Crimes próprios e impróprios no âmbito da Polícia Militar: aspectos jurídicos e disciplinares
Autores
Resumo
Esta pesquisa tem como objetivo compreender como funcionam os crimes próprios e impróprios dentro da Polícia Militar, a partir de leituras de leis, livros e estudos sobre o Direito Penal Militar. O trabalho mostra que a Justiça Militar surgiu da necessidade de preservar dois valores que sustentam a vida militar: a hierarquia e a disciplina. Os crimes próprios são aqueles que só podem ser cometidos por militares, pois atingem diretamente esses valores — como deserção, abandono de posto ou desrespeito a superior. Já os crimes impróprios são os que também existem no Código Penal comum, como homicídio e furto, mas que se tornam militares quando o policial os pratica em serviço ou em razão da função. A pesquisa destaca que o Direito Penal Militar possui regras próprias e tem papel essencial na manutenção da ordem nas instituições, devendo, contudo, respeitar os direitos individuais. Ele busca equilibrar autoridade e responsabilidade, garantindo que o poder de comando não apague a humanidade de quem serve. Outro ponto importante é que o militar pode ser responsabilizado duas vezes pelo mesmo ato: penalmente, na Justiça, e disciplinarmente, dentro da corporação. Isso evidencia o quanto a vida militar exige rigor e comprometimento, pois o comportamento individual afeta tanto o aspecto jurídico quanto a carreira e a vida pessoal. Por fim, o estudo reforça que o Direito Penal Militar deve proteger a hierarquia e a disciplina sem esquecer o respeito à pessoa humana, mantendo o equilíbrio entre dever e justiça.
Palavras-ChaveCrimes Militares Próprios. Crimes Militares Impróprios. Hierarquia e Disciplina. Justiça Militar. Responsabilidade Penal.
Abstract
This research aims to understand how specific and non-specific military crimes operate within the Military Police, based on the analysis of laws, academic studies, and texts on Military Criminal Law. The study shows that Military Justice arose from the need to preserve two core values of military life: hierarchy and discipline. Specific military crimes are those that can only be committed by service members, as they directly violate these values — such as desertion, abandonment of post, or insubordination. Non-specific crimes, on the other hand, are offenses also found in the ordinary Penal Code, such as homicide or theft, but become military crimes when committed by a police officer on duty or in connection with official duties. The research highlights that Military Criminal Law has its own set of rules and plays a key role in maintaining order within institutions, while still respecting individual rights. It seeks to balance authority and responsibility, ensuring that the power to command does not erase the humanity of those who serve. Finally, the study points out that a military member may face both criminal and disciplinary consequences for the same act, which shows how demanding and rigorous military life can be. Military Criminal Law therefore aims not only to punish, but to preserve the balance between duty and justice, authority and human dignity.
KeywordsProper Military Crimes. Improper Military Crimes. Hierarchy and Discipline. Military Justice. Criminal Responsibility.
1. INTRODUÇÃO
A Polícia Militar ocupa um lugar central no sistema de segurança pública do Brasil e tem suas raízes históricas no período colonial brasileiro, pois, já naquela época, via-se a necessidade de uma força organizada para garantir a ordem interna, a defesa dos interesses da Coroa e a proteção das rotas de comércio, especialmente as de ouro e diamantes. Sua história se entrelaça de forma significativa com a formação do Brasil enquanto Estado, atravessando vários períodos da história adaptando-se às mudanças políticas e sociais.
Ao longo do tempo, a Polícia Militar consolidou-se como uma instituição fundamental para a manutenção da ordem pública e passou a assumir um papel duplo: proteger o patrimônio e a vida dos cidadãos e, ao mesmo tempo, servir como uma força de reserva auxiliar do Exército Brasileiro. Característica esta, presente até hoje na Constituição Federal, que define as Polícias Militares como:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…)§ 6º — As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios [Constituição (1988)].
É neste ponto que se destaca a sua relevância para a sociedade, pois trata-se de uma entidade que atua não apenas no policiamento ostensivo, mas também no âmbito da defesa nacional, de forma preventiva e visível, garantindo a sensação de segurança à população através do patrulhamento de ruas, operações de combate ao crime, controle de tumultos, com atuação em grandes eventos públicos e prestação de atendimento imediato em situações de emergência. Além disso, a instituição desenvolve programas sociais e comunitários, aproximando-se da população através de ações educativas e preventivas, como o Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência).
Em um Estado de Direito, a sua atuação multifacetada faz com que a Polícia Militar se torne uma presença constante no cotidiano dos cidadãos sendo, na maioria das vezes, o primeiro contato da sociedade com a segurança estatal, que zela pela confiança social, respondendo tanto às necessidades de segurança objetiva quanto ao desafio de manter a legitimidade diante da população.
Sendo assim, partindo da importância de tal instituição na garantia da segurança e manutenção do Estado de direito, surgiu a necessidade imprescindível da elaboração de um Código Penal Militar e de um Código de Processo Penal Militar, tendo em vista que suas atividades exigem um regramento próprio, distinto daquele aplicável à esfera civil, como forma de garantir um desempenho mais efetivo das atividades policias, quanto para a preservação e segurança jurídica dos agentes, delimitando responsabilidades e assegurando parâmetros adequados de conduta aos profissionais que atuam em nome do Estado na preservação da ordem pública.
É possível verificar a eficácia desses instrumentos à medida em que estruturam num sistema jurídico voltado à realidade das corporações militares estaduais e das Forças Armadas. Enquanto o Código Penal Militar tipifica condutas que, no contexto castrense, comprometem a ordem e a disciplina, o Código de Processo Penal Militar estabelece os procedimentos necessários para sua apuração e julgamento, o que garante a manutenção da hierarquia e da disciplina, como também o respeito às garantias fundamentais dos acusados.
Tais diplomas legais delimitam quais infrações são classificadas como crimes próprios, e como os militares responderão por elas, sem afastar, entretanto, a possibilidade de responsabilização por delitos considerados impróprios. Dessa forma, torna-se fundamental a distinção entre crimes propriamente militares e impropriamente militares, noções essenciais ao estudo do Direito Penal Militar. Os crimes próprios militares são aqueles que apenas podem ser praticados por militares, em virtude da função ou da condição de serviço que desempenham. Exemplos clássicos incluem a deserção (art. 187 do CPM), a insubmissão (art. 183 do CPM) e o motim (art. 149 do CPM), condutas que afetam de modo direto os princípios de hierarquia e disciplina (BRASIL, 1969). Já os crimes impróprios militares correspondem a ilícitos também previstos no Código Penal comum — como o homicídio e o furto —, mas que, quando cometidos por militares em serviço ou em razão da função, passam à competência da Justiça Militar, conforme prevê a Constituição Federal, ao estabelecer que as Polícias Militares integram as “forças auxiliares e reserva do Exército” (§6º do art. 144) (BRASIL, 1988).
Essa diferenciação revela-se imprescindível para compreender a razão de ser do ordenamento castrense, assegurando, de um lado, a preservação da disciplina institucional e, de outro, a observância dos valores constitucionais mais amplos, que garantem direitos e deveres a todos os cidadãos, militares ou civis.
Conforme Olympio (2015, p. 363):
[…] diferentemente do que se pensa, o Direito Penal Militar não é um apêndice do Direito Penal comum ou um “Direito Penal de Farda”. Há conceitos, institutos, hipóteses que em muito diferem do ramo mais abrangente. Isso não se dá apenas por uma suposta “restrição temática” a que se sujeitaria o ramo castrense: a gama de bens e valores envolvidos torna até difícil de estabelecer um conceito firme sobre o que seja de fato, crime militar (OLYMPIO, 2015, p.363).
Dessa forma, o Direito Penal Militar não deve ser interpretado como um ordenamento apartado do sistema jurídico brasileiro, mas como um ramo especializado, destinado a compatibilizar a singularidade da atividade policial-militar com os princípios democráticos que regem o Estado de Direito.
2. A origem da Justiça Militar
A Justiça Militar no Brasil antecede a própria independência do país. Sua origem remonta à chegada da família real portuguesa em 1808, ocasião em que o príncipe regente D. João VI instituiu, por meio de alvará, um foro especial para o julgamento de delitos militares em território brasileiro, criando o Conselho Supremo Militar, órgão que, posteriormente, se consolidaria como o atual Superior Tribunal Militar (STM). Assim, com mais de dois séculos de existência, a Justiça Militar configura-se como a jurisdição especializada mais antiga do ordenamento jurídico nacional. Convém lembrar que, mesmo antes da vinda da Corte, aplicava-se na colônia brasileira a legislação militar portuguesa.
Embora a Constituição Imperial de 1824 não previsse expressamente a Justiça Militar, esta já se encontrava materialmente estruturada. Foi apenas com a Constituição de 1934 que se atribuiu ao STM competência jurisdicional de forma explícita, estendendo, inclusive, sua atuação a civis em determinadas hipóteses, especialmente nos crimes contra a segurança externa e contra as instituições militares. Já a Constituição de 1937, durante o Estado Novo, ampliou de forma drástica a jurisdição militar, permitindo o julgamento de civis também nos casos de crimes contra a segurança interna. Tal previsão refletia os objetivos políticos do regime, funcionando como instrumento de repressão e perseguição a opositores.
O retorno democrático de 1946 limitou novamente o alcance da Justiça Militar, retirando de sua competência os delitos relacionados à segurança interna. Contudo, esse equilíbrio normativo teve curta duração. Durante o regime militar, instaurado em 1964, a Justiça Militar retomou protagonismo político, reforçada pelo Código Penal Militar e pelo Código de Processo Penal Militar, ambos editados em 1969, que ampliaram seu campo de atuação. Apenas com a Constituição Federal de 1988 a Justiça Militar foi definitivamente reestruturada dentro de parâmetros democráticos, sendo sua competência definida no art. 124 da Constituição Federal, que lhe atribui a missão de “processar e julgar os crimes militares definidos em lei.”
Embora a Justiça Militar exista desde antes da independência do Brasil, não há uma definição universalmente aceita sobre o conceito de crime militar, sua caracterização varia conforme a legislação de cada país, o contexto histórico e as finalidades específicas da jurisdição militar, sendo, geralmente, vinculada à proteção da disciplina, hierarquia e segurança das instituições castrenses, conforme manifesta Denílson Feitoza:
Não há um conceito universal de crime militar. Tal conceito é histórico, cultural e nacionalmente dependente, ou seja, varia de acordo com o momento histórico, com a cultura e com o ordenamento jurídico-nacional locais. Há vários critérios que podem ser adotados para a construção do conceito de crime militar (…). Pelo critério ratione legis, crime militar seria o que a lei enumerasse como crime militar, casuisticamente. A Constituição Federal, nos seus artigos 124 e 125, § 4º, estabelece que a Justiça Militar é competente para os crimes militares definidos em lei. Em razão disso, a doutrina afirma que o critério adotado no Brasil é o ratione legis. Dizer-se que o critério adotado é o ratione legis é pouco elucidativo, pois, de certa forma, a instituição de um crime, qualquer que seja, é sempre pelo critério ratione legis, tendo em vista o princípio constitucional da legalidade.
Sendo assim, o crime militar pode ser compreendido como uma categoria jurídico-penal própria, cuja delimitação depende do contexto histórico, legal e funcional de cada força armada, refletindo a necessidade de preservação da ordem e disciplina militares.
3. O conceito de crime militar segundo o Código Penal Militar e a competência para julgamento
O Código Penal Militar (CPM), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.001/1969, traz, em seu art. 9º, a definição do que deve ser considerado crime militar em tempo de paz. O dispositivo estabelece que:
“Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados nas condições ali descritas” (BRASIL, 1969).
O legislador, ao elaborar o ordenamento penal militar, não se limitou a tipificar condutas exclusivamente relacionadas à vida castrense, mas previu a possibilidade de que determinados crimes comuns, quando praticados em situações específicas — por exemplo, dentro de unidade militar, contra patrimônio sob administração militar ou mesmo contra militar em serviço ou em razão de sua função — passem a ser enquadrados como crimes militares. A doutrina, nesse sentido, ressalta que “o conceito de crime militar é misto, pois depende tanto da tipificação legal quanto das circunstâncias em que o delito ocorre” (NEVES, 2014, p. 95).
Conforme o entendimento do doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 3), o CPM “é um ramo especializado, cujo corpo de normas se volta à instituição de infrações penais militares, com as sanções pertinentes, voltadas a garantir os princípios basilares das Forças Armadas, constituídos pela hierarquia e disciplina”.
É importante destacar que o Direito Penal Militar constitui um ramo do Direito Público, aplicado no âmbito das Forças Armadas e das instituições militares estaduais, e que seus crimes podem ser praticados tanto por militares da ativa, quanto por inativos e até mesmo por civis (CPM, 1969). Apesar de sua autonomia, mantém estreita relação com o Direito Penal comum, adotando diversos institutos e princípios, como a noção de fato típico, antijurídico e culpável.
Sendo assim, é preciso entender que o crime militar se trata de uma categoria jurídico-penal especial, cuja caracterização depende não apenas da tipicidade da conduta, mas também da presença de elementos contextuais que o diferenciam do crime comum. Assim, deve-se observar que o crime penal militar pode estar previsto tanto no Código Penal Militar (CPM) quanto no Código Penal comum, sendo necessário, nesses casos, atentar-se para critérios adicionais de incidência. Isso porque, em regra, todo crime militar deve ser processado e julgado pela Justiça Militar; entretanto, quando a Constituição atribui competência ao Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis, a natureza militar da infração não subsiste, prevalecendo a jurisdição do júri popular, conforme os artigos 125 da Constituição Federal e 109 da Constituição Estadual
“Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. (…) Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares§ 4º dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri, cabendo ao tribunal competente decidir sobre aquando a vítima for civil perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
“Art. 108. A Justiça Militar é constituída, em primeiro grau, pelos Conselhos de Justiça e, em segundo, pelo Tribunal de Justiça ou por Tribunal de Justiça Militar. (…) Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares§ 2º do Estado nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri, quando a vítima for civil, cabendo ao Tribunal de Justiça decidir sobre a perda do posto ou da patente dos oficiais e da graduação dos praças” (PARANÁ, 1989, art. 109, grifo nosso).
Tal temática fora recentemente objeto de análise na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 0126592-34.2024.8.16.0000, proposta perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. No referido julgamento, discutiu-se a controvérsia acerca da atribuição para a condução das investigações em crimes dolosos contra a vida quando praticados por policiais militares, tendo como vítima um civil. O Tribunal, ao enfrentar a matéria, reiterou o entendimento de que compete à Polícia Civil a apuração desses delitos, reafirmando a sua capacidade investigativa e a legalidade de sua atuação, conforme exposto no trecho a seguir:
“Assim sendo, a regra é que a Justiça Comum conduza o Inquérito Policial administrativamente e, caso perceba claramente não se tratar de delito doloso contra a vida, remeterá o IP ao Juízo Militar o processo, e não o inverso”. Bastante difundido na teoria constitucional é o método hermenêutico-concretizador, segundo o qual o sentido da Constituição é buscado na conciliação entre o texto e a situação em que ele se aplica. (…) Nesse contexto, o cotejo entre o problema em exame (competência para a investigação dos crimes em questão) e o texto constitucional revela-nos que o foro especial do júri há de prevalecer sobre a competência da Justiça Militar. Seria, deveras, descuidado interpretar que, a despeito de transferir a competência jurisdicional dos referidos delitos à Justiça Comum, a Constituição deixou de entregar os poderes investigativos à Polícia Judiciária Civil. É correta, pois, a conclusão autoral de que a competência para apurar tais ilícitos não é da autoridade castrense. Inclusive, as Constituições Federal e Estadual assim determinam” (…) (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 0126592-34.2024.8.16.0000).
Dessa forma, o julgado contribui para reforçar a segurança jurídica e delimitar de modo mais preciso as esferas de atuação entre a Polícia Civil e a Polícia Militar, evitando sobreposições de atribuições e eventuais nulidades processuais decorrentes de investigações conduzidas por autoridade incompetente.
Vale lembrar que a configuração de um crime como militar pode variar conforme o local em que é cometido, uma vez que determinados delitos somente se caracterizam nessa qualidade quando praticados em áreas sujeitas à administração ou jurisdição militar. E que até o momento, apenas nos casos acima citados é que a competência deixa de ser da justiça militar.
Além disso, a definição pode depender da qualidade das pessoas envolvidas — seja em relação ao sujeito ativo (militar da ativa, da reserva, reformado ou até mesmo civil) ou ao sujeito passivo (militar em serviço, autoridade ou instituição militar). Outro aspecto relevante é o momento da prática, pois em determinadas hipóteses a condição de estar ou não em serviço influencia diretamente na subsunção típica, como ocorre, por exemplo, com delitos de desrespeito à autoridade, à hierarquia ou a símbolos nacionais. Trata-se, portanto, de um conceito que ultrapassa a mera subsunção da conduta à norma, exigindo análise mais complexa da situação fática e normativa.
4. Diferença entre crimes militares próprios e impróprios
A distinção entre crimes próprios e impróprios militares constitui ponto central da dogmática penal castrense.
Os crimes próprios militares são aqueles que não encontram correspondência na legislação penal comum, pois dizem respeito exclusivamente à vida e à função militar. Vale ressaltar o conceito de crime próprio: “no crime próprio, o tipo penal exige que o agente ostente certas características”, como ocorre, por exemplo, no peculato, na corrupção passiva e no infanticídio (SANCHES, 2018, p. 196). Portanto, o crime propriamente militar é aquele que se só pode ser cometido por militares, em virtude de sua sujeição aos princípios de hierarquia e disciplina. Como observa Romeiro (1994, p. 68), “a lei militar não necessita explicar tais condutas, porque sua gravidade decorre da própria essência da vida castrense”.
Essa classificação cumpre uma função essencial na delimitação das esferas de atuação da Justiça Militar. Essa diferenciação é o que garante a preservação da hierarquia e da disciplina como valores constitucionais das Forças Armadas e das Polícias Militares, conferindo-lhes tratamento jurídico diferenciado. Nesse contexto, a existência de crimes que somente podem ser praticados por militares justifica-se na medida em que tais condutas, ainda que possam aparentar menor gravidade sob a ótica do direito penal comum, comprometem diretamente a estrutura e a regularidade do serviço militar. Em razão disso, o legislador optou por tipificar determinadas ações como ilícitos de natureza estritamente castrense, cuja repressão é indispensável para a manutenção da ordem e da autoridade no âmbito da vida militar.
Por outro lado, os crimes impróprios militares são infrações também previstas no Código Penal comum, como o homicídio (art. 205 do CPM) ou o furto (art. 240 do CPM), mas que, quando cometidos em determinadas circunstâncias — por exemplo, por militar em serviço, em local sob administração militar ou contra outro militar — assumem natureza de crime militar. Sobre essa categoria, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a definição não pode ser ampliada de forma a estender indevidamente a competência da Justiça Militar, devendo prevalecer uma interpretação restritiva (STF, HC 104.174/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2012).
Contudo, é importante ressaltar que o civil também pode cometer crime militar, na condição de coautor junto com o militar. Essa possibilidade decorre do princípio da acessoriedade, que traz a possibilidade de punir o partícipe, tendo em vista que este auxiliou diretamente na prática de um fato típico e ilícito. A responsabilidade do civil surge quando sua conduta contribui de maneira relevante para a realização do delito, seja fornecendo meios, instruções, incentivando ou de qualquer forma colaborando para a execução do crime.
Um exemplo concreto dessa situação encontra-se no crime de pederastia, previsto no art. 235 do Código Penal Militar.
“Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso em lugar sujeito à administração militar ou no exercício de função militar: (Redação dada pela Lei nº 14.688, de 2023) Pena – detenção, de seis meses a um ano.”
Embora a conduta típica dependa, em regra, da ação de um militar, um civil que atue como coautor — participando da prática do ato sexual ilícito, facilitando sua consumação ou incitando o militar à conduta — também poderá ser responsabilizado pela Justiça Militar, nos limites de sua participação. Essa extensão da responsabilidade penal reflete a preocupação do Direito Penal Militar em proteger não apenas a disciplina e a hierarquia militar, mas também os bens jurídicos relacionados à moralidade e à ordem nas instituições militares, independentemente da condição do agente como militar ou civil.
A diferença, então, entre crimes militares próprios (propriamente militares) e crimes próprios militares, consiste no fato de que “os primeiros exigiriam apenas a qualidade de militar para o agente; enquanto os segundos, além da referida qualidade, um plus, uma particular posição jurídica para o agente” (ROMEIRO: 1994, p. 76).
Em ambos os tipos de crime, a Constituição Federal, em seu art. 124, estabelece:
“Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar. (BRASIL, 1988)”
Ressalta-se, ainda, que a Lei nº 13.491/2017 promoveu significativa alteração no art. 9º do Código Penal Militar ao ampliar o conceito de crime militar. Antes, aplicava-se o critério ratione legis, segundo o qual apenas condutas previstas no CPM, ou simultaneamente nele e na legislação penal comum, eram consideradas crimes militares. E com a reforma, passou a prevalecer o critério ratione materiae, permitindo que delitos previstos exclusivamente na legislação penal comum sejam enquadrados como militares, desde que atendam às hipóteses do art. 9º, considerando o local, o momento e os sujeitos da infração. Além disso, transferiu-se à Justiça Militar a competência para julgar crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares das Forças Armadas em serviço.
Sendo assim, a ampliação promovida pela Lei nº 13.491/2017 redefiniu substancialmente os contornos do crime militar no ordenamento jurídico brasileiro, conferindo maior abrangência à competência da Justiça Militar. Com isso, condutas antes restritas à apreciação da Justiça comum passaram a ser julgadas no âmbito castrense, reforçando a necessidade de análise criteriosa quanto ao momento, local e sujeitos envolvidos, a fim de delimitar corretamente a incidência do art. 9º do Código Penal Militar.
5. Exemplos de crimes próprios cometidos por policiais militares
Para que uma conduta seja configurada como crime militar, é necessário que ela atenda simultaneamente a duas condições. A primeira é que a conduta seja tipificada exclusivamente no Código Penal Militar, ou seja, não podendo haver correspondência idêntica na legislação penal comum. A segunda condição é que o delito seja praticado por militar da ativa, sendo esta característica essencial para a sua classificação como crime militar próprio.
No caso dos policiais militares, destacam-se como exemplos o crime de desrespeito a superior:
Art. 160. Desrespeitar superior diante de outro militar:
Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
O desrespeito a superior configura à conduta do policial que desobedece a ordens legais ou age de forma contrária à disciplina, comprometendo a autoridade da cadeia hierárquica.
O crime de deserção:
Art. 187. Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos; se oficial, a pena é agravada.
A deserção caracteriza-se pela ausência prolongada e injustificada do policial de seu serviço ou unidade, demonstrando intenção de evadir-se de suas obrigações, o que prejudica a operacionalidade e a segurança da corporação.
O abandono de posto:
Art. 195. Abandonar, sem ordem superior, o posto ou lugar de serviço que lhe tenha sido designado, ou o serviço que lhe cumpria, antes de terminá-lo:
Pena – detenção, de três meses a um ano.
O abandono de posto consiste no ato de deixar o posto ou a função que lhe foi confiada durante o serviço, expondo a instituição a riscos e comprometendo a execução das atividades militares.
Em conjunto, esses crimes evidenciam que a manutenção da disciplina e da hierarquia não é apenas uma formalidade organizacional, mas sim um bem jurídico protegido, essencial para o funcionamento eficiente e seguro das forças militares. Como observa Jorge César de Assis (2018, p. 45), “a tipificação de crimes próprios militares não visa apenas a punir a conduta do agente, mas resguardar a estrutura organizacional das Forças Armadas e das Polícias Militares, garantindo sua operacionalidade e credibilidade perante a sociedade”.
Na prática, é comum a Justiça Militar estadual julgar casos de policiais militares flagrados em abandono de posto durante serviço de guarda em batalhões, presídios ou eventos públicos. Nesses episódios, além da repercussão penal, há grave prejuízo disciplinar, pois o comportamento mina a confiança na tropa e compromete a segurança da coletividade. Célio Lobão (2015, p. 112) enfatiza que “a persecução penal dos crimes próprios militares cumpre dupla função: reprimir a conduta ilícita e reafirmar a necessidade da disciplina como valor inafastável da vida castrense”.
6. Discussão sobre a responsabilização disciplinar e seus reflexos na carreira militar
A responsabilização disciplinar é um instrumento fundamental para manter a ordem dentro da corporação militar, assegurando o cumprimento das normas, a preservação da hierarquia e a correção de condutas que possam comprometer a disciplina.
Um policial militar que pratica crime militar pode sofrer, além da sanção penal, punições de natureza administrativa, decorrentes da violação dos regulamentos disciplinares da corporação. Isso acontece porque a responsabilização do militar é dupla: de um lado ele responde criminalmente, nos termos do artigo 9º do CPM, e do outro, está sujeito às medidas disciplinares previstas nos regulamentos internos, como, por exemplo, advertência, suspensão ou até exclusão das fileiras. Mário Sérgio de Moraes (2019, p. 210) explica que “a autonomia entre as instâncias penal, civil e administrativa não impede que o mesmo fato gere consequências distintas, refletindo de modo cumulativo na vida do militar”. Assim, um ato de insubordinação, por exemplo, pode ensejar tanto processo penal militar quanto processo administrativo disciplinar (PAD).
Os reflexos na carreira do policial são significativos, uma vez que a prática de crime militar e a consequente responsabilização podem gerar anotações na ficha funcional, restrição de promoções, impedimento para o exercício de determinadas funções de confiança, perda do posto e da patente ou da graduação.
“art. 98. São penas acessórias:
I-A perda de posto e patente; II- a indignidade para o oficialato; III- a incompatibilidade com o oficialato; IV- a exclusão das forças armadas; V- a perda da função pública, ainda que eletiva; VI – a inabilitação para o exercício de função pública; VII- a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela quando tal medida for determinante para salvaguardar os interesses do filho, tutelado ou do curatelado; VIII- a suspensão dos direitos políticos” (BRASIL, 1969).
Ainda que não receba a condenação penal, a simples reiteração de faltas disciplinares pelo militar pode prejudicar a progressão funcional, bloqueando promoções ou resultando em exclusão. Nesses termos o doutrinador Célio Lobão (2015, p. 198) aponta que “a disciplina é a moeda de troca pela qual o militar abre mão de certas liberdades em favor da honra de integrar uma instituição armada; sua violação contínua compromete a própria legitimidade da carreira”.
7. Importância da disciplina e hierarquia na configuração do ilícito penal militar
A disciplina e a hierarquia são os valores que estruturam a organização militar, e possuem previsão expressa no art.14 da Lei 6.880 de 1980.
“Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das forças armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico” (BRASIL, LEI 6.880, 1980).
Princípios como esse justificam a necessidade de um Direito Penal especial voltado às Forças Armadas e às Polícias Militares, visto que em nenhuma outra carreira tais princípios possuem relevância tão marcante e indispensável quanto na vida militar.
Jorge César de Assis (2018, p. 22) ressalta que “sem disciplina e hierarquia, não há organização militar possível, e o direito penal castrense seria esvaziado de sentido”.
Portanto, condutas que, no âmbito civil, são consideradas simples desentendimentos, no ambiente militar configuram crimes graves. O ato de desacatar um superior hierárquico, por exemplo, além de ferir a honra individual, representa uma afronta à estrutura de comando da corporação.
“Art. 298. Desacatar superior, ofendendo-lhe a dignidade ou o decôro, ou procurando deprimir-lhe a autoridade:
Pena – reclusão, até quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave” (BRASIL, 1969).
O Código Penal Militar prevê tipos penais específicos para tais situações, com penas mais severas. Conforme destaca Damásio de Jesus (2017, p. 101), “a razão de ser do Direito Penal Militar é a proteção da instituição armada, e não apenas do indivíduo militar, de modo que a hierarquia e a disciplina funcionam como filtros interpretativos indispensáveis à aplicação da lei castrense”.
O ingresso na Polícia Militar requer que os agentes de determinados direitos se submetam aos pilares da hierarquia e da disciplina em sua forma mais rigorosa. Em termos da hierarquia militar, a rigidez desse pilar é tamanha que a própria legislação define a inexistência de militares iguais, em termos hierárquicos. Quaisquer dois indivíduos possuem uma relação de antiguidade entre eles e, em decorrência desta, de subordinação.
Sendo assim, a observância rigorosa da hierarquia e da disciplina é essencial para a configuração do ilícito penal militar, uma vez que a violação desses pilares caracteriza condutas que atentam diretamente contra a estrutura organizacional da corporação.
8. Conclusão
O presente estudo permitiu compreender que o Direito Penal Militar possui uma natureza especial, distinta do direito penal comum, justamente pela relevância de proteger bens jurídicos ligados à hierarquia, à disciplina e ao regular funcionamento das instituições militares. A análise prática demonstrou que a tipificação e o julgamento dos crimes militares não se restringem aos integrantes das Forças Armadas e das Polícias Militares, podendo alcançar, em situações específicas, até mesmo civis, quando há coautoria ou participação em delitos castrenses.
No que se refere aos crimes próprios militares e aos crimes impróprios, o estudo possibilitou a elucidação de maneira clara e objetiva dos critérios que permitem sua correta identificação, suscitando relevantes discussões acerca da competência jurisdicional e da interpretação legal aplicável. Essa distinção transcende a esfera meramente teórica, apresentando relevância prática ao determinar o juízo competente e a natureza da sanção a ser aplicada.
Outro ponto relevante refere-se à responsabilização disciplinar, que opera de forma paralela à esfera penal. O militar pode sofrer, pelo mesmo fato, sanções administrativas e criminais, com reflexos diretos em sua carreira. Esse acúmulo de responsabilidades demonstra que a vida castrense exige padrões de conduta mais rigorosos, nos quais a violação da disciplina pode repercutir tanto no campo jurídico quanto no plano profissional e pessoal.
A ênfase na disciplina e na hierarquia ficou evidente ao longo do estudo, pois são elas que dão sentido ao Direito Penal Militar e justificam a existência de tipos penais específicos. A ofensa a um superior, por exemplo, não é tratada apenas como crime contra a honra, mas como afronta ao próprio sistema de comando, que se sustenta no respeito incondicional à autoridade. Assim, a lei penal castrense protege valores que, sem sua preservação, inviabilizariam a missão constitucional das Forças Armadas e das Polícias Militares.
Por fim, reforça-se que a correta aplicação da lei militar é essencial para preservar, tanto os interesses institucionais das corporações, quanto os direitos fundamentais dos indivíduos. Distinguir adequadamente crimes próprios e impróprios, respeitar os limites da competência da Justiça Militar e aplicar sanções proporcionais são medidas que fortalecem a legitimidade da justiça castrense. Como ensina Célio Lobão (2015, p. 202), “a Justiça Militar só se justifica quando cumpre sua missão de proteger a disciplina e a hierarquia sem jamais olvidar o princípio da dignidade da pessoa humana”. Essa síntese revela que a efetividade do Direito Penal Militar depende do equilíbrio entre a autoridade do Estado e a proteção dos direitos individuais.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
KRAULICH, Karina e Oliveira, Leonardo Franco de (ORCID 0009-0000-2032-1053) . Crimes próprios e impróprios no âmbito da Polícia Militar: aspectos jurídicos e disciplinares. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17398080, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 20/10/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/crimes-proprios-e-improprios-no-ambito-da-policia-militar-aspectos-juridicos-e-disciplinares/. Acesso em: 28/10/2025.
