Administração Pública dialógica e a ressignificação do princípio da supremacia do interesse Público sobre o Privado

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30/10/2023

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Fernando Gilberto Rodrigues e Silva

Curriculo do autor: Especialista em Ciências Penais pelo Centro Universitário Newton Paiva e Instituto Universitário Brasileiro (IUNIB), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros/MG (UNIMONTES). Analista do MPU/Direito.

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Resumo

O presente capítulo pretende fazer uma breve reflexão sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no contexto da Administração Pública Dialógica, apresentando o embate doutrinário acerca do aludido princípio e propondo as bases para a sua ressignificação.

Palavras-Chave

Supremacia do Interesse Público. Administração Pública Dialógica

Abstract

This chapter aims to provide a brief reflection on the principle of the supremacy of public interest over private interest within the context of Dialogic Public Administration, presenting the doctrinal debate surrounding this principle and proposing foundations for its redefinition.

Keywords

Supremacy of Public Interest. Dialogic Public Administration

1. INTRODUÇÃO

A doutrina administrativista tradicional, capitaneada por autores como Celso Antônio Bandeira de Melo, Hely Lopes Meirelles e Maria Sylvia Zanella de Pietro, sustenta que, ainda que não previsto expressamente em nenhum texto legal, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é princípio implícito do ordenamento jurídico e, junto com o princípio da indisponibilidade do interesse público, constitui a base do regime jurídico-administrativo.

Como consectário lógico dessa concepção, extrai-se a existência de uma prevalência apriorística e abstrata do interesse público em relação ao interesse dos administrados, escanteando a possibilidade de análise casuística dos interesses envolvidos.

Por outro lado, autores contemporâneos, como Gustavo Binembojm, têm questionado esse entendimento, na medida em que defendem a incompatibilidade do princípio da supremacia do interesse público, pelo menos na sua visão tradicional, com a Constituição Federal de 1988, ensejando um acirrado debate na doutrina administrativista.

Conforme adverte parcela da doutrina, as mutações ocorridas no Direito Administrativo, provocadas pelas teorias da filtragem constitucional, releitura da legitimidade democrática da Administração, princípio da juridicidade e princípio da consensualidade, têm provocado reflexões acerca de antigos dogmas.

Nesse contexto de mudanças, o presente capítulo tem a pretensão de discutir se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado deve ser reformulado e em quais bases.

2. PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO

Para a doutrina tradicional, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é pressuposto lógico para a estabilidade da sociedade e respalda as prerrogativas da Administração Pública, como, por exemplo, as cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, a desapropriação e o atributo de imperatividade do ato administrativo.

Segundo Di Pietro, o princípio está na base de praticamente todas as funções do Estado e de todos os ramos do direito público. Está presente nos quatro tipos de funções administrativas: serviço público, fomento, polícia administrativa e intervenção (DI PIETRO, 2020, p.129).

Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse público são as pedras de toque do regime jurídico-administrativo. Para o autor, “o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 59).

O conceito de supremacia do interesse público remete à ideia de priorização dos interesses do Estado, mas também identifica-se com a ideia de bem comum, isto é, com o interesse da coletividade como um todo.

Importante destacar que há muito tempo consolidou-se a compreensão de que o interesse público tutelado é o primário, ou seja, aquele que sintetiza a razão de ser do Estado e que representa a promoção de valores como a justiça, a segurança e o bem-estar social3. Faz-se, portanto, um recorte claro entre os interesses de toda a sociedade e o interesse público secundário, representado pelos interesses patrimoniais da Administração Pública.

Contudo, essa distinção parece não ser suficiente para arrefecer o embate doutrinário e delimitar o alcance do princípio diante da nova realidade trazida pela Constituição Federal de 1988.

3. ADMINISTRAÇÃO DIALÓGICA E PRINCÍPIO DA CONSENSUALIDADE

O princípio da juridicidade, que permitiu a superação da concepção do princípio da legalidade como vinculação positiva do administrador à lei e consagrou a vinculação direta à Constituição e a todo ordenamento jurídico; a elasticidade do Direito Administrativo (diálogo com outros ramos do Direito); a relativização de formalidades e ênfase no resultado; a releitura da legitimidade democrática da Administração, com a previsão de instrumentos de participação dos cidadãos na tomada de decisões administrativas, e a processualização e contratualização da atividade administrativa são fundamentos e pilares teóricos da Administração Pública Dialógica.

A Administração Dialógica é uma tendência no direito administrativo moderno, fundada no princípio da consensualidade, caracterizando-se como um modelo de atuação estatal em que há uma maior aproximação entre a Administração e os particulares.

O diálogo entre Administração e administrado é concretizado por meio de instrumentos como a realização de audiências públicas para colher as opiniões da sociedade civil sobre determinado tema e os conselhos consultivos. Há, desse modo, uma legitimação efetiva da atuação administrativa, já que se faculta ao cidadão a possibilidade de influenciar na tomada de decisões que afetem suas esferas de interesse.

Esta forma de atuação se opõe à chamada Administração Monológica, em que os administrados não contribuem para a construção de soluções jurídicas para situações de seus interesse, atuando como simples observadores na formação normativa. Predomina, assim, a imperatividade da atuação estatal, resultando em decisões unilaterais, nas quais inexiste ingerência dos destinatários da norma em sua elaboração.

Nesse cenário, destaca-se o princípio da consensualidade, que revela uma Administração Pública mais democrática e despida de seus tradicionais atributos de imperatividade, coercitividade e verticalidade.

O citado princípio é justamente o responsável pela abertura procedimental e por conferir maior legitimidade democrática aos processos decisórios, promovendo, ainda, ganhos de eficiência, na medida em que são reduzidos os custos de implementação da decisão.

Apesar da falta de previsão expressa no texto constitucional, o princípio da consensualidade encontra fundamento na cláusula do Estado Democrático de Direito, inserido no artigo 1º da Constituição, assim como no artigo 37, § 3º, da CF/88.

Em uma outra perspectiva, o princípio relaciona-se à possibilidade de celebração de acordos entre a Administração e o administrado, caso tal medida atenda ao interesse público primário.

Conforme lecionam Sérgio Guerra e Juliana Bonacorsi de Palma, “a Lei nº 13.655/18, que altera a LINDB, representa um novo marco à consensualidade administrativa. Seu art. 26 consiste em efetivo permissivo genérico para que a Administração Pública celebre acordos. Ao criar uma nova figura consensual, a Lei nº 13.655/18 define um novo regime jurídico à consensualidade administrativa, cujas principais características são: propiciar segurança jurídica à celebração de acordos administrativos, a partir do endereçamento de dúvidas jurídicas e distorções em sua prática, e garantir compromissos mais eficientes à sociedade como um todo, e não apenas aos celebrantes, satisfazendo interesses gerais” (GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi, 2018).

Os instrumentos de consensualidade nem sempre estiveram presentes na Administração Pública, sobretudo os chamados acordos substitutivos, sendo a Administração regida pela lógica binária sancionar/não sancionar. A possibilidade de realização desses acordos estava fora do alcance dos administradores e eram vistos como incompatíveis com o interesse público.

Com a evolução dos tempos, percebeu-se que as prerrogativas públicas são instrumentais e que o exercício negociado da atuação administrativa, em muitas situações, representa maior efetividade na consecução do interesse público.

Constatou-se, portanto, que a atuação imperativa e unilateral não era sinônimo de tutela efetiva do interesse coletivo e que a solução negociada não representa necessariamente uma violação dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.

4. RESSIGNIFICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO

Ressalta-se, inicialmente, que o termo interesse público é fluido e variável no tempo e no espaço, caracterizando-se como um conceito jurídico indeterminado.

Essa é a primeira razão para as críticas ao conceito tradicional de interesse público, tendo em vista que a supremacia do interesse público sobre o privado se tornou argumento retórico para a maioria das teses defensivas do Estado.

A ausência de precisão conceitual traz enorme prejuízo ao administrado, já que condutas arbitrárias e abusivas do Poder Público são legitimadas pelo referido princípio sem qualquer contextualização e ponderação dos interesses envolvidos.

A hierarquização prévia de princípios é contrária à ideia proposta por Alexy de que princípios são mandados de otimização a serem concretizados na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto, sem deixar que esse procedimento signifique a negação de um deles.

Gustavo Binenbojm assevera que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é incompatível com a CF/88 e que não possui estrutura normativa de princípio, já que não admite ponderações com outros valores constitucionais. Destaca, ainda, que interesses públicos e interesses privados não são opostos, mas pressupõem-se reciprocamente5.

A Constituição Federal de 1988 não deixa dúvidas de que o objetivo final do Estado é a realização de direitos fundamentais, razão por que é possível afirmar que o núcleo do Direito Administrativo reside na consecução de tais direitos e não na visão tradicional de interesse público.

Não se pretende desconsiderar a importância da ideia de supremacia do interesse público na teorização do regime jurídico-administrativo, mas flexibilizar o seu alcance, relativizando o caráter absoluto a ele emprestado pela doutrina tradicional. Na verdade, o que se pretende é ressignificar o seu conceito e aplicação.

5. CONCLUSÃO

Ao que parece, não há a negação da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. A divergência doutrinária cinge-se à sua extensão e ao seu modo de aplicação.

O presente trabalho não propõe a vedação da utilização do princípio da supermacia do interesse público para a solução de conflitos, mas somente a vedação do seu uso indiscriminado, como uma espécie de álibi da Administração. A invocação do princípio deve ser acompanhada de ônus argumentativo por parte do Poder Público a fim de comprovar a existência de interesse coletivo e a sua prevalência no caso concreto.

Está claro que, para assegurar a estabilidade da ordem social e permitir ao Estado a realização de seus fins, é necessário conferir à Administração Pública prerrogativas, que estão previstas em regras infraconstitucionais e no próprio texto constitucional.

Nesse sentido, Daniel Sarmento adverte que: “a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir a anarquia e ao caos geral, inviabilizando qualquer possibilidade de regulação coativa da vida humana em comum” (SARMENTO, Daniel, 2005).

Contudo, essas prerrogativas não podem violar direitos fundamentais do administrado, notadamente porque tais direitos servem justamente para frear o arbítrio estatal. A nova ordem constitucional, orientada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser o farol da atuação administrativa.

De igual forma, devem ser efetivados e ampliados os instrumentos de participação do administrado nas decisões, de modo a concretizar a ideia de Estado Democrático de Direito. Rompe-se, portanto, com a lógica imperativa e meramente sancionadora da Administração, abrindo-se o leque para o atingimento do interesse público primário por meio de outros mecanismos, como os acordos substitutivos, consagrados pela onda de consensualidade na Administração Pública.

A solução da controvérsia pode estar na busca do equilíbrio entre os interesses públicos primários e interesses privados, sendo eventuais conflitos resolvidos com a técnica de ponderação de interesses, com observância do postulado da proporcionalidade, afastando-se qualquer hierarquização abstrata e prévia de princípios.

REFERÊNCIAS

_____DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 129.

_____BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009, p.59.

_____BARROSO, Luís Roberto. Prefácio: O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a definição da supremacia do interesse público. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. xiii.

_____GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Art. 26 da LINDB: novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. RDA, ed. especial LINDB, nov. 2018. p. 135-169.

_____FISCHGOLD, Bruno Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/230028/o-principio-da-supremacia-do-interesse-publico-sobre-o-interesse-privado-no-direito-administrativo-brasileiro> Acesso em 27 out. 2023.

_____SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados. In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados. Desconstruindo a supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 23-117.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Fernando Gilberto Rodrigues e. Administração Pública dialógica e a ressignificação do princípio da supremacia do interesse Público sobre o Privado. Revista Di Fatto, Subcategoria Direito, Escrita científica, Geografia, Sustentabilidade, Tecnologia da Informação, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2023, n. 1, aprovado e publicado em 10/11/2023. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/administracao-publica-dialogica-e-a-ressignificacao-do-principio-da-supremacia-do-interesse-publico-sobre-o-privado/. Acesso em: 24/04/2025.