Coparentalidade à Distância e o Princípio do Melhor Interesse da Criança: A Guarda Compartilhada entre Genitores com Domicílios em Cidades Distintas
Autores
Resumo
O presente artigo analisa a viabilidade jurídica da guarda compartilhada quando os genitores residem em cidades, estados ou até países diferentes, sob a ótica do princípio do melhor interesse da criança e da coparentalidade à distância. Fundamentado no art. 1.583, §3º, e no art. 1.584, §2º, do Código Civil, com redação dada pela Lei nº 13.058/2014, o estudo demonstra que a distância geográfica não constitui obstáculo ao exercício conjunto do poder familiar. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em precedentes paradigmáticos como o REsp 1.878.041/SP (Informativo 698/STJ) e o REsp 2.038.760/RJ, reconhece que o compartilhamento de responsabilidades parentais é plenamente possível mediante planejamento de convivência e uso de meios tecnológicos que garantam comunicação constante entre pais e filhos. A análise aborda ainda a importância da definição de uma cidade de referência para assegurar estabilidade e previsibilidade, bem como a distinção entre guarda compartilhada e guarda alternada, e o papel das ferramentas digitais na manutenção da presença afetiva. Conclui-se que a coparentalidade à distância, quando estruturada de modo cooperativo e orientada ao melhor interesse do menor, concretiza o ideal de igualdade parental e corresponsabilidade no exercício do poder familiar.
Palavras-ChaveGuarda compartilhada. Coparentalidade à distância. Melhor interesse da criança. Poder familiar. Comunicação tecnológica.
Abstract
This article examines the legal feasibility of joint custody when parents live in different cities, states, or even countries, under the perspective of the best interests of the child and remote coparenting. Based on Articles 1.583 §3 and 1.584 §2 of the Brazilian Civil Code, as amended by Law No. 13.058/2014, the study demonstrates that geographical distance does not prevent joint parental authority. The Superior Court of Justice (STJ), in key precedents such as REsp 1.878.041/SP (STJ Informative 698) and REsp 2.038.760/RJ, has affirmed that shared parental responsibility is possible through structured coexistence plans and technological tools that ensure constant communication between parents and children. The discussion highlights the importance of defining a reference city to provide stability and predictability, distinguishes joint custody from alternating custody, and explores the role of digital communication in preserving affective bonds. It concludes that remote coparenting, when organized cooperatively and guided by the child’s best interests, fulfills the ideal of parental equality and shared responsibility in the exercise of family authority.
KeywordsJoint custody. Remote coparenting. Best interests of the child. Parental authority. Technological communication.
1. INTRODUÇÃO
A consolidação da guarda compartilhada no direito brasileiro deslocou o eixo de análise da guarda de filhos do paradigma possessivo — centrado na custódia física e na disputa por tempo — para um modelo funcional de parentalidade responsável, fundada na corresponsabilidade decisória e na coparticipação ativa de ambos os genitores. A dinâmica contemporânea das famílias, marcada por mobilidade geográfica, reestruturações conjugais e intensa mediação tecnológica das relações, impôs ao sistema jurídico uma reinterpretação de categorias tradicionais, especialmente quando os genitores fixam residência em cidades, estados ou países distintos.
O problema jurídico que orienta este estudo é claro: a distância territorial entre os pais impede a guarda compartilhada? A resposta, hoje, é negativa. A legislação civil (arts. 1.583 e 1.584 do CC, com redação da Lei nº 13.058/2014) e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidaram premissas normativas e interpretativas segundo as quais (i) a guarda compartilhada configura regra geral quando ambos os genitores estão aptos ao exercício do poder familiar; (ii) a cidade-base de moradia dos filhos é definida pelo melhor interesse da criança; e (iii) a distância geográfica não constitui óbice, desde que estruturado um plano parental exequível, apoiado em rotinas de convivência e comunicação contínua.
O artigo propõe, assim, uma abordagem integrada (normativa, doutrinária, jurisprudencial e prática), com três objetivos: (a) sistematizar os fundamentos normativos e a teleologia protetiva da guarda compartilhada; (b) demonstrar, à luz dos precedentes do STJ, a compatibilidade entre coparentalidade e distância geográfica, inclusive transnacional; e (c) oferecer parâmetros técnicos de implementação (planejamento de convivência, protocolos de comunicação, governança decisória, prova e mecanismos de cumprimento), preservando o princípio do melhor interesse da criança como vetor hermenêutico primordial.
2. FUNDAMENTOS NORMATIVOS E DIRETRIZES ESTRUTURANTES
A guarda compartilhada consolidou-se no direito brasileiro como regra de exercício conjunto do poder familiar, com ênfase na corresponsabilidade decisória e na coparticipação ativa de ambos os genitores na vida do filho. Do ponto de vista legal, o regime não se confunde com a alternância de residências nem exige divisão aritmética de tempo; a finalidade é assegurar que os pais deliberem em conjunto sobre temas essenciais (educação, saúde, formação moral e social), mesmo quando não coabitam. Essa diretriz encontra lastro normativo especialmente em dois vetores: (i) a compreensão de que, na guarda compartilhada, deve haver uma cidade-base de moradia que melhor atenda ao interesse da criança ou do adolescente; e (ii) a obrigatoriedade do regime quando ambos os pais estão aptos, ressalvadas hipóteses legais estritas. Tais premissas estão sintetizadas no material citado: a regra da guarda compartilhada e a eleição da cidade de referência como mecanismo de estabilidade, voltada ao “melhor atender aos interesses” do filho.
A partir desses parâmetros, resulta lógico que a distância geográfica entre os domicílios parentais, por si, não afasta a guarda compartilhada. O próprio arranjo normativo pressupõe que a base de moradia será definida conforme o interesse da criança, e não como corolário de proximidade física entre os genitores.
3. RESIDÊNCIAS EM CIDADES DISTINTAS: COMPATIBILIDADE MATERIAL E TELEOLOGIA PROTETIVA
No plano teleológico, a guarda compartilhada protege a estabilidade e a previsibilidade da rotina do menor sem reduzir a parentalidade a um jogo de “posse do tempo”. Por isso, a fixação de regras específicas de convivência (finais de semana, férias, feriados, datas comemorativas e janelas de contato síncrono/assíncrono) é plenamente compatível com o regime compartilhado e, na verdade, é o que o concretiza quando há residências em locais diversos. O documento-base é explícito: o fato de os genitores residirem em cidades diferentes não constitui óbice à guarda compartilhada; ela permanece a regra, cabendo ao julgador modular a convivência e os encargos parentais a partir das contingências do caso.
Essa compatibilidade decorre de uma distinção conceitual importante: guarda compartilhada não equivale a guarda alternada. A primeira tem como eixo a tomada conjunta de decisões e a referência de lar, ao passo que a segunda supõe alternância de residências e períodos exclusivos — arranjo que, segundo a literatura didática selecionada no material, tende a gerar instabilidades psicológicas em razão da constante “troca de casas”. Assim, o desenho preferível, nos termos do documento, é manter um lar referencial e coparentalidade ativa, inclusive à distância.
4. JURISPRUDÊNCIA DO STJ: REGRA DA GUARDA COMPARTILHADA E SUPERAÇÃO DO FATOR DISTÂNCIA
A jurisprudência superior consolidou duas proposições centrais: (a) a guarda compartilhada é o modelo-regra quando ambos os genitores estão aptos; e (b) a distância geográfica, inclusive interestadual ou internacional, não impede a adoção desse regime, desde que respeitado o melhor interesse da criança e estabelecido plano parental concreto. No REsp 1.878.041/SP (Informativo 698), a Terceira Turma do STJ assentou, de modo direto, que domicílios em cidades diversas não constituem impedimento à guarda compartilhada.
O documento também registra a obrigatoriedade do regime compartilhado — não apenas preferência — por força da linha normativa indicada, reforçando que as únicas exceções legais são não querer exercer a guarda ou inaptidão para o poder familiar. A residência em outra cidade, estado ou país não figura entre as exceções, o que confirma a premissa de compatibilidade.
Por sua vez, em cenário de deslocamento internacional do lar de referência, a orientação segue a mesma lógica de primazia do interesse da criança e de viabilidade prática do convívio. O material alude a caso paradigmático (mudança do Brasil para a Holanda), em que o STJ validou o plano parental com convivência estruturada em férias e contatos remotos amplos, preservando a guarda compartilhada e a coparticipação decisória do genitor residente no Brasil. A ratio decidendi é inequívoca: compartilhamento de responsabilidades pode ocorrer independentemente da distância, desde que bem planejado.
5. TECNOLOGIA COMO INFRAESTRUTURA DA COPARENTALIDADE À DISTÂNCIA
A efetividade do regime, quando há residências em locais distintos, depende de comunicação contínua e de mecanismos de coordenação. O documento-base enfatiza que o avanço tecnológico permite contato virtual instantâneo, reuniões escolares on-line, acompanhamento remoto de desempenho acadêmico e videoconferências regulares, de modo que a presença física cotidiana deixa de ser requisito para participação parental qualificada.
A doutrina citada — Paulo Lôbo — é expressa ao valorar a comunicação fluente e permanente (sem rigidez de horários) como mais útil para a formação afetiva e cognitiva do que visitas episódicas. A coparentalidade digitalizada, quando estruturada com agenda, canais oficiais e protocolos de informação (saúde, escola, atividades), reduz o atrito e reforça a previsibilidade das rotinas.
6. PLANO PARENTAL: PARÂMETROS OBJETIVOS PARA CASOS COM DOMICÍLIOS DISTINTOS
A harmonização prática do regime requer parâmetros minimamente objetivos, sem engessar a dinâmica familiar. Com base no documento anexado, destacam-se diretrizes que o julgador pode explicitar:
1. Cidade de referência (lar-base): define-se a localidade que melhor atende ao interesse do menor (rede escolar, saúde, apoio familiar, estabilidade). A referência não elimina a guarda compartilhada; apenas ancora a rotina.
2. Calendário de convivência: fins de semana (inclusive alargados), férias fracionadas, rodízio em feriados e datas simbólicas; previsões claras sobre busca e entrega; e margem para adequações contextuais (provas escolares, viagens). (Síntese estruturada a partir das recomendações práticas do documento.)
3. Canais e frequência de comunicação: vídeochamadas e mensagens regulares; participação remota em reuniões pedagógicas e consultas; compartilhamento de documentos (boletins, atestados, relatórios) em meio eletrônico.
4. Tomada conjunta de decisões: temas de alta relevância (mudança de escola, tratamentos médicos, deslocamentos internacionais) submetem-se a consulta prévia e registro do consenso; em urgência, o genitor presente age e informa imediatamente, preservando a solidariedade parental (coerente com a corresponsabilidade decisória anotada no material).
5. Mecanismos de solução de impasses: cláusula de mediação ou orientação técnico-profissional (psicologia/equipe interprofissional), que o próprio documento remete como apoio na divisão equilibrada do tempo e na atribuição de funções.
7. RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS: “AUTORIDADE E COMPANHIA” COMO FILTRO NORMATIVO
Tema frequentemente confundido, mas autônomo perante a guarda, é a responsabilidade civil dos pais pelos atos ilícitos de filhos menores. O material reforça a leitura segundo a qual a imputação objetiva (Código Civil, art. 932, I) depende da presença cumulativa de autoridade e companhia — isto é, direção cotidiana e vigilância efetiva.
Daí o precedente destacado: quando um genitor reside em outra cidade e não exerce autoridade de fato sobre o menor (a direção prática da vida diária), não responde pelos danos decorrentes do ato do filho, ainda que mantenha o poder familiar. Essa distinção conceitual (autoridade ≠ poder familiar) é explicitada e se tornou baliza jurisprudencial relevante.
O recado sistemático é claro: guarda compartilhada não implica, automaticamente, responsabilidade civil; é necessário verificar se, no caso concreto, o genitor detinha autoridade e companhia em termos fáticos suficientes para prevenir e corrigir a conduta danosa.
8. GUARDA COMPARTILHADA TRANSNACIONAL: COORDENAÇÃO, INTERESSE SUPERIOR E EXECUTABILIDADE
Nos cenários de transnacionalidade (pais em países distintos), reforçam-se os três pilares já inferidos do documento: (i) interesse superior da criança como critério de eleição do lar referencial; (ii) plano parental minucioso, com convivência significativa em férias e contatos remotos amplos; e (iii) executabilidade das cláusulas (custos, logística, documentação e prazos). O acervo aponta decisão paradigmática que validou a alteração do lar de referência para o exterior, preservando a guarda compartilhada porque o arranjo maximizava oportunidades educacionais e sociais sem suprimir a presença paterna — vide a previsão de retornos periódicos e uso irrestrito de videochamadas.
A mensagem jurisprudencial, portanto, não é territorial: é funcional. A pergunta não é “onde moram os pais?”, mas “como se assegura, na prática, a coparentalidade responsável e o vínculo afetivo?”. O documento confirma que a distância não é impeditivo quando há projeto parental confiável e comunicação continuada.
9. CONCLUSÕES INTEGRATIVAS
A conjugação norma–jurisprudência–prática delineada no material permite afirmar, com segurança, que:(a) a guarda compartilhada é regra quando ambos os genitores estão aptos;(b) a cidade de referência deve ser escolhida pelo melhor interesse da criança;(c) residências em cidades distintas não afastam, por si, o regime; e(d) a tecnologia é hoje infraestrutura indispensável da coparentalidade à distância.
Nos conflitos que tangenciam responsabilidade civil dos pais, a chave interpretativa permanece a exigência de autoridade e companhia em sentido fático; sem esses elementos, não há imputação objetiva — distinção que evita confundir poder familiar (titularidade) com autoridade parental efetiva (direção e vigilância).
Em síntese, o desenho contemporâneo da guarda compartilhada não é territorial, mas relacional e funcional: planejamento, comunicação, previsibilidade e cooperação são os eixos que mantêm íntegra a presença de ambos os pais, independentemente das distâncias.
10. REFERÊNCIAS
STJ, 3ª Turma, REsp 1.878.041/SP (Informativo 698) – guarda compartilhada como regra; distância geográfica não é óbice.
Critério legal da cidade-base na guarda compartilhada – melhor interesse como vetor da residência de referência.
Tecnologia e coparentalidade – viabilidade de corresponsabilidade à distância.
Doutrina de Paulo Lôbo – comunicação fluida e permanente como fator formativo superior a visitas episódicas.
Responsabilidade civil e “autoridade/companhia” – distinção entre poder familiar e autoridade de fato; REsp 1.232.011/SC.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
Aguilar, Juan Carlos. Coparentalidade à Distância e o Princípio do Melhor Interesse da Criança: A Guarda Compartilhada entre Genitores com Domicílios em Cidades Distintas. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/coparentalidade-a-distancia-e-o-principio-do-melhor-interesse-da-crianca-a-guarda-compartilhada-entre-genitores-com-domicilios-em-cidades-distintas/. Acesso em: 13/12/2025.
