Homologação de Sentença Estrangeira, Jurisdição Brasileira e o Melhor Interesse da Criança: Limites Materiais à Execução Transnacional de Decisões de Guarda

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: C.E.R. em 2025-10-30 14:44:51

Submissão: 29/10/2025

Autores

Juan Carlos Aguilar

Curriculo do autor: Formado em Direito, advogado licenciado, atualmente sou Servidor Público do Estado do Maranhão, trabalho na Procuradoria Geral de Justiça

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Resumo

O artigo examina a relação entre a homologação de sentença estrangeira pelo Superior Tribunal de Justiça e a competência da Justiça brasileira para apreciar ações de modificação de guarda quando os menores residem e estão integrados no território nacional. Analisa-se o regime jurídico previsto nos arts. 960 a 965 do CPC/2015, no art. 105, I, “i”, da Constituição Federal e no Regimento Interno do STJ, destacando que a homologação possui natureza de controle de compatibilidade, e não de revisão de mérito. Embora a homologação atribua eficácia interna ao título estrangeiro, reconhece-se que as questões de guarda, visitas e alimentos têm natureza continuativa e se submetem à cláusula rebus sic stantibus, podendo ser revistas diante de fatos supervenientes. A jurisprudência do STJ, inclusive no Informativo 805/2024, firmou que a homologação não impede a propositura de ação de modificação de guarda no Brasil, devendo prevalecer o princípio do melhor interesse da criança. O estudo ressalta, ainda, a necessidade de instrução probatória atualizada — como avaliação psicossocial e oitiva do menor — antes da execução de medidas drásticas, como busca, apreensão ou repatriação imediata, reafirmando que a aplicação mecânica de decisões estrangeiras é incompatível com a centralidade constitucional do interesse infantojuvenil. Conclui-se que a jurisdição brasileira mantém competência para modular e condicionar os efeitos de decisões homologadas, ajustando-as à realidade atual das crianças sob sua proteção.

Palavras-Chave

Homologação de sentença estrangeira. Guarda internacional. Melhor interesse da criança. Jurisdição brasileira. Cooperação internacional. Rebus sic stantibus.

Abstract

This article explores the relationship between the Brazilian Superior Court of Justice’s (STJ) homologation of foreign judgments and the jurisdiction of national courts to modify child custody arrangements when the child resides and is socially integrated in Brazil. It highlights that, under Articles 960 to 965 of the CPC/2015 and Article 105, I, “i” of the Federal Constitution, homologation serves as a compatibility mechanism, not a reassessment of the foreign decision’s merits. Despite granting internal effect to foreign rulings, custody, visitation, and support are continuing legal relations, governed by the rebus sic stantibus clause, allowing reexamination based on new facts. The STJ’s case law, notably Informativo 805/2024, confirms that homologation does not prevent Brazilian courts from revising custody when the child’s habitual residence is in Brazil, prioritizing the best interests of the child. The article concludes that automatic enforcement of foreign custody decisions without assessing the child’s current situation contradicts Brazilian constitutional principles. The Justice system must ensure contextual evaluation—through updated psychosocial reports and child hearings—before imposing measures like repatriation, safeguarding the child’s emotional stability and welfare.

Keywords

Foreign judgment homologation. International child custody. Best interests of the child. Brazilian jurisdiction. International cooperation. Rebus sic stantibus.

 1. INTRODUÇÃO

 

O fenômeno da globalização intensificou as relações interpessoais e familiares entre indivíduos de diferentes nacionalidades, tornando cada vez mais frequentes os casos de famílias binacionais, casamentos internacionais e filhos com dupla cidadania ou residência em países distintos. Essa realidade tem exigido do Poder Judiciário brasileiro soluções sensíveis, equilibradas e juridicamente consistentes para lidar com os reflexos dessa pluralidade, especialmente nas hipóteses em que o rompimento conjugal provoca disputas relativas à guarda e convivência de filhos menores.

Em tais situações, surge o desafio de conciliar a eficácia das decisões estrangeiras com a soberania jurisdicional interna, sem perder de vista a primazia do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio norteador do ordenamento jurídico pátrio (art. 227 da Constituição Federal). A homologação de sentença estrangeira, a cargo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), constitui o instrumento técnico-jurídico de compatibilização entre ordens judiciais, permitindo que provimentos estrangeiros irradiem efeitos dentro do território nacional sem afronta à ordem pública.

Contudo, a homologação, por sua natureza, não tem o condão de congelar a realidade fática. Em matérias como guarda, alimentos e convivência familiar, cujo conteúdo é eminentemente continuativo, a coisa julgada é condicionada à permanência das circunstâncias que lhe deram origem. Nesse sentido, a jurisprudência contemporânea tem reafirmado que a homologação não impede a propositura de ação de modificação de guarda no Brasil, sobretudo quando os menores residem e se encontram integrados à sociedade brasileira.

O presente estudo examina, com base em fundamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais, a extensão dos efeitos da homologação de sentença estrangeira e sua compatibilidade com o exercício da jurisdição nacional, analisando, em especial, o precedente recente do STJ noticiado no Informativo nº 805/2024, que reconheceu a prevalência do melhor interesse da criança sobre a rigidez formal da execução internacional.

2. A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

A homologação de sentença estrangeira é o procedimento destinado a permitir que uma decisão proferida por autoridade jurisdicional estrangeira produza efeitos no Brasil. O art. 961 do Código de Processo Civil de 2015 estabelece que “a decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação de sentença estrangeira ou a concessão do exequatur às cartas rogatórias”.Esse controle, contudo, não se confunde com reexame do mérito, mas visa a verificar se o título estrangeiro é compatível com a ordem jurídica brasileira e com os valores constitucionais internos.

Trata-se, pois, de controle de compatibilidade, e não de revisão jurisdicional. O Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, “i”, da Constituição Federal, é o órgão competente para processar e julgar tais pedidos, cabendo-lhe avaliar a observância dos requisitos legais elencados no art. 963 do CPC/2015, tais como: competência da autoridade prolatora, citação válida das partes, eficácia no país de origem, ausência de ofensa à soberania nacional e à ordem pública, e tradução oficial do documento.

A doutrina esclarece que o procedimento homologatório constitui o meio pelo qual o Brasil reconhece a validade formal de decisões estrangeiras, conferindo-lhes eficácia interna, mas sem lhes alterar o conteúdo. Como ensina Luiz Guilherme Marinoni, “o processo de homologação de sentença estrangeira não revisa o mérito da decisão, mas verifica se ela se harmoniza com o ordenamento interno, assegurando cooperação e reciprocidade entre jurisdições” (Código de Processo Civil Comentado, RT, 2018, p. 489).

Em linha semelhante, Paulo Henrique Portela ressalta que “uma vez homologada, a sentença estrangeira passa a produzir no Brasil os mesmos efeitos de uma decisão nacional, desde que não ofenda a ordem pública nem viole princípios fundamentais da Constituição” (Direito Internacional Público e Privado, Juspodivm, 2010, p. 562).

O STJ, em decisões paradigmáticas como a SEC 14.812-EX, relatada pela Ministra Nancy Andrighi (Info 626/STJ), firmou que não se exige mais o trânsito em julgado da decisão estrangeira como condição para homologação, bastando sua eficácia no país de origem. Essa evolução afasta o formalismo excessivo e privilegia a efetividade da cooperação internacional, sem renunciar ao controle soberano do Estado brasileiro.

3. A DINAMICIDADE DAS RELAÇÕES PARENTAIS E O PRINCÍPIO REBUS SIC STANTIBUS

As relações familiares, sobretudo no que tange à guarda e aos alimentos, não possuem caráter estático. Elas se desenvolvem e se transformam à medida que o tempo e as circunstâncias alteram o contexto da vida familiar. A guarda é, portanto, uma situação jurídica continuativa, sujeita à cláusula rebus sic stantibus, o que significa que a decisão judicial sobre o tema tem validade enquanto perdurarem as condições que a motivaram.

No âmbito internacional, isso adquire especial relevância. Quando uma decisão estrangeira versa sobre guarda e é homologada pelo STJ, ela passa a ter eficácia no Brasil, mas não impede que a jurisdição brasileira examine novos pedidos se houver alteração substancial no quadro fático. Assim, a homologação não constitui um obstáculo intransponível, mas um ponto de partida para o diálogo jurisdicional entre Estados soberanos.

O STJ, no julgamento da SEC 8.285/EX (Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 18/12/2013), deixou expresso que as disposições de sentenças estrangeiras relativas à guarda, visitas e alimentos estão submetidas à regra da coisa julgada “rebus sic stantibus”. Portanto, se fatos novos surgirem — como mudança de domicílio, integração social da criança em outro país ou alteração das condições dos pais —, é legítima a intervenção da Justiça brasileira para readequar a situação à nova realidade.

A Corte Especial, no julgamento da SEC 6.485/EX (Rel. Min. Gilson Dipp, julgado em 03/09/2014, Info 548/STJ), reafirmou esse entendimento, admitindo a homologação parcial de sentença estrangeira, de modo a reconhecer apenas o divórcio, excluindo os capítulos sobre guarda e alimentos quando incompatíveis com decisões internas posteriores. Esse modelo de homologação fracionada preserva a soberania jurisdicional e assegura a prevalência do interesse da criança.

4. A CONVENÇÃO DE HAIA E O PAPEL DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

O Brasil é signatário da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Decreto nº 3.413/2000), que estabelece procedimentos para a restituição imediata de menores indevidamente transferidos ou retidos. Embora a Convenção busque evitar a retirada ilícita de crianças do país de residência habitual, sua aplicação deve sempre respeitar o princípio do melhor interesse da criança, e não pode servir como instrumento de coerção ou de retorno automático.

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.164.547/PE (Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 07/10/2010), reconheceu que “ofende a soberania nacional a extinção do processo interno de guarda antes de realizada a instrução probatória, sob o argumento de que a matéria seria de competência exclusiva do país de origem”. O acórdão reforça que, ainda em contexto de cooperação internacional, o juízo brasileiro não pode abdicar de sua função de proteção integral quando a criança se encontra sob sua jurisdição.

O art. 16 da Convenção de Haia dispõe que, comunicada a transferência ou retenção ilícita, as autoridades do Estado onde a criança se encontra devem aguardar decisão sobre o pedido de retorno antes de examinar o mérito da guarda. Contudo, o dispositivo também admite que, decorrido tempo razoável sem manifestação do Estado requerente, a jurisdição local possa analisar a situação da criança, considerando o grau de integração no novo ambiente social e familiar.

A doutrina de Maria Berenice Dias é clara ao afirmar que “a determinação de retorno do menor ao país de origem não é princípio absoluto; o retorno deve sempre atender ao seu melhor interesse” (Manual de Direito das Famílias, 14ª ed., 2021, p. 969). Assim, a cooperação internacional não se opõe à proteção interna, mas deve operar em sintonia com os valores constitucionais do ordenamento brasileiro.

5. O PRECEDENTE DO STJ DE 2024: CONCILIAÇÃO ENTRE EFICÁCIA INTERNACIONAL E PROTEÇÃO INTERNA

Em decisão recente, proferida em março de 2024 e noticiada no Informativo 805/STJ, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou que a homologação de sentença estrangeira não constitui óbice à propositura de ação de modificação de guarda no Brasil, desde que os menores residam em território nacional. O caso envolveu uma família binacional e ilustrou a tensão entre a execução de decisão estrangeira e a necessidade de adequação às condições reais de vida das crianças.

O Tribunal reconheceu que a homologação tem caráter declaratório e formal, conferindo eficácia interna à decisão estrangeira, mas sem imobilizar a realidade fática. Assim, mesmo após homologada a sentença de guarda estrangeira, é possível ajuizar ação revisional no Brasil para reavaliar a situação à luz de fatos supervenientes, como adaptação escolar, vínculos afetivos e estabilidade emocional.

A decisão destacou ainda que o juiz brasileiro deve, antes de determinar qualquer medida coercitiva de busca ou repatriação, avaliar a situação concreta da criança, ouvindo-a diretamente, conforme previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/1990), e mediante estudo psicossocial atualizado. A proteção integral e a prioridade absoluta da infância não podem ser substituídas por formalismos de direito internacional privado.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A homologação de sentença estrangeira é instrumento indispensável de cooperação jurídica internacional, mas deve ser interpretada à luz dos valores fundamentais da Constituição brasileira. A eficácia de decisões estrangeiras em território nacional não pode sobrepor-se ao dever estatal de proteger crianças e adolescentes, sobretudo quando eles se encontram sob jurisdição brasileira e integrados a um novo contexto de vida.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem se mostrado sensível e evolutiva, ao reconhecer que o melhor interesse da criança prevalece sobre qualquer exigência formal de reciprocidade ou rigidez internacional. A coexistência entre o controle de compatibilidade (homologação) e a jurisdição protetiva (modificação de guarda) representa uma forma madura de diálogo entre soberanias, em que a cooperação internacional é instrumento de justiça, e não de submissão.

Em suma, a homologação de sentença estrangeira não é obstáculo, mas complemento à jurisdição nacional, cuja missão constitucional é assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar saudável, à estabilidade emocional e à preservação de seus vínculos afetivos e sociais. O verdadeiro respeito à soberania consiste em garantir que a lei e a justiça se orientem sempre pela dignidade humana e pela proteção integral daqueles que mais necessitam da tutela do Estado.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
  • BRASIL. Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).
  • BRASIL. Decreto nº 3.413/2000 – Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças.
  • DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.
  • MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo. São Paulo: RT, 2018.
  • PORTELA, Paulo Henrique. Direito Internacional Público e Privado. Salvador: JusPodivm, 2010.
  • CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A homologação de sentença estrangeira pelo STJ não é, por si só, óbice à propositura de ação de modificação de guarda em território nacional quando aqui estabelecidos os menores cujo interesse se discute em juízo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/12591/a-homologacao-de-sentenca-estrangeira-pelo-stj-nao-e-por-si-so-obice-a-propositura-de-acao-de-modificacao-de-guarda-em-territorio-nacional-quando-aqui-estabelecidos-os-menores-cujo-interesse-se-discute-em-juizo. Acesso em: 20/10/2025 – 22:36
  • Superior Tribunal de Justiça (STJ).
    • SEC 8.285/EX, Rel. Min. Sidnei Beneti, 18/12/2013.
    • SEC 6.485/EX, Rel. Min. Gilson Dipp, 03/09/2014 (Informativo 548).
    • SEC 14.812-EX, Rel. Min. Nancy Andrighi, 16/05/2018 (Informativo 626).
    • AgInt na HDE 2.565/EX, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 19/05/2021.
    • Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Raul Araújo, 05/03/2024 (Informativo 805).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Aguilar, Juan Carlos. Homologação de Sentença Estrangeira, Jurisdição Brasileira e o Melhor Interesse da Criança: Limites Materiais à Execução Transnacional de Decisões de Guarda. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17487428, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 30/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/homologacao-de-sentenca-estrangeira-jurisdicao-brasileira-e-o-melhor-interesse-da-crianca-limites-materiais-a-execucao-transnacional-de-decisoes-de-guarda/. Acesso em: 13/12/2025.