A urgência do rompimento do pacto narcísico da branquitude no sistema de justiça criminal brasileiro
Autores
Resumo
O presente artigo analisa criticamente a atuação da branquitude no sistema de justiça criminal brasileiro, examinando como os privilégios estruturais desse grupo racial influenciam práticas institucionais, políticas punitivas e dinâmicas de controle social. A partir de dados oficiais, referenciais teóricos da criminologia crítica, estudos sobre racialidade e investigações sobre racismo estrutural, busca-se demonstrar que há um pacto narcísico de proteção da branquitude que atravessa o processo penal, naturaliza a seletividade racial e invisibiliza a violência estatal dirigida à população negra. Defende-se que romper esse pacto demanda reconhecimento de privilégios, responsabilização institucional e adoção de práticas antirracistas, sobretudo por parte dos atores do sistema de justiça criminal.
Palavras-ChaveBranquitude. Seletividade penal. Sistema de justiça criminal. Racismo.
Abstract
This article critically examines the role of whiteness within the Brazilian criminal justice system, analyzing how the structural privileges associated with this racial group shape institutional practices, punitive policies, and mechanisms of social control. Drawing on official data, theoretical frameworks from critical criminology, studies on raciality, and research on structural racism, the article demonstrates the existence of a narcissistic pact that protects whiteness throughout the criminal process, naturalizes racial selectivity, and renders state violence against Black populations invisible. It argues that breaking this pact requires acknowledging privilege, ensuring institutional accountability, and adopting antiracist practices, particularly by the actors who operate within the criminal justice system.
KeywordsWhiteness. Penal selectivity. Criminal justice system. Racism.
1. Introdução
A estrutura racial do sistema de justiça criminal brasileiro revela, de forma particularmente contundente, a permanência histórica de desigualdades que se enraizaram desde o período colonial e seguem operando sob roupagens contemporâneas. Enquanto a magistratura, o Ministério Público, as forças policiais e os demais órgãos que compõem a engrenagem do sistema penal permanecem marcadamente brancos, as prisões brasileiras são majoritariamente ocupadas por pessoas negras. Essa assimetria numérica não é mero reflexo estatístico: ela expressa um projeto racializado de poder, sustentado pela seletividade penal, pela estigmatização de corpos negros e por práticas institucionais que reforçam desigualdades.
A leitura desse fenômeno exige deslocar o olhar, abandonando a confortável narrativa de neutralidade do sistema penal para reconhecer que a distribuição racial de poder e punição não é resultado do acaso, tampouco da mera reprodução inconsciente de práticas históricas. Ela decorre de escolhas institucionais, culturais e políticas, muitas vezes legitimadas pelo mito da imparcialidade e pela crença de que o direito seria um território neutro. Ao contrário, o direito — e particularmente o processo penal — é profundamente atravessado por racionalidades racializadas que orientam decisões, interpretações, políticas públicas e formas de controle social.
Nesse cenário, torna-se imprescindível compreender não apenas os efeitos do racismo sobre a população negra, mas também o papel desempenhado pela branquitude na manutenção dessas estruturas. A branquitude, muitas vezes tratada como não-raça ou como identidade neutra, ocupa o centro da produção de normas, decisões e narrativas, mas raramente é objeto de questionamento. Essa invisibilidade estratégica permite que seus privilégios se mantenham intactos, ao mesmo tempo em que obscurece os mecanismos pelos quais se reforça a desigualdade racial.
É exatamente nesse ponto que o conceito de pacto narcísico da branquitude, formulado por Maria Aparecida Bento, se torna fundamental. Ele revela a existência de um acordo tácito de proteção mútua entre pessoas brancas, um acordo que opera silenciosamente, por meio de omissões, silenciamentos, justificações e naturalizações e que se expressa, de maneira quase didática, no funcionamento cotidiano do sistema de justiça criminal. Reconhecer esse pacto é condição para desestabilizar a engrenagem que sustenta o encarceramento em massa da população negra e a violência estatal legitimada sob o discurso da defesa social.
2. A necessidade de pautar a branquitude no debate sobre justiça criminal
Durante décadas, as análises sobre desigualdade racial concentraram-se nos impactos do racismo sobre pessoas negras, seus danos, estigmas e exclusões. É um movimento necessário, mas insuficiente se não incorporarmos o outro polo dessa relação: a branquitude enquanto estrutura que organiza privilégios, velando e naturalizando seu próprio lugar de poder. No sistema de justiça criminal, essa naturalização assume contornos ainda mais nítidos, pois opera sob o disfarce da técnica jurídica, da imparcialidade e da racionalidade supostamente universal.
A ausência de debate sobre a branquitude não é ingênua. Trata-se de estratégia central de funcionamento de um sistema que opera mediante a racialização do suspeito — quase sempre identificado como jovem negro, morador de periferia, alocado nos territórios do “perigo”. Enquanto isso, os agentes institucionais responsáveis por definir quem é suspeito, quem é perigoso, quem merece ser punido e quem terá sua liberdade preservada, são majoritariamente brancos e ocupam posições sociais muito distantes daquelas dos sujeitos alvejados pelo sistema penal.
Esse distanciamento social e racial influencia percepções sobre perigo, credibilidade e violência. Corpos negros são interpretados como potenciais autores de delitos, enquanto corpos brancos são tomados como representantes da normalidade. A branquitude, portanto, não age apenas como categoria descritiva, mas como parâmetro normativo que define expectativas e molda decisões. É esse parâmetro que sustenta a seletividade penal, produz abordagens policiais sem fundamento, valida versões policiais contraditórias e tende a acreditar mais em agentes do Estado do que em vítimas negras de violência.
Assim, pautar a branquitude não é um exercício acadêmico abstrato: é condição para compreender por que a punição recai seletivamente sobre corpos negros e por que a violência estatal, quando dirigida a esses corpos, é frequentemente invisibilizada ou naturalizada.
3. Branquitude como estrutura de poder e o mito da neutralidade jurídica
Ao contrário do que durante muito tempo sustentou o discurso jurídico mainstream, a branquitude não é ausência de raça, nem atributo individual. Ela constitui um lugar estrutural de poder, legitimado historicamente, que molda instituições, práticas e racionalidades. Lia Vainer Schucman e Ruth Frankenberg demonstram que a branquitude opera como ponto de vista que se pretende universal, como posição de privilégio não problematizada e como norma implícita que organiza percepções de legitimidade.
No universo jurídico, essa dinâmica é particularmente evidente. A imagem idealizada do juiz imparcial, do promotor técnico ou do legislador racional foi construída sobre o corpo e o imaginário da branquitude. Esse modelo de sujeito de direito — educado, instruído, pertencente às elites econômicas e raciais — é tomado como referência para definir padrões de comportamento, expectativas sociais e noções de razoabilidade. O resultado é que tais padrões passam a operar como critérios aparentemente neutros, mas profundamente racializados.
A crença na neutralidade do direito funciona como mecanismo de blindagem contra críticas raciais. Decisões marcadas por estereótipos ou preconceitos são justificadas com base na técnica; prisões preventivas sem fundamentação concreta são naturalizadas como prudência; e discursos que associam crime à pobreza ou à juventude negra são tratados como mera descrição objetiva da realidade. Assim, a branquitude se protege, racionaliza-se e reproduz sua autoridade sem ser nomeada.
A suposta imparcialidade jurídica, portanto, é construída dentro de uma matriz racial específica. Ignorar isso significa permitir que a estrutura permaneça operando silenciosamente, legitimada por um discurso técnico que esconde suas origens coloniais e escravocratas.
4. O pacto narcísico da branquitude e sua materialização no sistema de justiça criminal
Maria Aparecida Bento descreve o pacto narcísico como uma lógica de autoproteção racial entre pessoas brancas, uma dinâmica coletiva que impede a nomeação do racismo, protege privilégios e silencia conflitos internos sobre desigualdade racial. No sistema de justiça criminal, esse pacto ganha contornos ainda mais fortes porque atravessa instituições que detêm o monopólio da força, da acusação e da punição.
Nas polícias, ele se manifesta na repetição de abordagens racialmente orientadas, frequentemente justificadas com base em suposta “fundada suspeita”. Nas delegacias, aparece na homologação automática de flagrantes com vícios graves. No Ministério Público, expressa-se na aceitação quase irrefletida de versões policiais sobre confrontos, mortes ou resistências inexistentes. No Judiciário, revela-se na dificuldade de reconhecer tortura, na manutenção de prisões preventivas sem elementos concretos e na utilização de estereótipos sobre juventude negra para fundamentar decisões.
Um dos efeitos mais perversos desse pacto é a capacidade de diluir responsabilidades. Policiais justificam abusos alegando cumprimento de ordens; promotores, ao oferecer denúncia, afirmam confiar na integridade policial; juízes, ao homologar prisões, alegam ausência de elementos para duvidar dos agentes do Estado. Cada ator transfere ao outro a responsabilidade pelo controle de legalidade, resultando em uma engrenagem que protege a branquitude institucional e, ao mesmo tempo, sacrifica pessoas negras.
Essa dinâmica contribui para naturalizar a violência estatal. Mortes decorrentes de intervenção policial são justificadas pela narrativa de confronto; prisões ilegais são convertidas em culpa presumida; falhas processuais são minimizadas diante da “periculosidade” atribuída a determinados corpos. Tudo funciona como engrenagem que reafirma a posição da branquitude e mantém a população negra sob vigilância e controle.
5. A materialidade do racismo na punição: encarceramento, violência e seletividade
O pacto narcísico não opera apenas no plano simbólico; ele produz efeitos concretos, medidos em corpos, vidas e territórios. O encarceramento em massa da população negra é uma de suas expressões mais evidentes. Dados recentes do INFOPEN revelam que mais de dois terços das pessoas privadas de liberdade no Brasil são negras. Esse número, por si só, já indica uma seletividade evidente, mas torna-se ainda mais dramático quando observamos que grande parte dessas prisões decorre de abordagens sem justificativa ou da aplicação de tipos penais cuja interpretação é profundamente subjetiva, como o tráfico de drogas.
A violência policial também evidencia a racialização da punição. Ano após ano, a maioria das mortes decorrentes de intervenção policial recai sobre pessoas negras. Esse dado não pode ser desvinculado do pacto narcísico: a violência direcionada à população negra é sistematicamente legitimada, enquanto a violência dirigida a pessoas brancas é prontamente investigada, ganha repercussão e mobiliza respostas institucionais.
Essa assimetria revela que a seletividade penal não é falha do sistema, mas parte integrante de seu funcionamento. A punição é racializada porque o próprio sistema penal foi historicamente construído para gerir, controlar e neutralizar determinados segmentos da população — especialmente negros e pobres.
6. Rupturas possíveis e caminhos antirracistas
Romper o pacto narcísico exige reconhecer a branquitude como estrutura que organiza práticas e decisões institucionais. Não basta conscientização individual; é preciso transformar protocolos, políticas, currículos e estruturas de decisão. A ampliação da representatividade racial nos espaços de poder jurídico é passo importante, embora insuficiente se não acompanhada de formação antirracista contínua, mecanismos de controle externo e revisão institucional séria sobre as condições que permitem que a violência estatal se reproduza.
A Defensoria Pública ocupa papel central nesse processo, pois seu compromisso institucional com grupos vulnerabilizados a coloca como voz de contraponto diante das práticas seletivas do sistema penal. Ao problematizar narrativas oficiais, denunciar abusos, tensionar decisões e induzir políticas públicas, a instituição se torna espaço privilegiado para o enfrentamento da branquitude estrutural.
Mais do que realizar defesas individuais, a Defensoria é chamada a promover rupturas coletivas. Sua atuação crítica é capaz de desestabilizar as engrenagens que sustentam a seletividade penal e, ao fazê-lo, evidencia que um processo penal verdadeiramente democrático não pode desconsiderar a dimensão racial das práticas jurídicas.
7. Conclusão
Enfrentar o pacto narcísico da branquitude no sistema de justiça criminal brasileiro é tarefa urgente e profundamente política. Significa deslocar o olhar para os mecanismos de poder que silenciam privilégios, naturalizam desigualdades e legitimam a violência estatal. Significa nomear aquilo que historicamente foi ocultado: a centralidade da branquitude na organização do sistema penal.
Romper esse pacto não será possível sem desconforto, sem revisão de privilégios, sem responsabilização institucional e sem a adoção de práticas antirracistas incisivas. O sistema de justiça só se tornará verdadeiramente comprometido com a dignidade humana quando reconhecer que a desigualdade racial não é resíduo do passado, mas produto direto de suas escolhas cotidianas.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
SENA, Ana Beatriz Silva. (ORCID 0009-0001-4930-5310) . A urgência do rompimento do pacto narcísico da branquitude no sistema de justiça criminal brasileiro. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-urgencia-do-rompimento-do-pacto-narcisico-da-branquitude-no-sistema-de-justica-criminal-brasileiro/. Acesso em: 13/12/2025.
