Dogmática Penal Tributária: Uma Interpretação Garantista dos Crimes Fiscais
Autores
Resumo
O presente ensaio persegue a análise da Lei nº. 8.137/90, sob a ótica da Teoria do Garantismo Penal, delineada por Luigi Ferrajoli. Com a apresentação de breves apontes acerca da evolução histórico-legislativa dos crimes fiscais no Brasil, é perceptível a rigidez com a qual a lei passou a regular a matéria, cominando penas, extremamente, mais severas do que as anteriormente previstas, diante da progressiva e popular prática de sonegação fiscal. Destacar-se-á o teor da Súmula Vinculante nº 24, do Supremo Tribunal Federal, a demonstrar que, não obstante sejam independentes os ramos jurídicos, no que concerne, especialmente, ao Direito Penal e ao Direito Tributário, qualquer indivíduo só poderá ser responsabilizado criminalmente após o definitivo lançamento do crédito tributário. Portanto, o artigo buscará propor um novo paradigma de interpretação aos crimes fiscais, após o estudo sistemático dos seus tipos penais incriminadores, com arrimo na Teoria Garantista, do que resulta a possibilidade de interpretar, multidisciplinarmente, o Direito. A metodologia utilizada para alcançar os objetivos pretendidos será a exploratória, de cunho qualitativo e método dedutivo. É inconcebível o desrespeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, que ocorre quando o Estado extrapola as balizas do seu "jus puniendi", poder-dever de punir quem, dolosamente, infringe a norma penal tributária, e pune sem a devida valoração dos ditames razoáveis e proporcionais, descumprindo o regramento constitucional, e deixando de aplicar a lei na medida da culpabilidade do agente.
Palavras-ChaveCrimes tributários. Jus puniendi. Garantismo Penal.
Abstract
This essay analyzes Law No. 8,137/90 from the perspective of Luigi Ferrajoli's Theory of Criminal Guarantees. Briefly addressing the historical and legislative evolution of tax crimes in Brazil, the law's rigidity in regulating the matter becomes apparent, imposing significantly harsher penalties than previously established, given the growing and widespread practice of tax evasion. The text of Binding Precedent No. 24 of the Federal Supreme Court will be highlighted, demonstrating that, despite the independence of the legal branches, especially with regard to Criminal Law and Tax Law, any individual may only be held criminally liable after the final assessment of the tax credit. Therefore, this article will seek to propose a new paradigm for interpreting tax crimes, following a systematic study of their criminal types, supported by the Tax Guarantee Theory, which allows for a multidisciplinary interpretation of the law. The methodology used to achieve the intended objectives will be exploratory, qualitative, and deductive. The disregard for the fundamental rights and guarantees of citizens is inconceivable when the State exceeds the limits of its jus puniendi (the power and duty to punish those who intentionally violate criminal tax laws), and punishes without due consideration of reasonable and proportional provisions, violating constitutional rules and failing to apply the law to the extent of the perpetrator's culpability.
KeywordsTax crimes. Jus puniendi. Criminal Guarantees.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem a finalidade de aventar um novo paradigma de interpretação aos Crimes contra a Ordem Tributária, tipificados na Lei nº. 8.137/90, com supedâneo na incidência da teoria jusfilosófica do Garantismo Penal, de autoria do eminente jurista italiano Luigi Ferrajoli. Tal teoria norteia a interpretação e aplicação das leis penais e processuais.
Uma vez que o Estado deve assegurar o resguardo dos direitos fundamentais do cidadão, encartados na Constituição Federal – não obstante venha o indivíduo a infringir normas cujo bem jurídico se refira, especificamente, ao poder-dever estatal de cobrar tributos (desde que o faça legalmente), e de arrecadá-los em sua plenitude – é fundamental que a aplicação da lei penal, no que se refere aos crimes fiscais, ocorra segundo os ditames da individualização da pena e da adequação social, em observância ao axioma já prenunciado no art. 11, da aludida Lei: o agente delitivo deverá responder criminalmente, “[…] na medida de sua culpabilidade”.
Via de consequência, neste artigo, tratar-se-á de analisar os tipos penais insculpidos na referida Lei nº. 8.137/90 – Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária, destacando-se a ausência de previsão legal acerca de modalidade culposa em qualquer desses delitos, importando, outrossim, acentuar a espécie dolosa que permeia cada um dos ilícitos penais em apreciação, e ressaltando, ainda, o contexto histórico da legislação atinente.
A par disso, o advento da inversão do onus probandi é ainda mais trivial do que o exercício imaginativo pode ousar ter vislumbre, porquanto, na casuística, comumente, se encontra desassociado de uma lógica, eminentemente, jurídica, como deveria ser.
Assim, o presente trabalho, a fim de que venha a atingir seus escopos principiológicos, deverá consignar os elementos subjetivos e as eventuais finalidades específicas dos tipos penais incriminadores da lei, bem como os seus elementos objetivos, vislumbrando-se, pois, hiatos que podem tornar propensa a falta de comprovação efetiva da culpabilidade dos acusados, ante a nefasta e, lamentavelmente, vulgar banalização da persecução penal punitivista, acarretando, invariavelmente, a flexibilização, ou concreta afronta, ao nexo causal.
Para a elaboração deste trabalho, utilizou-se o método dedutivo, de cunho qualitativo e exploratório, tendo, como técnicas de coleta, a documentação indireta, consubstanciada em vasta pesquisa documental (legislativa) e bibliográfica (livros e artigos jurídico-científicos).
No mais, especificamente em termos de interpretação dos Crimes contra a Ordem Tributária, ao proceder-se a revisão de literatura para a elaboração do presente artigo, restou verificada a existência de escassos trabalhos pautados no viés garantista.
Logo, mostra-se promissora e essencial, não apenas para o mundo acadêmico, mas também para a própria práxis jurídica, a discussão de tal temática, a qual tenciona, ainda que singelamente, contribuir para uma efetiva aplicação, mais coerente e humanitária, da lei, em contraposição ao cruel, e, muitas vezes, desumano e desproporcional, ius puniendi (direito/poder de punir) do Estado Fiscal.
2 CONTORNOS DOGMÁTICOS DA SONEGAÇÃO FISCAL
2.1 BREVE PANORAMA HISTÓRICO-LEGISLATIVO
Não se discute que a efetivação da cobrança tributária advém de tempos imemoriáveis, bem como a acirrada objeção popular à desproporcional e desarrazoada cobrança tributária.
Inegavelmente, o tributo se mostra instrumento típico de exercício do poder soberano estatal, objetivando, ao menos em tese, satisfazer às necessidades públicas, de modo a – também hipoteticamente – custear a totalidade das despesas coletivas, a fim de garantir a manutenção da ordem pública e harmonia social. É válida e compreensível, portanto, a cobrança tributária.
Todavia, ante os notórios desmandos arrecadatórios do Estado, a História registra a ocorrência de sortidas revoltas e rebeliões populares – como a propalada “derrama”, cobrança de impostos atrasados, da Conjuração Mineira –, em que o povo reivindicava o direito de ter atendidas as suas necessidades mínimas, insurgindo-se contra os déspotas governantes, ao passo que estes intensificavam a exigência tributária e, por conseguinte, os impiedosos confiscos.
Diante desse panorama histórico de penosa cobrança, a gerar desigualdades, miséria, privilégios desmedidos e injustiça, advieram leis cuja característica intrínseca, conforme reflexiona ANDRADE FILHO (2009, p. 17), é o fato de serem, em razão de seu excessivo rigor, “normas de rejeição social, cujo cumprimento só é logrado em decorrência da previsibilidade da imposição de sanções”. Nada mais preciso.
2.1.1 Da ausência de previsibilidade do instituto de sonegação fiscal, no Código Penal Brasileiro, e o crime de descaminho
O vigente Decreto Lei nº. 2.848 – Código Penal, que, entretanto, teve seu albor em 1940, não previu, especificamente, em Capítulo próprio, o cometimento sonegador de tributos. No entanto, tipificou o crime de contrabando e descaminho, práticas que, em que pese sejam, em essência, díspares, foram reputadas congêneres, no texto original legislativo.
A esse respeito, foram empreendidas acirradas críticas doutrinárias acerca da previsibilidade conjunta das práticas de contrabando e descaminho. Apenas em 26 de junho de 2014, com o advento da Lei nº. 13.008/14, cumpriu-se a necessária cisão no dispositivo legal, culminando na tipificação autônoma dos crimes dos arts. 334 (descaminho) e 334-A (contrabando), ambos do Codex Penal.
Importa vislumbrar que o bem jurídico tutelado pelos referidos delitos é, em linhas gerais, a própria Administração Pública, a figurativa ofendida em todos os crimes que, como estes, se encontram tipificados no Título XI, do pátrio Estatuto Repressor.
Contudo, o descaminho é um ilícito penal que afeta o adequado recolhimento tributário, pelo Fisco, porquanto a conduta delitiva consiste no ato fraudulento de omitir, evitar ou burlar, ainda que parcialmente, o ingresso, a saída ou o consumo de mercadorias permitidas, em terra brasilis, não concretizando o efetivo pagamento do direito ou imposto devido.
A seu turno, o delito de contrabando consiste na importação ou exportação de mercadoria proibida, total ou parcialmente, e culmina por violar, além do bem jurídico Administração Pública, a moralidade e a saúde coletivas. Não é, pois, crime de natureza fiscal.
Mais ainda, no que concerne ao descaminho, reflexamente, são atingidos bens jurídicos relativos ao erário público e, por que não dizer, à própria soberania nacional, não se atendendo, adequadamente, às exigências tributárias, relevantes à satisfação das necessidades coletivas. Em síntese, o descaminho atinge as obrigações aduaneiras e tem natureza tributária.
O crime de descaminho, por não vir previsto na Lei nº. 8.137/90, não constitui um dos objetos de análise primordiais deste trabalho. Porém, não se poderia negligenciá-lo, razão pela qual foi conceituado e abordado, ainda que sucintamente, no escorço histórico dos delitos.
2.1.2 Crimes de sonegação fiscal ou contra a ordem tributária: Leis nº. 4.729/65 e nº. 8.137/90
Antes do nascedouro da legislação atinente aos Crimes contra a Ordem Tributária, exsurgiu a Lei nº. 4.502/64,[1] que, em seu art. 68, § 2º, previu a fixação da pena de multa, partindo da pena-base, considerando, como circunstâncias qualificadoras, a sonegação, a fraude e o conluio, para efeitos de graduação do prejuízo acarretado pelo descumprimento do Imposto de Consumo, regulado pela aludida Lei, o qual, saliente-se, foi transformado, a posteriori, no que, hodiernamente, intitula-se Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI.
Nesse ínterim, resta perceptível que a sonegação fiscal, até então, não era tratada como crime autônomo, merecedor de classificação delitiva e, portanto, de concreta repreensão penal.
Tal status só adveio no ano seguinte, em 14 de julho de 1965, com a Lei nº. 4.729, intitulada “Lei da Sonegação Fiscal”,[2] a qual se distinguiu dos demais crimes insculpidos no Código Penal, vez que os delitos da lei extravagante previam um elemento subjetivo do injusto, com a efetiva livre intenção, e vontade consciente, de ocasionar dano à Fazenda Pública.
Sem embargo, a referida Lei estipulava, tão-só, a pena de detenção, no intento de coibir o fraudulento descumprimento tributário, de modo que, cominando penas mais brandas, não se prestou à tarefa, almejada pela doutrina jurídica do século anterior, de regular, duramente, o progressivo cometimento delituoso. Tal previsão foi alvo de severas dissensões, entre juristas e demais estudiosos do painel econômico-social da época, que se debatiam acerca da aplicabilidade prática da norma penal incriminadora.
Assim, ao passo que o Estado cobrava elevadíssimos tributos, em plena Ditadura Militar, devido à pretensa obstinação do Governo em construir o “Brasil Grande”, fulgurosa se mostrava a reação popular, com a perpetuação das práticas de sonegação fiscal.
Porém, foi apenas em 1990 que o legislador pátrio optou, uma vez mais, por editar novo diploma legal a regular a matéria, e eis que exsurgiu a Lei nº. 8.137/90, tratando dos – desde então – intitulados “Crimes contra a Ordem Tributária”.
Para tanto, a graduação penal e o tempo de cumprimento de pena mostraram-se mais impetuosos, passando, pois, a novel lei exigir uma análise mais acurada da dimensão efetiva de culpabilidade, atribuída aos réus que estejam sendo processados por esse ilícito, o que deveria ser melhor aplicado na prática; entretanto, hodiernamente, costuma ser negligenciado pelos operadores do Direito, conforme se exporá em momento ulterior.
É patente, assim, que o conteúdo da Lei nº. 8.147/90 é o mesmo regulado pela antiga Lei nº. 4.729/65, supramencionada. Entrementes, houve variação, a título de exemplo, no que concerne ao nomen iuris adotado, porquanto ao passo que a recente legislação cognomina os delitos em análise de “crimes contra a ordem tributária” – nomenclatura, decerto, mais abrangente –, a Lei anterior os alcunhava “delitos de sonegação fiscal”.
Merece destaque que a vigente Lei optou, preferencialmente, por definir crimes materiais, isto é, que exijam, para a sua adequada consubstanciação, a ocorrência de resultado naturalístico e a existência de nexo causal, o qual corresponde ao liame entre a conduta praticada e o resultado advindo, a partir desta.
É viável, portanto, asseverar que a Lei hodierna tutelou o direito do Estado de instituir impostos e contribuições e, via de consequência, de cobrá-los em sua plenitude, visando combater o desfalque no cumprimento das obrigações tributárias, por parte dos contribuintes e demais responsáveis pelo regular adimplemento. Ainda, a Lei de 1990 afastou a sua antecessora, ocasionando revogação tácita, pois regulou toda a matéria de incidência da norma.
Tal é, pois, ainda que, singelamente, delineada, a importância da aludida norma para o ordenamento jurídico e, especificamente, para a seara tributária-penal, tratando de ordenar as condutas reputadas ilícitas, bem como seus indeléveis elementos, objetivos e subjetivos.
3 ELEMENTOS DELITIVOS APLICÁVEIS DOS CRIMES TRIBUTÁRIOS EM ESPÉCIE
3.1 BREVES APONTES ACERCA DA TEORIA GERAL DO CRIME
O conceito legal de crime está previsto no Decreto-Lei nº. 3.914/41 – a Lei de Introdução ao Código Penal, segundo a qual: “considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa […]”.
No entanto, é pacífico na doutrina que tal definição não se mostra satisfatória, em razão, precipuamente, de haver negligenciado a estipulação dos caracteres básicos para conceituar o crime, sem apresentar, conforme elucida Bitencourt, qualquer preocupação doutrinária, limitando-se a diferenciar o delito da contravenção penal, em observância à pena cominada.
Destaque-se, outrossim, que o Código Penal tampouco trouxe à baila o conceito de crime, de modo que coube à doutrina pátria se encarregar desse relevante papel; portanto, como, majoritariamente, pontuado, três são os elementos integrantes do conceito analítico de delito: a tipicidade, a antijuridicidade (ou ilicitude) e a culpabilidade.
Decerto, a cisão entre os elementos do crime atende, sobretudo, a fins didáticos e práticos, haja vista que permite a correta avaliação da existência dos três elementos, presentes quando da racionalização de determinada situação específica e, nas precisas lições de Bitencourt (2014, p. 388): garante “[…] a segurança contra as arbitrariedades e as contradições que, frequentemente, poderiam ocorrer”.
Saliente-se que o primeiro elemento integrante do conceito delitivo, a tipicidade, corresponde à necessária subsunção do fato à norma jurídico-penal, de sorte que um indivíduo somente poderá ser processado e, eventualmente, responsabilizado na seara criminal, desde que sua conduta se enquadre na descrição típica, a moldura prevista, na lei incriminadora (tipicidade formal), e lesione, ou ameace gravemente, o bem jurídico tutelado (tipicidade material). É, pois, compreensível que tal elemento conste em um corolário, decorrência lógica do Princípio da Reserva Legal, cláusula pétrea do art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal.
E mais: a despeito de constantes divergências doutrinárias, no século passado, acerca da mais adequada definição de dolo, prevaleceu a Teoria Finalista da Ação, desenvolvida por Hans Welzel, e adotada, hodiernamente, pelo Brasil, na qual foi extirpada, definitivamente, a consciência da ilicitude, exprimida pelo elemento normativo, de modo que o dolo passou a ser integrado, tão somente, por dois elementos: o cognitivo (ou intelectual) e o volitivo (vontade), sendo deslocado para a análise da conduta típica.
Exsurgiu, assim, o dolo natural, resultado da comunhão entre tais elementos. Noutros termos, o dolo é a essência de todo e qualquer crime. Há muito, já aclaravam Hungria e Fragoso (1978 apud Ferreira da Costa, 2012, p. 397): “o dolo é a mais grave forma de culpabilidade”.
Noutro pórtico, no tocante à antijuridicidade, ou ilicitude, o segundo elemento do crime, é cediço que ela não constitui caractere exclusivo da seara penal. Aliás, conforme elucida Muñoz Conde (1998 apud Bitencourt, 2014, p. 49), “o Direito Penal não cria a antijuridicidade, senão seleciona, por meio da tipicidade, uma parte dos comportamentos antijurídicos, geralmente os mais graves, cominando-os com uma pena”.
Por derradeiro, quanto à culpabilidade, infere-se, a partir das linhas mestras de Hugo de Brito Machado[3], que, para a correta existência de um crime, faz-se imperiosa a constatação de um vínculo psicológico entre a conduta do agente e a consequência exprimida. Somente assim ter-se-á um ato, efetivamente, culpável, isto é, passível de responsabilização criminal subjetiva.
A culpabilidade, tal como se entende, provém da evolução jurídica do conceito de crime, associada à Criminologia, ramo autônomo que estuda, especificamente, as motivações do delito, garantindo-se, assim, que o pretenso infrator da lei não seja responsabilizado segundo o temerário Direito Penal do Autor, vale dizer: pela sua suposta – e inconstitucional conjectura de – predisposição ao mal, e sim pela conduta que praticou e suas consequências.
Hodiernamente, prevalece, então, que a culpabilidade só poderá ser aferida a partir da análise da efetiva conduta do agente delitivo. Desde logo, o correto dimensionamento da culpabilidade é vital e irrenunciável, no âmbito de um legítimo Estado Democrático de Direitos.
Sintetiza, assim, com maestria, o jurista hispânico José Miguel Zugaldia Espinar (1993 apud Ferreira da Costa, 2012, p. 272):
O princípio da culpabilidade, no seu sentido clássico e tradicional (isto é, a ideia de que o homem goza de uma capacidade livre, de autodeterminação, razão pela qual, ao fazer mal-uso da sua liberdade, se torna credor, na Justiça, de um mal retributivo da pena). A concepção moderna da culpabilidade a vincula, como já se pode constatar, à utilidade de determinar se pode ser atribuída (imputar subjetivamente), e em que medida, o fato ao seu autor (tradução da autora. Os grifos não constam no original).
Infere-se, então, que a culpabilidade é condição para a correta imposição da pena, o que é reconhecido, inclusive, na Lei nº. 8.137/90, a qual preconiza, em seu art. 11, que o agente delitivo haverá de responder, conforme já ratificado, “[…] na medida de sua culpabilidade”.
Ainda, em breves apontes acerca do dolo, importa rememorar que o art. 18, I, do Código Penal, traz em seu bojo, ainda que não expressamente, as duas modalidades de dolo mais emblemáticas do Direito Penal: o dolo direto (aquele em que o agente, decerto, deseja a ocorrência do resultado, e se manifesta em vistas a concretizar a sua intenção), e o dolo eventual (quando, embora não o deseje efetivamente, assume o risco de que ele venha a se produzir).
Vislumbra-se, assim, que o Código Penal adotou, quanto ao dolo, as teorias da vontade (dolo direto) e, subsidiariamente, do assentamento (dolo eventual). Não se configurando uma, necessariamente deverá se produzir a outra, sob pena de o crime não poder ser designado doloso, haja vista que, nos Crimes contra a Ordem Tributária, a regra é una: todos os tipos penais são dolosos, não se admitindo, para a sua concretização, a ocorrência de culpa, porquanto não prevista em Lei, nos termos do art. 18, parágrafo único, do Código Penal.
3.2 A INTERSECÇÃO ENTRE OS DIREITOS E A APLICAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº. 24 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Há muito, comenta-se acerca da multidisciplinariedade entre os ramos jurídicos, a fim de impulsionar a correta interpretação e aplicação das normas positivadas do Direito.
Mais ainda, no tocante aos delitos fiscais, a intersecção entre o Direito Penal e o Direito Tributário ganha relevância extrema, na medida em que, como demonstra a Súmula Vinculante nº. 24, do Supremo Tribunal Federal, não será possível a tipificação de crime contra a ordem tributária – em especial, quanto aos delitos classificados como materiais – sem o competente lançamento definitivo do tributo, em virtude de que a ocorrência da sonegação fiscal somente poderá restar configurada quando, efetivamente, devido e exigível o recolhimento tributário.
Do contrário, poder-se-ia chegar à ilógica conclusão de que o pretenso sonegador seria condenado na seara criminal, mas a cominação de prestação pecuniária não surtiria efeitos em âmbito fiscal, uma vez que o contribuinte não fora, em via administrativa, considerado devedor.
Ratifica-se, assim, o que já resta pacificado pela doutrina e jurisprudência proeminentes: antes do esgotamento da seara administrativa, com o trânsito em julgado das decisões ali expedidas, a denotar a transgressão do dever tributário, não há que se falar em possibilidade de condenação criminal por sonegação de tributos.
Via de consequência, impensável mensurar que o inadimplemento de uma obrigação extrapenal ensejaria, necessariamente, a responsabilização criminal, com a cominação de rigorosas penas privativas de liberdade ou, ainda, de exacerbadas penas de multa.
Tratando-se, pois, de crimes que violam a ordem tributária, atingindo o Fisco e, portanto, toda a coletividade, visto que, em tese, os tributos deveriam ser reempregados sob a forma de medidas em benefício do conjunto social, forçoso reconhecer que a prévia existência de consubstanciada dívida tributária (ilícito fiscal) é – quanto, especificamente, aos crimes fiscais – pressuposto para a formação do ilícito penal, depreendendo-se, então, o liame entre os ramos jurídicos em destaque. Afinal, o Direito é uníssono.
4 DA COMPLEIÇÃO GARANTISTA
Historicamente, o encadeamento de vanguardistas ideias impulsiona o resplandecer de novos e primorosos rumos para a Humanidade.
No campo, especificamente, do Direito, tal assertiva não poderia ser distinta, de modo que o jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, com a publicação de sua transcendental obra, Direito e Razão, desenvolveu a Teoria do Garantismo Penal, tratando de desvelar as arbitrariedades e descasos do Estado, frente às garantias dos cidadãos que, quando da elaboração do “contrato social”, se comprometeu a tutelar.
Note-se que o nobre jurista, já de início, reconheceu, em sua obra, que a finalidade do Direito Penal não se aloja apenas na seara retributiva (motivada pelas ameaças sociais, representadas pelos crimes), mas também, e precipuamente, versa acerca daquilo que intitulou “proteção do mais fraco contra o mais forte”. Assim, trouxe a lume que a parte mais vigorosa da relação jurídica pode ora figurar como delinquente, ora como a própria vítima, atuando em um expoente máximo de vingança, em concurso com a ferocidade punitivista do Poder Público.
Nesse diapasão, a ideia do Garantismo Penal exsurge como antídoto a prevenir e remediar as arbitrariedades do Estado, que, no exercício de seu jus puniendi, tende a ser demasiadamente agressivo e cruel, sem valorar, adequadamente, princípios constitucionais básicos, como o da presunção de inocência, individualização e humanização das penas.
Portanto, Ferrajoli dedicou-se a rememorar o compromisso do Estado em tutelar os direitos fundamentais, definindo os limites de incidência do Direito Penal – a ultima ratio, isto é, o último ramo jurídico a ser invocado, em caso de violação do ordenamento, regulando, pois, tão somente, os bens jurídicos mais relevantes para o ser humano e a coletividade. Tratou, ainda, da necessidade político-repressora como característica da esfera criminal, a qual, se adequadamente aplicada, propicia que a pena seja valorada da forma mais razoável e proporcional possível, em consonância com os ditames da legalidade e constitucionalidade.
Resgatando as lições de Aristóteles, no Livro II de sua Ética a Nicômaco (1991, p. 38), sendo “a virtude uma espécie de mediania, já que, como vimos, ela põe a sua mira no meio-termo”, o modelo garantista, conclamado por Ferrajoli, para que possa vir a atingir as suas mais primorosas finalidades, há de encontrar-se inserto, precisamente, no intervalo entre duas forças antagônicas: a função punitiva do Estado, traçada pela lei, e a tutela dos direitos e garantias fundamentais dos seres humanos, endossada pela Constituição Federal. Decerto, somente assim poder-se-á ventilar a legítima garantia do equilíbrio, na balança da Justiça.
Conceitua, então, o Mestre Ferrajoli (1995, pp. 335-336):
Garantismo, com efeito, significa, precisamente, a tutela daqueles valores, ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo que vá de encontro aos interesses da maioria, é o fim justificador do Direito Penal: a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e dos castigos, a defesa dos fracos por meio de regras iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, por conseguinte, a garantia de sua liberdade mediante o respeito, também, da sua verdade. É, precisamente, a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável a todos, inclusive à minoria dos réus e imputados, o Direito Penal (tradução da autora).
De tal modo, a proposta de Ferrajoli consiste, exatamente, em interpretar todo o ordenamento jurídico sob a ótica do Garantismo, a fim de que o Estado, mesmo diante da violação, ou ameaça grave, ao erário público e, por conseguinte, aos seus próprios interesses em recolher, plenamente, os tributos, assegure o resguardo dos direitos fundamentais.
Portanto, com mais razão ainda, a aclamação da Teoria Garantista há de entrever-se, de modo a interpretar, acertada e equanimemente, os crimes fiscais, aplicando-se, de forma individual e humanitária, a pena, uma vez que é de puro interesse do Estado punir o infrator da norma fiscal, que, em tese, descumpriu com suas obrigações tributárias e fraudou o erário público, mas, ainda assim, merece e faz jus à tutela estatal de suas garantias constitucionais.
5 CONTORNOS DOGMÁTICOS E GARANTISTAS DA SONEGAÇÃO: CRIMES TRIBUTÁRIOS EM ESPÉCIE
Esgotadas as considerações preliminares, o conceito de “sonegar” advém da ocultação acerca da existência, ou mesmo dimensão, do fato gerador de determinada obrigação tributária.
Afigura-se, então, que, diversamente do que se tencionaria vislumbrar, em dedução leviana, o sujeito ativo do crime fiscal não é mero inadimplente, que não cumpre, de modo satisfatório, com a prestação devida ao Fisco. O sujeito ativo é, via de regra, o contribuinte ou, ainda, o responsável pelo cumprimento da obrigação, ao passo que o sujeito passivo é a pessoa jurídica de Direito Público, envolvida e afetada pela prática criminógena, nos moldes dos arts. 145 a 156, da Constituição Federal.
Noutro bordo, a ideia de sonegação está, intrinsecamente, relacionada, como adverte parte da doutrina, à realização de manobra engenhosa, apta a ludibriar.
Não por acaso, aliás, comumente, os crimes fiscais se encontram relacionados a uma contrafação (crimes de falso), a despeito de que a melhor jurisprudência reconhece, em tais hipóteses, ser devida a aplicação do princípio da consunção, absorvendo-se o delito-meio (falsificação) pelo delito-fim (sonegação ou supressão de tributos), vez que ambos foram, decerto, realizados no mesmo contexto fático, tratando-se, pois, de um crime único.
Antes de adentrar no mérito da tipologia penal tributária em espécie, impende trazer a lume o cotejo doutrinário do direito comparado sobre a natureza dos crimes em tela.
De um lado, a doutrina, majoritariamente, alemã sustenta que o delito fiscal se forma a partir da violação a uma “infração de dever”, conforme o jurista Joaquín Cuello Contreras, ao citar Claus Roxin, exigindo-se a ocorrência de prejuízo patrimonial, face à prática da sonegação.
Noutro sentido, a doutrina hispânica se consubstancia na exigibilidade de afiguração do engano, sendo forçoso o emprego de fraude para que ocorra a tipificação do crime tributário.
O ordenamento jurídico brasileiro adotou, em regra, ainda que não expressamente, a ideia de engodo, de sorte que o Direito Penal há de perseguir e punir, unicamente, condutas fraudulentas, cuja intrínseca orientação se firme no sentido de ludibriar a Receita Pública, omitindo, reduzindo ou suprimindo tributos, pois, do contrário, correr-se-ia o risco de punir aquele que, apenas, foi inadimplente, cuja conduta não atentou, concretamente, em desfavor do bem jurídico tutelado pela norma: o erário público.
Assim, é exigível a prévia comprovação da existência da dívida tributária, sendo constitui condição de procedibilidade para a ação penal pública incondicionada.
5.1 DA SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTO, CONTRIBUIÇÃO SOCIAL OU QUALQUER ACESSÓRIO: ARTIGO PRIMEIRO
Nos termos do art. 1º, da Lei nº. 8.137/90, resta criminalizada a conduta daquele agente que sonega ou reduz tributo, em sentido lato, ou uma obrigação acessória qualquer.
A ação criminógena, regulada nesse dispositivo legal, é classificada como crime material, isto é, que exige, para a sua adequada configuração, a ocorrência de resultado naturalístico, que altere o mundo externo, o âmbito fático, devido à prática de conduta delituosa.
O crime do art. 1º, I, da Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária corresponde, também, a um delito próprio, haja vista que o possível agente criminógeno deve gozar de determinada qualidade ou condição pessoal para poder, enfim, ser considerado sujeito ativo do ilícito penal.
No mesmo rumo, seguem as valorosas lições de Bitencourt (2014, p. 116):
Como consequência do princípio de culpabilidade, não é possível atribuir responsabilidade penal sem dolo ou culpa, e, especificamente, no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, somente há crime se o agente agir dolosamente […] A mera identificação formal do sujeito passivo da obrigação tributária não é suficiente para formar um juízo de adequação típica na seara penal. Muitas vezes, o sujeito formalmente obrigado perante o fisco (seja ele contribuinte ou responsável, nos termos da lei) delega, por meio de acordo ou convenção particular, a terceira pessoa, a responsabilidade de fato pelo recolhimento e/ou pagamento de tributos. Se esse terceiro é quem realiza, por sua própria conta e risco, a conduta fraudulenta, ultrapassando os limites de suas atribuições, ele será o autor do crime (o original não contém grifos).
Nesse pórtico, ainda, mister ressaltar que o contribuinte pode corresponder a uma pessoa jurídica e, regulando a temática, o art. 11, da Lei nº. 8.137/90, preconiza que responderá, na medida de sua culpabilidade, pela prática dos crimes tributários, todo aquele que concorrer para a sua realização, inclusive a pessoa natural que agir por meio da pessoa jurídica que representa.
A seu turno, o objeto material do crime do art. 1º, da Lei nº. 8.137/90, pode ser o tributo, a contribuição social e/ou quaisquer outros acessórios que estejam aptos a serem suprimidos ou reduzidos, com o intuito delitivo.
Destarte, o objeto da supressão ou redução há de consistir em um componente de natureza pecuniária. Aliás, axiomático que, propositadamente, na pluma magistral de Bitencourt (2014, p. 108), a representar, no momento, a melhor doutrina, segue-se tal linha de posicionamento: “é possível deduzir que os questionamentos que versem sobre a existência da relação jurídico-tributária, e a consequente existência de dívida, condicionam a tipicidade do comportamento da seara penal” (grifos do original).
Note-se que o legislador pátrio, ao utilizar o verbo “suprimir”, quis se referir à extinção do tributo ou obrigação acessória, a fim de que não surtissem efeitos. No que tange ao termo “reduzir”, inobstante o autor da conduta reconheça o tributo, contribuição social ou, ainda, a existência do acessório, restringe ou abate a sua incidência, não o admitindo integralmente e, assim, pratica a sonegação ao erário público.
Impende, no mais, consignar que o art. 5º, do Código Tributário Nacional, conceituou o gênero tributo como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei […]”.
A doutrina já pacificou que a contribuição social é espécie tributária, razão pela qual, ainda que não fosse mencionada no tipo penal, já estaria abarcada pelo gênero “tributo”.
Juridicamente, é considerado “acessório” o elemento que acompanha o tributo principal, sem, por óbvio, efetivamente, integrá-lo. Conforme advogam Luís Regis Prado e Bitencourt, o inadimplemento da obrigação tributária acessória se refere ao objeto da redução ou supressão, de sorte que o não cumprimento da penalidade pecuniária imposta, somada à ocorrência de fraude, são elementos que constituem o tipo penal em comento, porquanto a utilização de manobras engenhosas para induzir as autoridades fazendárias em erro implica condição sine qua non para a caracterização de tal delito material contra a ordem tributária.
Nesse ínterim, o inciso I do artigo em análise traz os seguintes núcleos do tipo: “omitir informação, ou prestar declaração falsa, às autoridades fazendárias”.
O primeiro verbo do tipo incriminador, “omitir”, remonta a um delito classificado como comissivo por omissão (ou omissivo impróprio), haja vista que se refere a um crime de resultado: o sujeito, para incorrer nessa modalidade, deverá abster-se de prestar informação verdadeira acerca da existência de tributo, contribuição social ou outro acessório, ao Fisco.
Assim agindo, deixará de cumprir aquilo que pode e deve fazer, porquanto os deveres, para com o Estado Fiscal, decorrem de lei.
De outra sorte, na segunda parte do inciso I, resta tipificada a conduta de prestar declaração falsa à Fazenda Pública. Consiste, pois, em mais uma previsão legal de um delito de falso, ante a assertiva inverídica acerca da existência, ou suposta redução, de tributo devido (em sentido lato), principal ou acessório.
A informação falsa se referirá, tão-só, a um fato, juridicamente, relevante, costumeiramente relativo à própria obrigação tributária, de modo a ensejar, ou ameaçar, gravemente, a ocorrência de lesão ao erário público.
Esclarece a doutrina criminal-tributarista que, para a consubstanciação do ilícito penal, é imperioso que a falsificação detenha suficiente potencialidade lesiva, apta, evidentemente, a gerar ou conduzir à supressão, ou redução, tributária, bem como faz-se imprescindível que a contrafação se denote capaz de ludibriar, ou reduzir a erro, o Fisco.
Do contrário, patentemente, não haverá crime, porquanto impossível a sua consubstanciação, nos termos do art. 17, do Código Penal, haja vista serem, absolutamente, inidôneos os meios, em tese, empregados para a prática ilícita, o que atende, pois, perfeitamente, ao viés garantista, de interpretação dos crimes fiscais, ora proposto.
Demais disso, haverá um fato impunível caso a falsidade, no caso, seja grosseira, inidônea, incapaz de ludibriar o “homem médio”, quanto à imitatio veri (imitação da verdade).
No que concerne ao inciso II, o engodo (fraude) referido nesse dispositivo pode ser praticado de forma comissiva (ação) ou omissiva (omissão), inserindo, ou omitindo, dados falsos e relevantes, em vistas a ludibriar a fiscalização tributária, o que pode ser feito em documento ou livro exigido pela lei fiscal, relativo a operação de qualquer natureza.
Assim, quanto à hipótese incriminadora do art. 1º, II, não apenas poderão ser responsabilizadas as falsificações praticadas, em detrimento das autoridades fazendárias, quando da ocorrência do lançamento, como também as que forem cometidas (ou, simplesmente, descobertas) durante o período da fiscalização, de modo a evitar que a Fazenda Pública realize o lançamento devido ou, ainda, aplique a necessária sanção.
Em consonância com o que ratifica Edmar Oliveira Andrade Filho (2009, p. 132), apenas quando o agente, de fato, concorrer para a inexatidão dos elementos a ensejar a supressão ou redução do tributo, contribuição social ou qualquer outro acessório, poderá ser responsabilizado criminalmente, bem como quando omitir a operação, de qualquer natureza, em livro fiscal (elemento essencial da obrigação tributária). Ademais, poderá responder quando a inexatidão houver sido produzida por terceiros, servindo, porém, para benefício do agente ou de pessoa jurídica controlada por este, quando ela for, no âmbito de uma relação concreta, sujeito passivo da obrigação tributária.
No tocante ao inciso II, deve restar demonstrado que a fraude foi realizada com o escopo de alcançar o resultado pretendido, e exigido pelo tipo, qual seja: a supressão ou redução de tributo (ou acessório), vez que o elemento subjetivo comporta um dolo específico.
Referente ao inciso III, demonstra-se que ele faz menção à conduta de “falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento […]”. Trata-se, pois, de rol, meramente, exemplificativo, desde que o documento específico corresponda a informe identificador e essencial à operação tributável.
A alteração do documento implica a modificação indevida de seu conteúdo, transformando o seu estado de fato anterior (mediante fraude), desde que tal conduta seja relevante para a fiscalização tributária.
Nas linhas, ademais, de Juary C. Silva (1998 apud Bitencourt, 2014, p. 134), está sedimentado ser necessário que a falsificação “possa induzir em erro os servidores da área fazendária, a ponto de ensejar a meta visada pelo contribuinte, que é o não pagamento do tributo, ou o pagamento menor”.
Em relação ao inciso IV, a maior parte das condutas descritas nesse tipo já constam, expressamente, na redação dos demais incisos, e se referem tanto ao documento público, quanto ao particular, relacionado, por óbvio, à obrigação tributária. A conduta, ali prevista, de elaborar, fornecer ou emitir documento falso, ou inexato, denota ter o agente contribuído, de alguma forma, para o cometimento do delito, falsificando, assim, documento, a posteriori, utilizado para suprimir, ou reduzir, tributo ou contribuição social e obrigação acessória qualquer.
No tocante ao dolo, uma vez mais, o crime do inciso IV abrange tanto a modalidade dolosa direta (o agente sabia que o documento era falso), quanto o próprio dolo eventual (ele devia saber acerca da contrafação).
Entrementes, em vistas a uma interpretação garantista do referido dispositivo penal, é mister que tenha sido demonstrado , no caso, que o documento apreendido era contrafeito, diante das circunstâncias apuradas e das características intrínsecas do agente.
Se não demonstrado isso, a acusação e o próprio julgador, em atendimento aos princípios do Estado Democrático de Direitos, deverão se manifestar no sentido de dever ser o acusado absolvido, não se comprovando o dolo, direto ou eventual, e mostrando-se inadmissível, para a conformação dos crimes fiscais, a modalidade culposa.
Por fim, o último inciso, V, do art. 1º, quanto ao dolo, denota que a intenção do agente deverá ser dirigida ao conhecimento e vontade de deixar de fornecer a nota fiscal, ou, mesmo que venha a fornecê-la, haverá de ter conhecimento de que está agindo em desacordo com a lei, com o escopo de vir a atingir a supressão ou redução tributária ou, ainda, a obrigação acessória.
No âmbito do art. 1º, V, constata-se que a conduta criminógena poderá se perpetrar por comissão por omissão, quando o sujeito deixar de cumprir a obrigação, estatuída por lei, ocultando o fato gerador e a própria formatação do crédito tributário, ou, ainda, negando-se a fornecer os documentos necessários, relativos à venda de mercadoria ou prestação de serviço.
De igual modo, a conduta delituosa poderá ser comissiva, com a entrega de nota fiscal ou documento equivalente, mas em desacordo com a lei, e ocultando-se, ainda, o legítimo fato gerador e/ou a constituição do crédito tributário.
Em qualquer das hipóteses, é evidente, faz-se imperiosa a constatação do engodo, induzindo a Fazenda Pública em erro, acerca da obrigação fiscal. Ademais, seja como for, impende que se denote ter a prática delitiva contribuído para a supressão ou redução de tributo.
5.2 CRIMES EQUIPARADOS E DE MERA CONDUTA: ARTIGO SEGUNDO
Não obstante o preceito secundário de todos os delitos previstos no art. 2º seja idêntico (com a mesma cominação de pena), cada um dos preceitos primários, encontrados no dispositivo penal, é autônomo, com núcleos essenciais do tipo penal, absolutamente, distintos.
Cada delito insculpido no art. 2º é classificado, doutrinariamente, como crime de mera conduta, haja vista que, para a sua correta consumação, não se exige a produção de resultado material, ao contrário do ocorrido em relação às figuras típicas do art. 1º, da Lei nº. 8.137/90.
O primeiro inciso analisado corresponde à conduta de “fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
No que concerne à conduta típica de omitir informação devida, essa omissão deverá, conforme já sublinhado anteriormente, ser idônea a produzir efeito lesivo ao erário público, sob pena de ser considerada atípica. Isso porque, necessariamente, para a consubstanciação do tipo, haverá a ocultação intencional de fatos com relevância tributária, a respeito dos quais se baseie uma obrigação fiscal ou que influam sobre o quantum devido.
Para o tipo penal do inciso I, do art. 2º, válidas todas as ponderações realizadas acerca dos crimes do art. 1º, da Lei em apreço. Ademais, no tocante à última modalidade prevista no inciso I (“ou empregar outra fraude”), restam ampliadas as hipóteses admissíveis para enganar o Fisco, por meio de engodo, desde que este se mostre suficientemente apto a ludibriar.
Ora, é certo que a própria lei passou a admitir interpretação analógica quanto às hipóteses criminosas abarcadas pelo aludido inciso, pois, conforme sedimenta Jiménez de Asúa (1990 apud Bitencourt, 2014, p. 165), ela “[…] se vincula à própria vontade da lei”, não estando, porém, atrelada a nenhum objeto material específico.
Assim, no caso do inciso I, do art. 2º, não se admite, apenas, a fraude que objetive a supressão ou redução tributária, como formulado, taxativamente, pela redação do artigo 1º, podendo ser analógica tal interpretação. Absolutamente recomendável, porém, o emprego de cautela ao aplicar a hipótese normativa do inciso I, ao estender a incidência da locução “ou empregar [qualquer] outra fraude”.
Impende consignar, ainda, a existência de dolo específico, com a finalidade especial de “[…] eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributo”. Tal escopo, presente na conduta do réu, deverá ser, expressamente, corroborado, por meio de provas lícitas e legítimas, sendo, ainda, válida a ressalva do douto Cezar Roberto Bitencourt (2014, p. 170):
Nem mesmo a simples omissão do dever de prestar informações, quando desacompanhadas de comportamentos inequivocamente direcionados a enganar o Fisco, pode ser considerada típica, porque significaria admitir a aplicabilidade do princípio in dubio pro societate, inadmissível num Direito Penal mínimo e garantista (o original não contém grifos).
Demais disso, o delito encartado no inciso I se consuma com a mera realização de qualquer dos comportamentos incriminadores previstos. No âmbito, porém, do prazo para a prestação de informações devidas, o crime apenas se consumará findo o período admissível para que o agente cumpra as suas obrigações para com o Fisco.
Reconhece, outrossim, a doutrina ser, extremamente, difícil o fracionamento da conduta do agente, para admitir a possibilidade de ocorrência da tentativa, embora não vede, absolutamente, tal hipótese. Disso dependerá, portanto, a análise do caso concreto, em observância aos axiomas garantistas, a fim de que não seja cometida qualquer arbitrariedade, reputando-se consumado um crime que, em verdade, não o foi.
Demais disso, o inciso II afirma que constitui crime a conduta relativa a “deixar de recolher”, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, o que corresponde, pois, à omissão de um dever de providenciar o correto recolhimento do valor tributário retido ou, ainda, cobrado de terceiro, que, no entanto, deveria ser coligido aos cofres públicos.
Para a consubstanciação do tipo subjetivo, o dolo também deverá ser específico, isto é, voltado à finalidade de não recolher os valores retidos ou cobrados.
Ponto interessante é aquele concernente à incidência da causa supralegal relativa à inexigibilidade de conduta diversa. Embora a doutrina a entenda cabível, como hipótese de exclusão da culpabilidade, a sua incidência deverá se restringir, conforme já ratificado por Hugo de Brito Machado (2002 apud Bitencourt, 2014, p. 185) aos casos de “não recolhimento do tributo, […] pela decisão do contribuinte de utilizar os recursos financeiros para pagar empregados, fornecedores, com o fito de evitar o fechamento da empresa”.
Entrementes, a melhor doutrina já vem se posicionando no sentido de dever ser reputado, como fato atípico, o caso em que os valores a serem recolhidos referiam-se a mero registro formal na folha de pagamento da empresa, não estando, porém, em poder do empresário, de sorte que não se afiguraria possível que ele deixasse, de qualquer modo, de efetuar o recolhimento, quando deveria fazê-lo, dispersando-os, assim, dos cofres públicos.
Nessa hipótese, por óbvio, não haverá crime, visto ser impossível a sua consumação, ante a absoluta ineficácia do meio, em tese, empregado para o delito. No mesmo sentido, destaque-se que se posiciona Luiz Flávio Gomes (2014 apud Bitencourt, 2014, pp. 184-185), asseverando: “a real capacidade de agir, nos crimes omissivos, integra a própria essência da tipicidade. Na sua ausência, o fato é atípico […], dispensa-se a análise da culpabilidade”.
No mais, quanto ao delito tipificado no inciso III, cuja redação abarca a conduta de “exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal”, restam frustradas as finalidades do Estado, relativas à instituição e concessão de incentivos fiscais. Tem-se, portanto, uma conduta extorsiva, consistente em “crime comum”, que não exige condição especial a ser atingida pelo sujeito ativo.
A vantagem econômica, portanto, prejudica, in casu, a lisura e transparência do procedimento, as quais são pretendidas, inclusive, quando da fixação do bem jurídico, com o escopo de resguardar o patrimônio público e evitar que ocorra o desvio dos incentivos fiscais.
No inciso IV, é criminosa a conduta de “deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”. Incrimina-se, então, o intitulado desvio de finalidade, porquanto, intencionalmente, o beneficiário deixa de cumprir os compromissos assumidos, concernentes ao incentivo fiscal, ou, ainda que o faça, move-se em desacordo com o estatuído.
Portanto, conforme a classificação doutrinária, o crime do inciso IV é conhecido como delito especial ou próprio, a exigir condições especiais do agente.
De mais a mais, no âmbito do inciso V, “utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública”. Ante a incriminação dessa conduta, visa-se facilitar a informatização da arrecadação de tributos, garantindo, a esse processo, maior segurança, devendo a fraude, repise-se, ser capaz de ludibriar a Fazenda Pública, em homenagem ao princípio da ofensividade.
As condutas delitivas do art. 2º correspondem a crimes de competência do Juizado Especial Criminal, pois a pena máxima cominada não é superior a dois anos, nos moldes do art. 61, da Lei nº. 9.099/95. Além disso, importa frisar que é cabível, em tese, a suspensão condicional do processo, sendo a pena mínima estipulada não excedente a um ano, o que poderá ocorrer desde que atendidos os demais pressupostos do art. 89 da aludida lei.
5.3 CRIMES FUNCIONAIS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA: ARTIGO TERCEIRO
O último dispositivo, da Lei nº. 8.137/90, que tipifica delitos contra a ordem tributária corresponde ao seu art. 3º, atinente aos crimes funcionais.
A despeito de fazer menção, no caput desse artigo, aos demais ilícitos funcionais, previstos no Código Penal, deve-se pontuar que o aludido diploma legal, a eles, não se referiu, e tratou, tão somente, dos delitos praticados contra a Administração Pública e em Geral.
Por óbvio, os crimes funcionais devem, necessariamente, ter, como sujeito ativo, o funcionário público, assim entendido como aquele que tenha cargo, emprego ou função relativa à administração do Tesouro. Ademais, o contribuinte poderá, também, a depender do caso, ter agido em conluio com o funcionário público, ocasião em que responderá pelo mesmo delito que este (funcional), uma vez que tal condição constitui elementar do crime, passível de comunicação, nos moldes do art. 30, do Código Penal vigente.
De início, insculpido no inciso I, vem o tipo penal relativo ao ato de extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer outro documento, de que o funcionário tenha guarda, em razão de sua função (ratione officii), ou, ainda, inutilizá-lo, total ou parcialmente, o que enseja pagamento indevido, ou inexato, do tributo ou contribuição social.
A doutrina em geral, encabeçada por Nelson Hungria (1980 apud Bitencourt, 2014, p. 215), vem entendendo, há décadas, que o verbo-núcleo “extraviar” significa “desencaminhar, desviar do destino”, em que pese este remonte à compreensão de crime culposo, ante a prática de uma conduta negligente, que constitui uma das espécies de culpa.
Uma vez, porém, que não se admite tal modalidade nos delitos fiscais, juristas do quilate de Bitencourt optaram por trazer nova acepção ao termo “extraviar”, que, em seu entendimento, implica um crime omissivo, sendo responsabilidade do garantidor zelar pelo documento oficial de que tem guarda em razão da função, podendo e devendo, pois, agir para impedir o resultado, embora não o faça (art. 13, § 2º, do Código Penal).
Tal crime é classificado como doloso específico, porquanto o agente somente poderá reputar praticado o ilícito quando sua conduta for dirigida à finalidade de efetuar o pagamento tributário indevido ou inexato, admitindo-se, em tese, a tentativa.
Impende que se refira, também, à conduta típica do inciso II, do aludido artigo 3º.
Elucida Bitencourt que a ação delituosa do funcionário público que exige, solicita ou recebe vantagem indevida, para si ou para outrem, de forma direta ou indireta – ainda que fora da função, antes de iniciar o seu exercício, mas, sobretudo, em razão dela – constitui patente abuso de autoridade, pois implica o uso da mencionada função para coagir, solicitar ou receber a vantagem indevida, caracterizando-se, então, o crime.
E mais: se enquadra, igualmente, nesse delito, a conduta do funcionário público que aceita a promessa de recebimento da vantagem indevida, e, assim, lança ou cobra tributo, ou contribuição social, apenas parcialmente, podendo, ainda, assumir o compromisso de realizá-lo, em benefício de extraneus (agente corruptor, aquele que empreendeu tal proposta).
Noutro diapasão, impende rememorar que, via de regra, nas precisas linhas do art. 29, do Código Penal vigente, resta estipulado o seguinte: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas” (o original não contém grifos). Pacífico, então, que o nosso Codex adota a Teoria Monista da Ação, segundo a qual, quando duas ou mais pessoas atuam, em concurso, para a prática de um único delito, todas responderão por este.
Muito se questiona se tal regra seria aplicável no concernente aos crimes tributários. Sem embargo, para fins de proposição de novos parâmetros exegéticos garantistas, no que se refere aos crimes fiscais, imperioso observar que tal previsão não se encontra inserta na Lei nº. 8.137/90, e violaria o princípio da proporcionalidade caso fosse punido o funcionário público, com a aplicação de pena mais branda (de três a oito anos), enquadrando-se nos termos do art. 3º, II, da aludida Lei, ao passo que seria imputado, ao corruptor, o crime do art. 333, do Código Penal, extremamente mais severo (pena de dois a doze anos de reclusão).
Mais correto, pois, diante dessa situação concreta, seria atribuir, ao funcionário público, o referido crime tributário, e considerar partícipe, do mesmo delito, o agente corruptor, na forma do art. 29, do Código Penal, por ausência de previsão legal para um tipo específico.
Não há, na figura típica em análise, qualquer resultado material exigido como elemento do tipo, de sorte que estamos diante de um delito de mera conduta, bastando a prática dos verbos exigir, solicitar, receber ou aceitar, para se consumar.
Mais ainda, o derradeiro inciso do art. 3º, da Lei nº. 8.137/90 tipifica a conduta daquele que patrocina (isto é, advoga, defende, protege), direta ou indiretamente, interesse privado, perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. Esse tipo penal também se assemelha, em demasia, ao crime regulado no art. 321, do Estatuto Repressor, concernente à advocacia administrativa.
É imprescindível vislumbrar que a diferença entre os delitos supramencionados versa acerca da autoridade diante da qual o ilícito penal é praticado: no crime de advocacia administrativa, trata-se da Administração Pública; no crime tributário, da Fazenda Pública.
O momento consumativo do ilícito corresponde ao da realização do primeiro ato de patrocínio de interesse privado, diante do Fisco, independentemente da eventual obtenção de êxito. A tentativa, portanto, em tese, é possível.
Em que pese o legislador pátrio tenha cominado a pena de um a quatro anos de reclusão, além da multa, pela prática do delito fiscal do inciso III, a pena para esse crime foi mais gravosa do que aquela prevista no próprio art. 321, do Código Penal, de três meses a um ano, e multa, evidenciando-se, então, a gradação da severidade penal, imposta aos crimes tributários. É admissível, em tese, a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº. 9.099/95).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária e seus tipos penais incriminadores traz à baila a discussão acerca da obsoleta política-criminal brasileira de instituir leis e provocar a atuação do Direito Penal, punindo, mais severamente, a violação aos bens jurídicos tutelados, na vã ilusão de que isso possa minorar a contumaz reiteração delitiva. Espera-se, enfim, que a novel lei, mais repressora, propicie, também, a fiscalização necessária para pôr termo à prática sonegatória, o que, porém, por si só, não poderá ser alcançado.
É nesse contexto que a abordagem e o estudo da Teoria do Garantismo Penal, de Ferrajoli, se mostram ainda mais promissores e relevantes, no desvelo em proteger os cidadãos da sanha punitiva do Estado Fiscal, e de sua ânsia por responsabilizar, criminalmente, todos os supostos transgressores da norma, sem, contudo, intentar aferir, da forma adequada, o grau de reprovabilidade inserto em suas condutas.
Como, lamentavelmente, é comum, em crimes tributários, o Ministério Público, detentor do dominus litis, costuma oferecer a denúncia sem apresentar as devidas provas concretas da materialidade e, precipuamente, indícios mínimos de autoria.
Portanto, imperioso ressaltar que deve se encontrar, satisfatoriamente, descrita, na denúncia – uma vez que vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direitos – a conduta pormenorizada de cada um dos supostos agentes delitivos, bem como o elemento “fraude”, que, costumeiramente, permeia os crimes tributários, a fim de que reste demonstrada a intenção (e a real capacidade) de ludibriar o Fisco.
A pluma de Hugo de Brito Machado se mostra audaz ao trazer a lume o fato de ser corriqueiro que o Ministério Público denuncie diretores de sociedades comerciais, a título de exemplificação, baseando-se, tão somente, no cargo que ocupam, e na suposta probabilidade de que tivessem, em razão dele, conhecimento da engenhosa manobra delitiva, perpetrada na empresa. Decerto, a própria práxis jurídica evidencia a continuidade com que tal descaso, em relação às garantias e direitos processuais dos acusados, infelizmente, conflui.
Noutro ponto, mas de igual sorte, a despeito da solene exigibilidade de comprovação do dolo, na seara criminal, como elemento subjetivo do injusto, o que, lamentavelmente, se observa, é a banalização da inversão do ônus da prova, com a acusação (a figura, mais uma vez, do Ministério Público) despreocupada em comprovar, efetivamente, o dolo e o nexo de causalidade, entre a conduta do indivíduo e o resultado, recaindo, pois, sobre o réu, o penoso fardo de ter de demonstrar a sua inocência.
No entanto, se é extremamente difícil, para a acusação, corroborar tais elementos, sob a escusa de que, tratando-se o dolo de elemento de cunho psicológico, inviável seria a real demonstração de sua incidência, com mais razão ainda será, praticamente, impossível, para o próprio acusado e para a defesa, afastar essa inversão, sobrelevando-se, assim, a comprovação de sua inocência. Não por acaso, aliás, o art. 5º, LVII, da Constituição Federal, constitui cláusula pétrea, a sedimentar que o princípio basilar é a presunção de inocência, e não de culpa.
Tem-se, pois, na práxis, a vulgarização da persecução penal punitivista, acarretando, invariavelmente, a flexibilização, ou concreta afronta, ao nexo causal, não se podendo, então, aferir a dimensão do grau de reprovabilidade do ilícito, com a análise das consequências da prática criminógena, empreendida por cada um dos agentes delitivos.
Nesse pórtico, como o Garantismo – a própria lente por meio da qual as arbitrariedades do Julgador, do Ministério Público e, enfim, do Estado, se evidenciam – deve nortear a sistemática de interpretação das Leis Penais Tributárias, tão excessivamente incriminadoras, somente de tal modo será possível delinear o equilíbrio prático que há de existir entre o poder-dever estatal de punir o transgressor da norma, e o dever intrínseco de respeitar as garantias e direitos fundamentais da pessoa humana, mesmo que submetida a julgamento criminal.
Portanto, desde que venha o Direito a se esforçar, ao máximo, para garantir a consolidação desse equilíbrio, poder-se-á cogitar na instituição de um legítimo Estado Democrático de Direitos, porquanto, nas linhas mestras do insuperável Ferrajoli (1989, p. 28):
[…] As garantias – e não apenas penais – são vínculos normativos idôneos para assegurar efetividade aos direitos subjetivos e, em geral, aos princípios axiológicos sancionados pelas leis […] Em todos os casos, a elaboração das garantias, quer dizer, dos mecanismos institucionais dirigidos a assegurar a máxima correspondência entre normatividade e efetividade na tutela, ou entre satisfação de direitos, constitui a tarefa mais importante e difícil, tanto de uma teoria, como de uma política garantista do Direito (tradução da autora).
A despeito dessa reconhecida dificuldade prática em aplicar o Garantismo, compete à comunidade acadêmica, e aos legítimos operadores do Direito, desafiar os conceitos preconcebidos, como outrora proposto por Ferrajoli, em vistas à formação de um Estado em que os direitos e garantias fundamentais sejam atendidos, ainda que não em plenitude – o que, indeclinavelmente, há de passar pela fidedigna conscientização acerca do perigoso caminho pelo qual, na práxis, se enveredam os juristas, ao negligenciar o viés garantista e democrático do Estado de Direitos, cuja marcha urge reassumir.
[1] <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4502.htm>. Acesso em: 08/05/2015.
[2] <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4729.htm>. Acesso em: 09/05/2015.
[3] MACHADO, Hugo de Brito. 2011, p. 67
REFERÊNCIAS
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Vol. II. Coleção Os Pensadores. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. Vol. 1. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
________. Crimes contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013.
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1940.
________. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1941.
________. Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Imposto de Consumo e reorganiza a Diretoria de Rendas Internas. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de julho de 1965. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4502.htm>. Acesso em: 08 de maio de 2015.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
NEWMAN, Karla Victoria Fernandes. Dogmática Penal Tributária: Uma Interpretação Garantista dos Crimes Fiscais. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17378551, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 17/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/dogmatica-penal-tributaria-uma-interpretacao-garantista-dos-crimes-fiscais-2/. Acesso em: 28/10/2025.
