilfenidato que teve um incremento oceânico nos últimos anos, conforme assinala a própria ANVISA (Tófoli, 2006). O conjunto de efeitos colaterais é irrelevante e a posologia preocupante: via de regra seguem o protocola de uso apenas durante o período de aula, suspendendo nos fins de semana, feriados e férias. Portanto, não se esperava relatos de procedimentos outros diferentes dos anunciados, qual seja, a prescrição de fármacos que basicamente produzem controle sobre o comportamento na escola. Afinal, médicos são treinados para isso. Pouco se ouve em termos de leitura mais ampla sobre a queixa apresentada (desatenção, inquietude, excesso de atividade motora).

Nos relatos das famílias, nada foi encontrado além do presumível: no limite do esgotamento físico e psicológico, acataram qualquer procedimento médico sem questionamentos. E os resultados obtidos são exatamente aqueles que esperam dos filhos: aquietação e melhoria na produção escolar. Isso, por si só, basta. Dos entrevistados, nenhuma família interessou-se pelos cuidados/efeitos adversos decorrentes do uso continuado descritos na bula.  Desejavam apenas ter o problema resolvido pelo caminho mais curto e eficiente. Jamais eficaz, haja vista, ser a sintomatologia apresentada, uma das múltiplas e diferentes formas de subjetivação e portanto, merecedora de ações mais complexas e não como um transtorno real, comprovado e tratável pelo caminho mais curto. Importante frisar que o uso continuado do metilfenidato produz múltiplos efeitos colaterais indesejáveis, apresentados detalhadamente na bula. Cabe ressaltar: distúrbios psiquiátricos: irritação, agressividade, alterações de humor, comportamento e pensamentos anormais, raiva, pensamentos ou tentativas de suicídio (incluindo suicídio), atenção excessiva ao ambiente, sentimento excepcionalmente animado, atividade aumentada e desinibida (mania), sentimento desorientado, alterações no desejo sexual, falta de sentimento ou emoção, fazer as coisas repetidamente, obsessão por alguma coisa, confusão, vício.

Isso nos conduz a uma conclusão parcial e preliminar, onde o maior contingente de alunos da Educação Básica aprende e uma parcela menor, não. Para esses últimos, o professor se desonera e faz os encaminhamentos internos (em um primeiro momento) para níveis superiores que, por sua vez, conduzem – via pais ou responsáveis – para outras instâncias externas à escola no sentido de produzir as providências necessárias, que normalmente, estão no campo da saúde: psicólogos, médicos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, etc.

Como se vê, uma demanda educacional torna-se uma inescrutável questão capturada pela saúde, inescrupulosamente e que carece de um crivo mínimo para intervenção nesse campo. E que definitivamente, não há espaço para o singular.

Este estudo se propôs a produzir uma visão mais ampliada de questões tão complexas e buscou, de forma inédita, escutar os atores em seu discurso original. Com base na metodologia História Oral de Vida, foram obtidas narrativas denunciadoras de elementos estruturantes do modelo educacional vigente – medicalizante e biologizante – que normatiza padrões de comportamento e resultados escolares. E não há pudor ético que possa demover alguns dos seus atores – particularmente professores – que exercem suas atividades pedagógicas alicerçadas em métodos carcomidos pelo tempo, aprendidos e jamais questionados durante e após a graduação, quando afirmam de forma inconteste que foram capacitados para lidar com “crianças normais” (este é um dos sintomas dessa desfaçatez) e jamais com crianças-problema ou outras demandas “psi”.

A ideia de se propor um entendimento, a partir de narrativas de professores, profissionais da saúde e familiares que vivem experiências de natureza medicalizante, foi oferecida uma possibilidade inédita de ações diversas que visam sobretudo, humanizar este fenômeno multifatorial e controverso nomeado como fracasso escolar.

As narrativas iniciais coletadas indicaram um cenário preocupante: muito além das inúmeras possibilidades teóricas para entendimento desta questão, foram encontrados nesse estudo, elementos potencialmente desencadeadores do processo medicalizante que é a formação e atuação dos professores da educação básica.

Tais narrativas sinalizam que os fazeres dos profissionais da Educação contém uma base de ideia original sobre ensinar conteúdos, avaliar sob alguns critérios quem aprendeu e quem fracassou, sem qualquer exame que possibilite uma visão ampliada desses resultados. O processo educacional está alicerçado em planejamento para todos, afinal espera-se que todos aprendam e confirmem a distribuição normal esperada. Jamais se planejam ações pedagógicas, nem tampouco, resultados diferentes. Isso coloca todos os alunos e suas singularidades numa tábula rasa, perversa e medicalizante: quem não obtém sucesso é excluído e encaminhado para providências cabíveis. Tais medidas referem-se basicamente aos procedimentos em saúde – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, etc –  assumindo total responsabilidade da queixa produzida pela escola. Tais procedimentos veem sido usados prioritariamente, haja vista, a velocidade com que produzem resultados rápidos, pontualmente eficientes, mas não eficazes. Em outras palavras, medicamentos, psicoterapia, terapia fonoaudiologia, etc., produzem os efeitos esperadas pela escola, mas e principalmente pelos cuidadores que via de regra, acatam tais orientações. Desta forma, vários indicadores em saúde mostram o crescimento nas vendas dos medicamentos preferencialmente utilizados pelos “problemáticos ou fracassados” (TDAH) qual seja, estimativa de aumento percentual real no consumo de metilfenidato no Brasil de 2009 para 2011 variou de 27,4% para UFD/ 1.000 habitantes de 06 a 59 anos a 74,8% para DDD/ 1.000 (Prescrição e consumo de metilfenidato no Brasil: identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário, Boletim de Farmacoepidemiologia, Ano 2, nº 2 | jul./dez. de 2012)  crianças com idade entre 6 e 16 anos/ dia. Essa lógica estabelece uma nova ordem, onde a saúde anuncia oferecer as melhores soluções para os problemas escolares, independentemente dos efeitos colaterais anunciados nas próprias bulas desses fármacos.

É possível verificar a existência de uma forte polêmica em torno do diagnóstico de TDAH (CALIMAN, 2014, p. 225-231), fato inclusive constatado nesse documento publicado pelo Ministério da Saúde. A recomendação do governo ressalta que o diagnóstico de TDAH envolveria a observância de comportamentos que são típicos da infância e da adolescência, muitas vezes motivados pelo contexto social, como as dificuldades familiares e interpessoais ou as relações estabelecidas em ambientes de ensino que podem se mostrar altamente competitivas, estigmatizantes e excludentes. O TDAH tem sido diagnosticado apenas com base em questionários ou em observações de comportamentos. O resultado disso seria “um processo crescente de medicalização, entendido como o processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos” (BRASIL, 2015, p. 05). Essa situação gera, inclusive, uma crítica por parte da Psicologia, pois a escola teria assumido “o papel de prescritor de fármacos” (SILVA et al., 2012, p.49), fazendo o diagnóstico deixar de ser uma atribuição exclusiva do médico. Nessa perspectiva, o discurso médico e a prescrição de medicamentos se pulverizam na sociedade. É certo que alguns familiares questionam a prescrição destes medicamentos, mas a maioria, acata. Isso fez com que nas escolas públicas da cidade de São Paulo, a Saúde não pode receber alunos encaminhados pela Educação- PORTARIA 986/14 – SMS, 2014 Secretaria Municipal de Saúde – onde o aluno deve ser previamente avaliado por equipe multiprofissional antes de qualquer ação – educacional ou clínica. Esse Grupo de Trabalho (GT) analisa a demanda e encaminha de diferentes formas (Torcato, 2016).

Assim parece iniciar-se o processo de medicalização do fracasso escolar. Ao término da pesquisa, tal cenário será confirmado ou refutado, e no caso deste último, criar uma nova hipótese a ser investigada com maior profundidade. Em qualquer uma das situações, o processo medicalizante está presente, se se considerar os dados oceânicos do consumo de metilfenidato e crianças e adolescentes que frequentam sessões de psicoterapia, fonoaudiologia e psicopedagogia, todos advindos das queixas escolares.

VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS INICIAIS

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[1] Psicólogo, mestre em Psicologia de Educação, doutor em Saúde Coletiva, professor universitário e supervisor de estágio em processos educativos (estágio em Psicologia Escolar). Orientador educacional e consultor psicopedagógico.

[2] Entende-se por medicalização o processo por meio do qual as questões da vida social – complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico – são reduzidas a um tipo de racionalidade que vincula artificialmente os desvios em relação às normas sociais a um suposto determinismo orgânico que se expressaria no adoecimento do indivíduo (Fórum sobre medicalização da Educação e da Sociedade).

[3] O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o biológico (corpo) que vira central nas discussões políticas. Modificá-lo, transformá-lo, aperfeiçoá-lo são objetivos do biopoder, além de, é claro, produzir conhecimento, saber sobre ele, para melhor manejá-lo. A essa estratégia denomina-se biopolítica e sua força reguladora, biopotência. O termo biopolítica apareceu pela primeira vez na obra do filósofo francês Michel Foucault numa conferência proferida em 1974 no Rio de Janeiro sob o título “O nascimento da medicina social” (Junges, 2007).

[4]A distribuição normal é uma das mais importantes distribuições da estatística, conhecida também como Distribuição de Gauss ou Gaussiana. Foi primeiramente introduzida pelo matemático Abraham de Moivre. Além de descrever uma série de fenômenos físicos e financeiros, possui grande uso na estatística inferencial. É inteiramente descrita por seus parâmetros de média e desvio padrão, ou seja, conhecendo-se estes valores consegue-se determinar qualquer probabilidade em uma distribuição Normal.

[5] A teoria científica atual defende que no TDAH existe uma disfunção da neurotransmissão dopaminérgica na área frontal (pré-frontal, frontal motora, giro do cíngulo), nas regiões subcorticais (estriado, tálamo médiodorsal) e na região límbica cerebral (núcleo acumbens, amígdala e hipocampo).

[6]   “Seria conveniente pedir a opinião de um médico, psicólogo, fonoaudiólogo” (SIC).

[7] Ainda não está claro quais são as causas diretas e imediatas do TDA/H, apesar dos avanços científicos e tecnológicos no domínio das técnicas de imagens neurológicas e genéticas. Existe a promessa de esclarecer esta questão num futuro próximo. A maioria dos pesquisadores suspeita que a causa do TDA/H é genética ou biológica, apesar de reconhecer que o ambiente da criança, ajuda a determinar seus comportamentos específicos (Miranda et al, 2008).

[8] Testes psicológicos para diagnóstico do TDA/H: SNAP-IV – Swanson, Nolan e Pelham-IV(domínio público) e ETDAH-AD – Escala de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (Editora Vetor).

[9] Portaria Nº 986/2014.

[10] Nota do autor

[11] a) Ortega, F., et al, A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas. A ritalina no Brasil: produções, discursos e práticas, Rio de Janeiro, UERJ, 2010; b) Lima, C. Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005; c) Tofoli, D. País vive febre da ‘droga da obediência’. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 jan. 2006. Caderno Cotidiano, p.C1

 

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Hornblas, D. S. (ORCID 0000-0003-3832-3780) . Medicalização do fracasso escolar. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Psicologia, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14712779, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 21/01/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/medicalizacao-do-fracasso-escolar/. Acesso em: 24/04/2025.