A Sobrevivência do Criminoso Nato: A atualidade da Teoria Lombrosiana sob Novas Roupagens no Sistema Penal
Autores
Resumo
O presente trabalho analisa como a teoria do “criminoso nato”, desenvolvida por Cesare Lombroso no século XIX, continua influenciando o sistema penal brasileiro, mesmo que sob novas roupagens. Apesar de ser considerada superada academicamente, a lógica estigmatizante da teoria lombrosiana ressurge no tratamento penal conferido a indivíduos negros, pobres e periféricos, através da seletividade estrutural do sistema de justiça criminal. O artigo evidencia que a criminalização da pobreza, o papel da mídia, o conceito do inimigo penal e a atuação institucional de polícia, Ministério Público e Judiciário contribuem para a perpetuação de práticas discriminatórias. Ao final, são propostas alternativas críticas e humanizadas, como a justiça restaurativa e a reforma estrutural do sistema penal.
Palavras-ChaveCriminoso nato; seletividade penal; criminalização da pobreza; teoria lombrosiana; justiça criminal; controle social.
Abstract
This study examines how Cesare Lombroso's 19th-century theory of the “born criminal” continues to influence the Brazilian criminal justice system under new forms. Although academically outdated, Lombrosian stigmatizing logic reappears in the penal treatment given to Black, poor, and peripheral individuals through the structural selectivity of the criminal justice system. The article highlights how poverty criminalization, media influence, the concept of the penal enemy, and the institutional roles of the police, prosecution, and judiciary contribute to the persistence of discriminatory practices. Finally, the study proposes critical and humanized alternatives, such as restorative justice and structural penal reform.
KeywordsBorn criminal; penal selectivity; poverty criminalization; Lombrosian theory; criminal justice; social control.
1. Introdução
A criminologia moderna, ainda que tenha caminhado no sentido de superar os postulados biologizantes do positivismo penal do século XIX, convive paradoxalmente com suas sombras ideológicas no funcionamento concreto do sistema de justiça criminal. A presente pesquisa propõe-se a demonstrar que a teoria do “criminoso nato”, elaborada por Cesare Lombroso, frequentemente apresentada como superada e desacreditada nos meios acadêmicos, persiste no imaginário penal brasileiro, embora sob formas discursivas mais sofisticadas, travestidas de tecnicidade jurídica, racionalidade penal e neutralidade institucional. Como observam Fernandes et al. (2019), a estigmatização de indivíduos considerados “fora” do padrão social persiste no Brasil, mesmo sem o conhecimento explícito da teoria do “criminoso nato”:
“Foi possível fazer um paralelo do que Lombroso pregava, com a atitude da sociedade brasileira hoje em dia, pois muitas pessoas, mesmo sem saber quem foi o pesquisador italiano e o que é a ‘‘teoria do criminoso nato’’, estigmatizam os indivíduos considerados ‘‘fora’’ do padrão social, algo que não difere das ideias preconceituosas de Lombroso há 140 anos.”(FERNANDES, 2019)
O objetivo central deste artigo é evidenciar que, no Brasil, a persecução penal não é apenas seletiva, mas estruturalmente enviesada. Opera sob uma lógica de estigmatização de determinados corpos, territórios e classes sociais, reproduzindo estereótipos de periculosidade atrelados à pobreza, à juventude periférica e à negritude. Assim, ainda que a figura do “criminoso nato” não seja mais descrita com base em ângulos cranianos ou sinais fisiognômicos, o sistema penal continua a escolher, com precisão quase científica, quem deve ser rotulado, investigado, punido e encarcerado, e quem permanece à margem do direito penal mesmo diante de condutas flagrantemente lesivas à ordem econômica, à administração pública ou à coletividade. Tanferri e Giacoia (2019) destacam que os fatores estigmatizantes estão profundamente enraizados na sociedade e nas normas institucionais, afetando diretamente a marginalização dos sujeitos:
“Conclui-se, após a análise do estudo, que os fatores estigmatizantes estão enraizados na sociedade, nas normas e na atuação do Estado, assim, os efeitos da rotulação implicam diretamente na marginalização do sujeito e, consequentemente, refletem no perfil da população carcerária brasileira.” (TANFERRI, GIACOIA, 2019)
Nesse cenário, torna-se evidente que o conceito prático de crime no Brasil não é determinado exclusivamente pelo texto legal, mas sofre a interferência direta de fatores extrajurídicos como a origem geográfica, a cor da pele e o poder aquisitivo do agente. Crimes economicamente danosos, praticados por indivíduos inseridos em esferas privilegiadas da sociedade, recebem frequentemente tratamentos brandos, pactuados sob o discurso da tecnicalidade jurídica. Em contrapartida, delitos patrimoniais de pequeno vulto, quando cometidos por sujeitos socialmente vulneráveis, são objeto de intensa repressão penal, muitas vezes com desproporcional rigor e violência estatal. Lombroso (1895) já sugeria a necessidade de isolar os indivíduos considerados criminosos para evitar a “contaminação” dos inocentes:
“Acima de tudo, retire-os daqueles campos em que sua atividade criminosa mais se desenvolveria, especialmente porque eles infectariam os inocentes, como maçãs podres afetam os bons e, portanto, particularmente, mantê-los longe das maiores cidades e mesmo das cidades grandes, coloque-os para trabalhar em fazendas isoladas ou como grumetes no mar.”(LOMBROSO, 1895)
Com base em revisão bibliográfica crítica e fundamentada na criminologia crítica e na sociologia do desvio, este trabalho pretende analisar como os fundamentos do positivismo lombrosiano sobrevivem no sistema penal brasileiro, não mais como dogma científico, mas como prática política de controle social. Ao final, espera-se contribuir para a compreensão de que o direito penal, longe de ser um instrumento neutro de defesa da legalidade, opera como um sofisticado mecanismo de reprodução de desigualdades históricas, ressignificando, com roupagens modernas, o velho paradigma do criminoso por natureza.
2. A Teoria Lombrosiana e o Criminoso Nato
A criminologia do século XIX, marcada pela ascensão do positivismo, inaugura uma nova abordagem sobre o crime e seu autor. A figura do “criminoso nato”, formulada por Cesare Lombroso, representa um dos marcos mais controversos desse pensamento, pois buscava explicar a delinquência a partir de fundamentos biológicos e físicos. Influenciado pelas teorias evolucionistas de Darwin e por tendências cientificistas de sua época, Lombroso sustentava que certos indivíduos nasciam com predisposições naturais à criminalidade, reveladas por meio de sinais corporais e traços anatômicos supostamente identificáveis. Entre esses traços, mencionava-se com frequência a assimetria craniana, deformações na mandíbula, anomalias nos dentes e até mesmo o formato das orelhas, numa tentativa de legitimar a criminalização de corpos desviantes por meio de uma estética da anormalidade. Cesare Lombroso (1876) descreveu características físicas associadas ao “criminoso nato”:
“A fisionomia dos famosos delinquentes reproduziria quase todos os caracteres do homem criminoso: mandíbulas volumosas, assimetria facial, orelhas desiguais, falta de barba nos homens, fisionomia viril nas mulheres, ângulo facial baixo.”(LOMBROSO, 1876)
A noção de que o crime poderia ser compreendido como expressão de um “atavismo” biológico levou à construção de uma perigosa pseudociência do desvio, segundo a qual a punição se justificava não apenas pelo ato praticado, mas sobretudo pela própria existência do sujeito desviante. O criminoso, para Lombroso, era mais um ser determinado do que um sujeito de escolhas morais. O livre-arbítrio cedia lugar ao determinismo natural. E se não há liberdade, tampouco há responsabilidade em sentido pleno — o que, paradoxalmente, jamais impediu a aplicação das mais severas penas sobre os corpos considerados “naturalmente perigosos”. Lombroso argumentava que o livre-arbítrio era inexistente nos delinquentes natos:
“Nas pessoas sãs é livre a vontade, como diz a metafísica, mas os atos são determinados por motivos que contrastam com o bem-estar social […] motivo que não valem mais nos dementes morais ou nos delinquentes natos, que logo caem na reincidência.”(LOMBROSO, 1876)
Com o tempo, a teoria lombrosiana foi sendo paulatinamente desacreditada no meio científico, em grande parte devido às críticas vindas das escolas sociológicas da criminologia, que passaram a enfocar as condições sociais, econômicas e históricas como elementos fundamentais para a compreensão da criminalidade. No entanto, embora superada em seu formato original, a teoria do criminoso nato permanece viva sob novas formas. Como destaca Alessandro Baratta (1982):
“A criminologia crítica propõe uma análise do sistema penal como instrumento de controle social, que atua de forma seletiva sobre determinados grupos sociais, especialmente os mais vulneráveis.”(BARATTA, 1982)
Sua permanência não se dá mais por meio de traços anatômicos, mas pela reprodução institucional de um padrão seletivo de perseguição penal que incide, com impressionante regularidade, sobre os mesmos corpos: os jovens negros, pobres, oriundos das periferias urbanas. Apesar das críticas, a teoria do criminoso nato influenciou práticas penais:
“Desse modo, sustentava que o criminoso deveria ser segregado da sociedade, antes mesmo de se ter cometido o delito, tendo em vista a sua característica de criminalidade imutável.”(LOMBROSO, 1876)
A ideia de que determinados sujeitos são mais perigosos por natureza sobrevive, agora, no discurso tecnificado das políticas de segurança pública, nas estratégias de policiamento ostensivo, na seletividade da prisão preventiva, no recrudescimento das penas e no silêncio jurídico diante dos crimes praticados por agentes do Estado ou por indivíduos socialmente privilegiados. A tese lombrosiana deixou de ser teoria para se tornar prática. Conforme observa Louk Hulsman (1985):
“A criminalização de determinadas condutas está profundamente ligada às estruturas de poder e às relações sociais, sendo o direito penal utilizado como ferramenta de manutenção da ordem estabelecida.”(HULSMAN, 1985)
Não mais se fala em “criminóides” com deformidades físicas, mas em “suspeitos em atitude suspeita” cuja mera presença em determinado espaço urbano é suficiente para justificar abordagem, detenção e, por vezes, a execução sumária.
Dessa forma, constata-se que a teoria do criminoso nato não apenas sobrevive, como se atualiza. Ela troca o discurso médico antropológico por uma linguagem jurídico policial. O tipo físico dá lugar ao tipo social. E o estigma passa a operar sob a lógica de uma criminalização seletiva, que escolhe a quem aplicar a força do direito penal não com base na gravidade do fato, mas na identidade social do autor. O velho positivismo criminal, portanto, não morreu: apenas se disfarçou de política criminal contemporânea.
3. A Sobrevivência do Criminoso Nato sob Novas Roupagens: A Seletividade Penal no Brasil
Embora a doutrina penal contemporânea repudie expressamente as bases biologizantes da teoria lombrosiana, é inegável que os mecanismos de funcionamento do sistema penal brasileiro ainda operam com base em pressupostos similares. A figura do criminoso nato persiste, ainda que sob nova roupagem, travestida de critérios aparentemente neutros, mas que, na prática, reproduzem padrões discriminatórios de identificação e punição. Em vez da medição do crânio ou da assimetria facial, observam-se agora o endereço, a cor da pele, a forma de se vestir, o vocabulário e o nível de instrução como vetores de suspeição e de aplicação do rigor penal. Para compreender a persistência da teoria do “criminoso nato” sob novas roupagens no sistema penal brasileiro, é fundamental analisar a seletividade do sistema punitivo.
“A seletividade do sistema penal brasileiro não se manifesta apenas na execução da pena, mas se insinua desde o momento da definição do que é crime e de quem deve ser criminalizado.”(TANFERRI, 2019)
A seletividade do sistema punitivo não se manifesta apenas na execução da pena, mas se insinua desde o momento da definição do que é crime e de quem deve ser criminalizado. As práticas repressivas do Estado priorizam determinados delitos em detrimento de outros, a depender da identidade social do autor e do lugar em que a conduta ocorre. Nas favelas e bairros periféricos, o tráfico de drogas é enfrentado com ostensividade, resultando em abordagens violentas, prisões preventivas automáticas e processos que ignoram garantias mínimas. Já nos centros urbanos nobres, o mesmo tráfico é tolerado sob o manto da invisibilidade, ou tratado como caso de saúde pública, o que demonstra uma clara dualidade na aplicação da lei penal. A criminologia crítica destaca que a criminalização de determinados sujeitos e condutas está profundamente ligada às estruturas de poder e às relações sociais, desse modo, Regina Coelho (2019), assevera que:
“O sistema penal revela uma seletividade que incide majoritariamente sobre jovens, negros e pobres, reproduzindo estigmas e reforçando desigualdades históricas.”(COELHO, 2019)
O Poder Judiciário, por sua vez, longe de corrigir essas distorções, frequentemente as reforça. É recorrente o tratamento diferenciado conferido a acusados de crimes patrimoniais de pequeno valor, quando oriundos das camadas sociais mais baixas. Ainda que primários, com residência fixa e sem antecedentes, são mantidos presos, sob a justificativa abstrata de garantia da ordem pública. Em contrapartida, réus de colarinho branco, envolvidos em esquemas de corrupção milionários, recebem tratamento processual pautado pela cautela, pelo devido processo legal e pela presunção de inocência. A seletividade se revela, portanto, como técnica de poder e de contenção social, mais do que como instrumento de justiça.
O discurso jurídico institucional, embora revestido de neutralidade técnica, reproduz estigmas sociais que colocam determinados corpos sob constante vigilância e repressão. A noção de periculosidade, mesmo quando embasada em laudos e pareceres, serve, muitas vezes, como instrumento de legitimação do preconceito e da discricionariedade. O jovem negro, pobre e morador da periferia é, em regra, o destinatário preferencial da repressão penal, sendo preso, processado e condenado com base em critérios que remontam, simbolicamente, àquilo que Lombroso um dia chamou de degeneração moral e biológica. A teoria do etiquetamento social (Labelling Approach1) oferece uma perspectiva crítica sobre como o sistema penal rotula determinados indivíduos como criminosos, de acordo com. Louk Hulsman (1986):
“A criminalização de determinadas condutas está profundamente ligada às estruturas de poder e às relações sociais, sendo o direito penal utilizado como ferramenta de manutenção da ordem estabelecida.”(HULSMAN, 1986)
O direito penal simbólico encontra aí sua mais nítida expressão. A criminalização de determinadas condutas e sujeitos opera como forma de reafirmar uma ideia de ordem, ainda que essa ordem se construa à custa da exclusão e do sacrifício dos mesmos de sempre. A pena, assim, deixa de cumprir a função de ressocialização para assumir a de controle social e contenção de indesejáveis, reafirmando, por outros meios, os mesmos fundamentos de um positivismo penal que se acreditava superado.
Em verdade, a lógica da periculosidade e da identificação prévia do delinquente permanece viva nas práticas institucionais do Estado brasileiro. Substituíram-se os critérios anatômicos por marcadores sociais, mas a finalidade se conserva intacta: demarcar quem deve ser punido com o máximo rigor e quem pode ser poupado, com base não na gravidade objetiva da conduta, mas no lugar social que o indivíduo ocupa.
4. A Criminalização da Pobreza e Legitimação Midiática da Punição Seletiva
A criminalização da pobreza não é um fenômeno isolado nem recente. Trata-se de um processo histórico e estrutural que acompanha o desenvolvimento do Estado moderno, especialmente em sua vertente punitiva. No Brasil, essa realidade assume contornos ainda mais perversos, dado o profundo abismo social, racial e econômico que atravessa a população. A figura do “criminoso”, embora formalmente definida pelo tipo penal, ganha na prática contornos sociológicos bastante delimitados: é pobre, geralmente negro, jovem e morador das periferias urbanas. A pobreza, portanto, não é apenas um fator de vulnerabilidade, mas um marcador de periculosidade social.
Segundo Galvão e Martins (2015), a criminalização da pobreza é um fenômeno estrutural que reflete uma violência sistêmica contra os mais vulneráveis.
“A criminalização da pobreza há muito vem sendo temática negligenciada no âmbito das discussões em torno do Direito Penal. Existe bastante preocupação com o freio à criminalidade, mas poucos questionamentos sobre quais as verdadeiras causas e os principais agentes à frente da propulsão dessa problemática.”(GALVÃO, MARTINS, 2015)
A seletividade do sistema penal, já denunciada em capítulo anterior, encontra na criminalização da pobreza seu campo mais fértil de atuação. Os crimes que recebem maior atenção do aparato repressivo são aqueles cometidos pelas classes subalternas, mesmo quando sua lesividade social é significativamente inferior aos delitos praticados pelas elites econômicas e políticas. Enquanto furtos simples, pequenos tráficos e atos de resistência são perseguidos com rigor e resultam em penas privativas de liberdade, crimes tributários, ambientais, financeiros e contra a administração pública são muitas vezes invisibilizados, negociados ou simplesmente esquecidos em meio a uma infinidade de recursos e tecnicalidades processuais. Conforme Oliveira (2020), o Estado penal brasileiro utiliza a pobreza como justificativa para a implementação de políticas repressivas.
“A situação de pobreza pode ser usada para legitimar a manutenção de um macro aparato repressivo, voltado não somente para criminosos violentos, mas também para os pobres.”(OLIVEIRA, 2020)
Esse processo de criminalização seletiva não se dá apenas por meio do Estado. A mídia cumpre papel central na construção da imagem do delinquente padrão. Os noticiários televisivos, programas policiais e portais de notícias reproduzem, cotidianamente, narrativas que vinculam o crime à figura do marginal urbano, do usuário de drogas, do assaltante de padaria. A cobertura midiática ignora seletivamente os crimes das elites e, quando os menciona, o faz com linguagem mais técnica, com nomes e sobrenomes, evitando a espetacularização. Já o acusado pobre é exposto com rosto, apelido, antecedentes e passagens, mesmo antes de qualquer sentença condenatória. A presunção de inocência, nesses casos, cede lugar à presunção de culpabilidade.
Além disso, a mídia atua como difusora de uma demanda punitivista da opinião pública. Ao tratar a criminalidade com sensacionalismo e simplificações, reforça a ideia de que a solução está no aumento das penas, na redução da maioridade penal e na militarização da segurança. Trata-se de uma retroalimentação perversa: o sistema penal atua seletivamente, a mídia reforça essa seletividade, e a sociedade, convencida da eficácia do modelo, clama por mais repressão, mesmo que essa repressão recaia sobre os mesmos corpos já vulnerabilizados. Segundo Witschoreck e Hoffmam (2022), a criminalização da pobreza é uma forma de violência estrutural que atinge principalmente as camadas sociais mais pobres.
“O direito penal e as penas privativas de liberdade atingem as camadas sociais mais pobres em razão da sua vulnerabilidade ocasionada pelo capitalismo, o qual é responsável por gerar a desigualdade social e tornar o direito um instrumento a serviço da burguesia.”(WITSCHORECK, HOFFMAM, 2022)
A criminalização da pobreza, assim, não é um desvio ou um erro do sistema. Ao contrário, é um de seus pilares funcionais. O Estado penal moderno precisa de um inimigo interno, de um corpo descartável que sirva como exemplo, como espetáculo e como ferramenta de controle. A punição dos pobres cumpre essa função de reafirmação da ordem, mesmo que a desordem real, representada pela corrupção sistêmica, pelos grandes esquemas de lavagem de dinheiro e pela desigualdade estrutural, permaneça intacta.
O direito penal, quando operado dessa forma, abandona sua função de garantidor de direitos e se converte em instrumento de exclusão, contribuindo para a perpetuação de um ciclo de miséria, estigmatização e violência institucional. Nesse contexto, a crítica não é apenas teórica, mas urgente: ou se reconstrói o modelo penal com base em princípios verdadeiramente igualitários e emancipatórios, ou se seguirá punindo a pobreza sob a falsa premissa de combate ao crime.
5. A Construção do Inimigo Penal e a Atuação da Teoria do Criminoso Nato
No sistema penal brasileiro, o conceito de “inimigo” não é meramente retórico, mas estruturante. Ele opera silenciosamente na prática dos órgãos de repressão e persecução criminal, moldando o modo como se decide quem merece a força do Estado e quem será protegido por suas garantias. Nesse sentido, a dogmática penal do “inimigo”, tal como formulada por Günther Jakobs, embora duramente criticada no plano normativo, parece encontrar ampla adesão no plano fático da justiça criminal brasileira.
A seletividade penal, quando analisada à luz da figura do inimigo, revela que a punição não é dirigida ao delito, mas ao delinquente previamente estigmatizado. A imputação penal deixa de ser um instrumento de responsabilização por um fato concreto e passa a funcionar como resposta ao desvio presumido de sujeitos que, por sua origem social, cor da pele ou localização geográfica, são considerados ameaças permanentes à ordem pública. O inimigo, portanto, não é construído com base em sua conduta, mas em sua condição existencial.
É nesse contexto que a Teoria Lombrosiana do criminoso nato, embora cientificamente superada, ressurge sob novos formatos e com roupagens mais sofisticadas. Se antes se buscava a periculosidade nas feições físicas e na anatomia craniana, hoje ela se insinua no CEP de origem, na ausência de vínculos formais de trabalho, no estilo de vestimenta ou até mesmo na maneira de falar. A ontologia do “bandido”, outrora pautada pela pseudociência positivista, agora se justifica por “análises de risco”, “perfil de reincidência” e “periculosidade presumida”. Segundo Günther Jakobs, a distinção entre “cidadão” e “inimigo” no direito penal não se baseia apenas na conduta passada, mas na percepção de periculosidade futura do indivíduo. Para ele:
“Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não ‘deve’ tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.”(JAKOBS, 2005)
Os dados do sistema de justiça penal revelam esse viés: as prisões provisórias, as abordagens policiais violentas e os processos penais frágeis com baixa produção probatória se concentram em determinados grupos sociais, quase sempre os mesmos. Isso não é acaso. É construção.
Ao mesmo tempo, essa concepção de inimigo legitima a suspensão (ou supressão) de garantias fundamentais. A ideia de que determinados indivíduos “não merecem direitos” é defendida de forma implícita por setores da opinião pública, do Legislativo e até do Judiciário. Em nome da segurança, se aceita a tortura, a prisão sem provas robustas, a execução extrajudicial e a permanência indefinida em unidades superlotadas e degradantes. É o triunfo da exceção dentro da normalidade institucional.
A naturalização dessa lógica revela o quanto a racionalidade penal brasileira ainda carrega os resquícios de uma mentalidade punitivista fundada na eliminação simbólica e física de sujeitos considerados “não recuperáveis”. A retórica da ressocialização é vazia diante de um sistema que, antes mesmo de julgar, já seleciona quem merece ser punido e quem será ignorado. A política penal, nesse cenário, não se orienta por princípios de justiça ou legalidade, mas por critérios morais e sociais profundamente contaminados pelo preconceito e pelo desejo de vingança.
Desvelar esse funcionamento é tarefa urgente da criminologia crítica. Não se trata de defender o crime, mas de denunciar o modo como o poder punitivo se articula para manter desigualdades e reproduzir um modelo de exclusão. A construção do inimigo penal não é um erro do sistema, mas seu projeto mais bem-sucedido.
6. O Papel das Instituições no Reforço da Seletividade Penal: Polícia, Ministério Público e Judiciário
A seletividade penal não é um fenômeno acidental ou fortuito no sistema de justiça criminal brasileiro. Ela é meticulosamente construída e sustentada por um conjunto de instituições, cada uma com sua função específica, mas todas convergindo para a perpetuação de um modelo punitivo desigual. A Polícia, o Ministério Público e o Judiciário não atuam isoladamente; ao contrário, formam um sistema interdependente que reforça, em seu funcionamento diário, as disparidades raciais, sociais e econômicas presentes no país. Segundo Zaffaroni(2001), o sistema penal não é neutro, mas sim um instrumento de poder que atua seletivamente sobre os grupos mais vulneráveis:
“O sistema penal não é um instrumento de justiça, mas de poder, que atua seletivamente sobre os setores mais vulneráveis da sociedade.”(ZAFFARONI, 2001)
A Polícia, como primeira instituição de contato entre o cidadão e o aparato punitivo, exerce um papel crucial na construção do perfil do criminoso e, consequentemente, na definição de quem será punido. O policiamento ostensivo, predominantemente voltado para as periferias urbanas e áreas de maior concentração de pobreza, revela uma prática seletiva desde o momento da abordagem. A polícia brasileira, historicamente marcada por práticas violentas e abusivas, frequentemente utiliza de critérios subjetivos e preconceituosos na hora de decidir quem é suspeito. A discriminação racial e social se traduz em abordagens agressivas e, muitas vezes, em prisões arbitrárias de indivíduos pobres e negros, especialmente em contextos de favelas e periferias.
Estudos demonstram que a maior parte das vítimas da violência policial no Brasil é composta por jovens negros de classe baixa. Esses dados não são um reflexo de uma polícia errada, mas de uma polícia que, intencionalmente ou não, executa uma política de controle social direcionada a um segmento específico da população. O “inimigo” penal, como vimos no capítulo anterior, não é definido pela sua conduta, mas por sua posição na estrutura social. A Polícia, ao perpetuar essa lógica, reforça a seletividade penal desde a base. Cruz (2018) analisa o processo histórico de formação da seletividade penal no Brasil, especialmente em relação aos afrodescendentes:
“A seletividade penal no Brasil é um processo histórico que desqualifica juridicamente os afrodescendentes, perpetuando desigualdades.” (CRUZ, 2018)
O Ministério Público, por sua vez, possui a função de fiscalizar e promover a ação penal, e sua atuação, em teoria, deveria ser pautada pela busca da justiça. No entanto, como já apontado, o MP também contribui para a criminalização seletiva ao direcionar suas investigações e denúncias com base em critérios de classe e raça. A política de “guerra ao crime” prioriza crimes como o tráfico de drogas em comunidades periféricas, enquanto os crimes financeiros, políticos e empresariais, muitas vezes cometidos por membros das elites, recebem tratamento mais brando ou são ignorados. A seletividade na escolha dos casos a serem perseguidos pelo Ministério Público tem como resultado a criminalização dos pobres e a invisibilidade dos crimes das elites, consolidando um sistema punitivo que beneficia os poderosos.
Já o Judiciário, apesar de sua função garantidora de direitos, tem sido um forte aliado na manutenção dessa desigualdade. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao se depararem com questões envolvendo os direitos fundamentais dos acusados, frequentemente tomam decisões que priorizam o “interesse social” (compreendido como segurança pública e ordem) em detrimento dos direitos individuais dos réus, especialmente quando estes pertencem às classes populares. A aplicação de penas severas e a resistência à aplicação de medidas alternativas à prisão contribuem para o encarceramento em massa, especialmente de jovens negros e pobres, cujas possibilidades de defesa são limitadas por uma estrutura judicial que opera sob viés de classe.
Além disso, a “justiça seletiva” se revela na assimetria do acesso à defesa. A grande maioria dos acusados no Brasil não possui advogados qualificados, sendo defendida por defensores públicos que, frequentemente, têm condições de trabalho sobrecarregadas e insuficientes para garantir uma defesa eficaz. O acesso desigual à justiça se traduz em decisões processuais e sentenças que reproduzem a exclusão social e o racismo estrutural, com a condenação de indivíduos pobres em um processo judicial que já está, desde o início, viciado pela desigualdade de acesso e condições. Barros (2023) analisa a seletividade do sistema penal brasileiro, destacando como ele atua de forma discriminatória:
“O encarceramento em massa da população negra no Brasil é reflexo de um sistema penal seletivo que perpetua o racismo estrutural.”(BARROS, 2023)
Portanto, o sistema de justiça criminal brasileiro não é apenas um espaço neutro de aplicação da lei, mas uma arena de disputa de poder onde as instituições operam com grande carga ideológica, reforçando as desigualdades existentes. A seletividade penal é um fenômeno complexo e multifacetado que envolve a interação de diferentes atores institucionais, cujas práticas e escolhas, muitas vezes, são permeadas por um discurso punitivista e discriminatório.
A verdadeira reforma do sistema penal brasileiro passa, portanto, pela reconstrução dessas instituições, que, para cumprir sua função de garantidores dos direitos fundamentais, devem combater, com urgência, os preconceitos e as práticas discriminatórias que marcam seu funcionamento. A crítica à seletividade penal não é uma crítica ao combate ao crime, mas sim ao modo como o sistema de justiça criminal lida com a desigualdade estrutural e racial, produzindo uma realidade onde o crime é atribuído, quase sempre, àqueles que menos podem se defender. Amaral (2022) discute o encarceramento da população negra no Brasil como resultado da seletividade penal:
“O encarceramento em massa da população negra no Brasil é reflexo de um sistema penal seletivo que perpetua o racismo estrutural.”(AMARAL. 2022)
7. Movimentos Sociais e Alternativos ao Modelo Seletivo: A Crítica ao Sistema Penal e a Busca por Reformas
A crítica à seletividade penal não é nova, mas ela tem se intensificado nas últimas décadas, à medida que diversos setores da sociedade civil, movimentos sociais e organizações de direitos humanos têm se empenhado na desconstrução do modelo punitivo que caracteriza o sistema penal brasileiro. Loïc Wacquant (2003) argumenta que o sistema penal moderno atua como um instrumento de gestão da miséria, especialmente em países com profundas desigualdades sociais, como o Brasil.
“o sistema penal moderno atua como um instrumento de gestão da miséria, especialmente em países com profundas desigualdades sociais, como o Brasil” (WACQUANT, 2003).
A resistência ao encarceramento em massa, à criminalização da pobreza e à exclusão social imposta pelas políticas de segurança pública tem ganhado força, refletindo uma crescente insatisfação com um sistema penal que se alimenta da desigualdade e da discriminação racial.
Movimentos como o movimento negro, o movimento feminista, as organizações de defesa dos direitos humanos e as redes de advogados criminalistas têm sido protagonistas na denúncia das falhas do sistema penal. Essas mobilizações, muitas vezes de base popular, não apenas questionam o uso excessivo da prisão como solução para o crime, mas também buscam alternativas que levem em consideração as causas sociais do comportamento criminoso e que respeitem os direitos fundamentais dos indivíduos, independentemente de sua classe social ou cor. Cristiano Lange dos Santos observa que o hiperencarceramento de jovens negros e pobres no Brasil é uma técnica afirmativa e seletiva dos poderes do Estado para operar, via controle penal, no modelo capitalista neoliberal. Conforme aponta Santos(2020):
“o hiperencarceramento de jovens negros e pobres no Brasil é uma técnica afirmativa e seletiva dos poderes do Estado para operar, via controle penal, no modelo capitalista neoliberal” (SANTOS, 2020)
Um dos principais pontos de crítica desses movimentos é a forma como o sistema penal, em sua essência, prioriza a punição em detrimento da prevenção. Enquanto a prisão é vista como uma solução imediata para os problemas da criminalidade, o sistema penal brasileiro falha ao ignorar as causas sociais que contribuem para o aumento da violência, como a pobreza, a falta de acesso à educação, à saúde e à habitação, bem como a exclusão dos negros e das minorias. Em vez de focar na reabilitação do infrator, a prisão tende a ser um instrumento de estigmatização, perpetuando um ciclo de criminalização e marginalização.
A prisão, como principal ferramenta do sistema penal, tem se mostrado ineficaz no enfrentamento da criminalidade. O aumento do encarceramento, especialmente nas últimas décadas, não trouxe uma redução significativa nos índices de criminalidade, mas, ao contrário, tem agravado a situação de superlotação nos presídios, dificultando ainda mais a reintegração dos apenados à sociedade. Essa realidade tem gerado uma pressão crescente por reformas que incluam medidas alternativas à prisão, como penas restritivas de direitos, monitoramento eletrônico, trabalho comunitário e outras formas de ressocialização. Eugenio Raúl Zaffaroni critica o uso excessivo da punição, afirmando que ela apenas acentua as desigualdades e não previne crimes.
“o excesso de punição só acentua mais as desigualdades, não previne crimes, não restitui bens jurídicos violados, e mais, não reinsere nenhum indivíduo ao convívio social” (ZAFFARONI, 2007).
Entre as alternativas propostas por críticos do modelo punitivo, destaca-se a chamada “justiça restaurativa”, que foca na reparação do dano causado ao vítima e no restabelecimento da harmonia social, em vez de se concentrar na punição do infrator. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Raffaella da Porciuncula Pallamolla destacam que a justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, focando na reparação do dano e na reintegração social.
A justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, que leva em conta as circunstâncias que levaram o indivíduo a cometer o crime, o impacto do crime sobre a comunidade e a busca por soluções que envolvem tanto o infrator quanto a vítima. Essa proposta visa transformar a punição em um processo de reintegração e reabilitação, em vez de isolamento e estigmatização. Segundo Azevedo e Pallamolla:
“a justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, focando na reparação do dano e na reintegração social” (AZEVEDO; PALLAMOLLA, 2014).
Outra proposta que tem ganhado destaque é a implementação de políticas de descriminalização e despenalização de condutas que hoje são tratadas com penas severas, como é o caso do tráfico de drogas. A criminalização do tráfico tem levado à prisão de milhares de pessoas, muitas vezes sem um processo judicial justo e sem a devida consideração das condições socioeconômicas que influenciam as escolhas dos indivíduos. A descriminalização de certas condutas e a adoção de uma abordagem mais focada em saúde pública, em vez de repressão, tem sido defendida como uma forma de combater a criminalidade sem reproduzir as desigualdades do sistema penal.
A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) também tem sido relevante nesse contexto, especialmente nas discussões sobre a prisão em segunda instância e o uso da prisão preventiva. A questão da prisão preventiva, em particular, tem sido central nas críticas ao sistema penal, pois muitas vezes ela é utilizada de maneira abusiva, sem que haja uma fundamentação adequada, resultando no encarceramento de pessoas que ainda não foram julgadas e que, em muitos casos, não representam ameaça à sociedade. A revisão das condições de aplicação da prisão preventiva, bem como a garantia de um processo mais célere e transparente, tem sido uma demanda de diversos movimentos sociais e entidades de direitos humanos. André Martini e Andréa Pires Rocha discutem como o sistema penal brasileiro é marcado por um racismo estrutural que influências decisões judiciais, incluindo o uso abusivo da prisão preventiva.
“o sistema penal brasileiro é marcado por um racismo estrutural que influências decisões judiciais, incluindo o uso abusivo da prisão preventiva” (MARTINI; ROCHA, 2021).
Além disso, a atuação do Judiciário na promoção de uma maior equidade na aplicação da justiça penal é crucial para que o sistema deixe de ser um mecanismo de opressão social. A busca por uma justiça que garanta a igualdade de direitos e a efetiva defesa dos acusados, independentemente de sua classe social, é um passo fundamental para desconstruir a lógica punitivista que caracteriza o sistema penal brasileiro.
Em resposta a essas críticas, algumas reformas começam a ser debatidas, embora de forma tímida e com resistência por parte de setores mais conservadores da sociedade e do sistema político. A reforma do Código Penal e a implementação de políticas públicas mais eficazes de prevenção ao crime, focadas nas condições socioeconômicas e na inclusão social, são questões que ainda necessitam de maior discussão. A adoção de um modelo penal mais humano, que respeite a dignidade da pessoa humana e priorize a reintegração social dos infratores, parece ser um caminho mais justo e eficaz para a construção de uma sociedade mais igualitária.
No entanto, os obstáculos para a implementação dessas propostas são imensos, e o sistema penal brasileiro continua a operar como um mecanismo de exclusão, marginalização e perpetuação das desigualdades. As resistências políticas e institucionais ao avanço das reformas, aliadas à persistência de uma cultura punitivista e conservadora, dificultam a mudança real no sistema de justiça.
8. O Futuro do Sistema Penal Brasileiro: Desafios e Possibilidades para uma Reforma Estrutural
O sistema penal brasileiro, com suas estruturas rígidas e sua função seletiva, está no centro de um debate que se estende por várias décadas. A resistência ao modelo punitivista e a busca por uma justiça mais inclusiva e equitativa geram um cenário em que as possibilidades de reforma se tornam cada vez mais urgentes, mas também mais complexas. O desafio central reside em transformar um sistema que é, por natureza, desigual e excludente, em um mecanismo que realmente promova justiça social e a reintegração dos indivíduos à sociedade. Como observa Ílison Dias dos Santos:
“A ideia de aporofobia como conceito‑criminológico crítico deixa escapar o elemento alimentador central de nossa seletividade penal, qual seja, a cicatriz escravocrata da sociedade brasileira” (SANTOS, 2025).
No entanto, as reformas no sistema penal não se limitam à simples modificação de leis ou à criação de novos dispositivos legais. Elas exigem, antes de tudo, uma mudança profunda na mentalidade da sociedade e das instituições responsáveis pela aplicação da justiça. O principal obstáculo a ser superado é a resistência do sistema punitivo, que, como vimos ao longo deste estudo, é sustentado por uma lógica de exclusão e criminalização das camadas mais pobres e vulneráveis da população. Como assevera Delton Aparecido Felipe:
“temos um binarismo: em alguns grupos, o Direito Penal é usado para vigiar e punir e em outros, funciona para servir e proteger” (FELIPE, 2022).
Como destaca Fabiano Augusto (2007), o racismo estrutural está intrinsecamente ligado à seletividade do sistema penal brasileiro. O primeiro grande desafio de uma reforma estrutural no sistema penal é, sem dúvida, a superação da ideia de que a punição é a única resposta eficaz ao crime. Esse modelo, que tem raízes profundas na história do Brasil e em sua tradição autoritária, precisa ser substituído por um entendimento de justiça que não se baseie apenas na repressão, mas também na prevenção, na educação e na promoção de oportunidades para aqueles que, muitas vezes, são levados ao crime por questões estruturais como a pobreza, a falta de acesso a serviços básicos e a marginalização social.
É essencial que o sistema penal seja visto não como um fim, mas como um meio para uma sociedade mais justa e igualitária. Para que isso se concretize, é necessário repensar os objetivos da pena. Em vez de punir pela punição, o sistema deve ter como objetivo a reintegração social do infrator. Para isso, é imprescindível que as alternativas à prisão sejam ampliadas e que se criem políticas públicas eficazes que foquem na prevenção do crime. O sistema penal precisa ser mais orientado pela busca de soluções que ofereçam ao infrator a possibilidade de ressocialização, com ênfase no respeito à sua dignidade humana.
A implementação de políticas de educação e requalificação profissional, de acesso a serviços de saúde mental e de políticas públicas de combate à desigualdade social são fundamentais para reduzir a criminalidade e, consequentemente, diminuir a superlotação do sistema carcerário. O conceito de justiça restaurativa, que busca o reparo do dano causado à vítima e à sociedade, em vez de focar exclusivamente na punição do infrator, também deve ser mais fortemente incorporado ao sistema de justiça.
Além disso, a questão da desigualdade racial é um dos pontos mais críticos a ser abordado. O Brasil possui uma das populações negras mais numerosas do mundo, e essa população tem sido historicamente vítima da seletividade penal. As reformas estruturais devem, portanto, incluir um esforço específico para combater o racismo institucionalizado no sistema de justiça, promovendo a igualdade de tratamento para todos os cidadãos, independentemente de sua cor ou origem social. Isso exige uma mudança no perfil dos agentes de segurança pública, juízes, promotores e advogados, com ênfase em treinamentos e ações afirmativas que combatam as práticas discriminatórias.
Outro aspecto relevante para uma reforma eficaz é a desmilitarização da polícia e a revisão de suas práticas de abordagem. O modelo atual de polícia, fortemente voltado para a repressão e para a manutenção da ordem social através da força, precisa ser repensado. A capacitação dos policiais em técnicas de abordagem pacífica, no respeito aos direitos humanos e na identificação de práticas discriminatórias é essencial. Além disso, é necessário promover um maior controle externo sobre as ações da polícia, com o fortalecimento de ouvidorias e mecanismos de fiscalização independentes.
O Judiciário, por sua vez, também precisa passar por uma transformação. A formação de juízes e promotores deve ser voltada para a conscientização sobre as desigualdades raciais e sociais que permeiam as ações e decisões judiciais. A revisão de práticas como a prisão preventiva e a aplicação das penas deve ser uma prioridade, com o objetivo de evitar o encarceramento de pessoas sem julgamento, especialmente em casos onde a prisão não é uma medida necessária ou proporcional. As decisões judiciais devem ser pautadas não apenas pela letra fria da lei, mas também pela equidade e pela proteção dos direitos humanos.
Por fim, a reforma do sistema penal precisa ser acompanhada de uma reforma do sistema de justiça como um todo. A criação de mecanismos que garantam o acesso efetivo à defesa, com a ampliação dos recursos destinados à Defensoria Pública, e a implementação de medidas que favoreçam o julgamento célere dos processos, são fundamentais para assegurar que a justiça penal seja, de fato, justa e não continue sendo um instrumento de perpetuação das desigualdades.
A reforma do sistema penal é um processo longo e complexo, mas é essencial para a construção de um Brasil mais justo e igualitário. A busca por soluções alternativas à prisão, o combate à seletividade penal e a promoção de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades sociais são passos fundamentais para a superação do modelo punitivo que, ao longo dos anos, tem mostrado seus efeitos destrutivos para a sociedade como um todo.
O futuro do sistema penal brasileiro depende de nossa capacidade de enxergar além das estatísticas de criminalidade e de tratar as causas sociais da violência. Só assim será possível transformar um sistema punitivo em um sistema de justiça verdadeira, que resgatará a dignidade dos indivíduos e promoverá uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
9. Lições Internacionais e Possíveis Aplicações no Contexto Brasileiro
O sistema penal brasileiro, como foi demonstrado ao longo dos capítulos anteriores, enfrenta uma série de problemas estruturais que contribuem para a exclusão social e a perpetuação da desigualdade. A busca por alternativas ao modelo punitivo tradicional, a superação da seletividade penal e a promoção de uma justiça social mais equitativa são desafios que exigem uma reforma profunda. Nesse contexto, olhar para outras experiências internacionais pode ser uma fonte valiosa de aprendizado e inspiração para transformar o sistema penal brasileiro.
Diversos países têm se destacado nas últimas décadas por implementar reformas no sistema penal com o objetivo de reduzir a população carcerária, melhorar as condições dos presídios e, principalmente, combater a seletividade e as desigualdades do sistema de justiça. Embora cada contexto seja único, as lições extraídas de outras nações podem fornecer direções importantes para o Brasil.
9.1. O Modelo de Justiça Restaurativa na Nova Zelândia
A Nova Zelândia tem sido um exemplo de sucesso na implementação da justiça restaurativa, que visa restaurar os danos causados pelo crime através da reparação ao invés da punição. A justiça restaurativa enfoca o diálogo entre o infrator, a vítima e a comunidade, buscando soluções que envolvam a reparação do dano e a reintegração do infrator à sociedade. Ao contrário do sistema punitivo tradicional, que foca na punição do criminoso, o modelo de justiça restaurativa busca tratar as causas do comportamento criminoso e promover a restauração dos vínculos sociais.
Este modelo tem mostrado bons resultados na redução da reincidência criminal, especialmente quando aplicado a jovens infratores. O sucesso da Nova Zelândia pode servir de exemplo para o Brasil, especialmente quando se considera o elevado número de jovens em situação de vulnerabilidade social envolvidos em delitos, em sua grande maioria de minorias raciais e econômicas. A aplicação de práticas de justiça restaurativa poderia contribuir para a redução da superlotação dos presídios e para a criação de uma alternativa mais eficaz e humana ao encarceramento em massa.
9.2. A Descriminalização das Drogas em Portugal
Portugal, em 2001, implementou uma das reformas mais notáveis no campo da política criminal: a descriminalização do consumo de drogas. Diferente da legalização, que permite a venda e distribuição de substâncias, a descriminalização não trata o uso de drogas como um crime, mas como uma infração administrativa. Esse modelo, que prioriza o tratamento de dependentes químicos em vez de puni-los com penas de prisão, tem demonstrado resultados significativos na redução da criminalidade relacionada às drogas e na diminuição da sobrecarga no sistema penitenciário.
Além disso, Portugal implementou políticas públicas de saúde voltadas para o tratamento de dependentes químicos, como programas de distribuição de seringas, programas de reabilitação e centros de apoio psicológico. A abordagem de saúde pública adotada por Portugal tem reduzido os índices de HIV e overdose entre usuários de drogas e, ao mesmo tempo, garantido que aqueles que cometem delitos relacionados ao uso de substâncias possam receber apoio adequado, em vez de serem simplesmente encarcerados.
Essa política pode servir como inspiração para o Brasil, onde o tráfico de drogas e o consumo estão fortemente criminalizados, especialmente entre a população jovem e periférica. A descriminalização do consumo e a promoção de políticas de saúde públicas voltadas para a reabilitação, em vez da punição, poderiam aliviar o sistema prisional brasileiro e reduzir a criminalização da pobreza e da juventude.
9.3 A Reforma do Sistema Carcerário na Noruega
A Noruega apresenta um modelo penitenciário que se distingue dos sistemas tradicionais pela ênfase na reabilitação em vez da punição. A prisão na Noruega é concebida como um ambiente de reintegração, onde os detentos têm acesso à educação, treinamento profissional, e programas psicológicos, com o objetivo de prepará-los para uma vida sem crimes após o cumprimento da pena. O sistema carcerário norueguês foca na dignidade humana, e as condições das prisões são projetadas para ajudar na reintegração social, com a expectativa de que os detentos retornem à sociedade como indivíduos mais capacitados e menos propensos a reincidir.
Os resultados dessa abordagem são impressionantes: a Noruega possui uma das menores taxas de reincidência do mundo, com cerca de 20% dos presos voltando a cometer crimes, uma taxa muito inferior à observada em países com sistemas penitenciários mais punitivos. Embora a Noruega tenha um contexto socioeconômico muito distinto do Brasil, o modelo norueguês oferece lições valiosas sobre como repensar a função das prisões e transformar o sistema penitenciário em um espaço de recuperação e reintegração, em vez de punição pura e simples.
9.4. O Sistema Penal de Justiça Comunitária no Japão
O Japão tem adotado, nas últimas décadas, um sistema de justiça comunitária que envolve a participação ativa da comunidade na resolução de conflitos e na reintegração de infratores. O sistema de justiça comunitária no Japão busca envolver a sociedade local na responsabilização dos infratores e na busca por soluções que beneficiem tanto as vítimas quanto os infratores. A ideia central é que a punição deve ser vista como um processo coletivo de restaurar a ordem e a harmonia social, em vez de simplesmente isolar o indivíduo infrator.
No Japão, existem programas que promovem a mediação entre infratores e vítimas, com o objetivo de restaurar as relações sociais e reparar os danos causados pelo crime. Esse modelo contribui para a criação de um sistema de justiça mais humano, em que o foco não está apenas em punir, mas em restaurar o equilíbrio social e prevenir futuros crimes.
9.5. Lições Aplicáveis ao Brasil
As lições extraídas desses exemplos internacionais podem ser aplicadas ao sistema penal brasileiro, especialmente no que diz respeito à busca por alternativas ao encarceramento em massa, à redução da seletividade penal e à promoção de uma justiça mais equitativa e acessível. Embora cada país tenha suas particularidades, o Brasil pode aprender com modelos de sucesso e buscar soluções que atendam à sua realidade social e econômica.
Entre as lições mais importantes estão:
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A importância de políticas públicas de prevenção e reabilitação, em vez de focar apenas na punição.
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A necessidade de considerar o contexto socioeconômico e as causas estruturais do comportamento criminoso, como pobreza e desigualdade.
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A adoção de práticas restaurativas e comunitárias, que promovem a reintegração do infrator à sociedade e a reparação dos danos causados.
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A redução da dependência da prisão como única forma de punição, especialmente para crimes de menor gravidade ou para pessoas que não representam ameaça significativa à sociedade.
A implementação de tais reformas no Brasil exigirá um esforço conjunto de diversas esferas da sociedade, incluindo o Judiciário, o Legislativo, as forças de segurança pública e os movimentos sociais. O desafio é grande, mas a busca por uma justiça penal mais humana e eficiente é fundamental para a construção de um futuro mais igualitário e justo.
10. Desafios e Possíveis Estratégias para Implementação de Reformas no Sistema Penal Brasileiro
O sistema penal brasileiro enfrenta uma série de desafios estruturais e sociais que dificultam a implementação de reformas significativas. A resistência de setores conservadores da sociedade, a falta de recursos e a escassez de vontade política são apenas alguns dos obstáculos que o país precisa superar para promover mudanças reais no campo da justiça criminal. A principal questão é que o sistema penal no Brasil continua a ser sustentado por uma ideologia de segurança pública que privilegia a punição em detrimento da prevenção e da reabilitação.
Uma das primeiras estratégias para superar essa resistência é a mobilização da sociedade civil. Organizações não governamentais, movimentos sociais e outros grupos podem exercer um papel fundamental na conscientização da população sobre as falhas do sistema penal e na defesa de alternativas punitivas mais humanas e eficazes. A sociedade deve ser envolvida ativamente no processo, tornando-se uma força de pressão política capaz de influenciar a agenda do governo e a decisão dos legisladores. A articulação de diferentes esferas da sociedade, como grupos de direitos humanos, advogados, juízes e defensores públicos, é essencial para construir uma base sólida de apoio à reforma.
Além disso, é crucial que as reformas legislativas promovam a redução do encarceramento em massa e o fortalecimento de medidas alternativas à prisão, como a prestação de serviços comunitários e a prisão domiciliar. A revisão das leis que criminalizam condutas menos graves, como o consumo de drogas, e a promoção de alternativas penais são medidas que podem aliviar a superlotação dos presídios e reduzir o número de pessoas privadas de liberdade, sem prejudicar o combate à criminalidade. Conforme destacado por Wagner Silva de Souza:
“temos um binarismo: em alguns grupos, o Direito Penal é usado para vigiar e punir e em outros, funciona para servir e proteger” (SOUZA, 2019).
As reformas legislativas devem também permitir a ampliação do uso de programas de justiça restaurativa, que priorizam a reparação dos danos causados pelo crime, em vez de se concentrar exclusivamente na punição do infrator.
A mudança no sistema de justiça penal brasileiro também deve ser acompanhada de investimentos significativos em programas de reabilitação e reintegração social. O foco deve ser a promoção da educação, da qualificação profissional e do apoio psicológico aos condenados, com o objetivo de prepará-los para um retorno produtivo à sociedade. As políticas públicas voltadas para a prevenção, como a educação de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social, também são fundamentais para reduzir as taxas de criminalidade e evitar a perpetuação de ciclos de violência.
No entanto, a implementação dessas reformas exigirá uma transformação das instituições responsáveis pela aplicação da justiça, como o Judiciário, as polícias e as instituições prisionais. A resistência interna desses órgãos, muitas vezes mais apegados ao modelo punitivo tradicional, é um dos maiores obstáculos à mudança. A capacitação e a sensibilização dos profissionais envolvidos são essenciais para criar um sistema mais eficaz e justo. Os tribunais devem adotar uma postura mais crítica em relação às práticas discriminatórias e procurar garantir que o sistema de justiça penal seja mais equitativo para todos os cidadãos, independentemente de sua classe social, cor da pele ou condição econômica.
A crise fiscal que o Brasil atravessa também representa um grande desafio para a implementação de reformas no sistema penal. O país enfrenta uma escassez de recursos financeiros, o que dificulta o financiamento de políticas públicas que visem a reabilitação dos infratores ou a criação de alternativas penais. Contudo, é possível argumentar que, ao investir em alternativas ao encarceramento e em programas de reintegração social, o governo poderia reduzir os custos elevados com a manutenção do sistema prisional, que muitas vezes é ineficaz e desumano. A longo prazo, a adoção de medidas de prevenção e reabilitação pode resultar em uma diminuição da população carcerária e em uma redução substancial dos custos com a criminalidade. Como aponta o Consultor Jurídico (CONJUR):
“temos um binarismo: em alguns grupos, o Direito Penal é usado para vigiar e punir e em outros, funciona para servir e proteger” (SOUZA, 2019).
Para que as reformas sejam bem-sucedidas, é fundamental que haja uma coordenação eficaz entre os diferentes níveis de governo. O governo federal deve estabelecer políticas públicas nacionais voltadas para a reforma do sistema penal e apoiar os estados na implementação dessas práticas alternativas. Os governos estaduais e municipais têm a responsabilidade de adaptar essas políticas à realidade local, buscando soluções específicas para as particularidades de suas regiões. A interação entre os diferentes órgãos do sistema de justiça, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e a Polícia, deve ser fortalecida para garantir a efetividade das reformas.
Ainda há um longo caminho a percorrer para alcançar um sistema penal mais justo e eficaz. Superar os desafios políticos, culturais e econômicos exigirá um esforço contínuo e colaborativo. No entanto, as alternativas para a reforma existem e são viáveis. O principal desafio será garantir que essas reformas sejam implementadas de maneira que atendam às necessidades da população e ofereçam um sistema de justiça que não apenas puna, mas também previna e reabilite os infratores, criando uma sociedade mais justa e segura para todos.
11. Respectivas Futuras e Tendências Globais no Sistema Penal Brasileiro
A reflexão sobre as perspectivas futuras do sistema penal brasileiro exige uma análise profunda das tendências globais e das transformações que já estão em andamento. O sistema penal, como qualquer instituição, está em constante evolução, impulsionado por mudanças sociais, políticas e econômicas. No Brasil, o caminho para a reformulação do sistema penal dependerá da capacidade do país em se adaptar às novas realidades, tanto internas quanto internacionais, que influenciam as políticas públicas de segurança e justiça.
Nos últimos anos, há uma tendência crescente, a nível global, de repensar os modelos tradicionais de justiça penal punitiva em favor de abordagens mais restaurativas e focadas na reintegração do infrator. Modelos restaurativos buscam, mais do que punir, reparar os danos causados pela criminalidade, promovendo o diálogo entre as vítimas e os infratores e priorizando a recuperação e a reintegração desses indivíduos na sociedade. Esse modelo, que tem ganhado força em países como Nova Zelândia, Canadá e Portugal, já começa a ser discutido e aplicado em algumas esferas do sistema de justiça no Brasil, com a implementação de práticas como a Justiça Restaurativa e a Mediação Penal. A evolução do sistema penal brasileiro poderá seguir essa tendência internacional, movendo-se do encarceramento massivo para um foco maior em alternativas penais que visem à reintegração social do criminoso.
Contudo, a adoção de modelos restaurativos no Brasil enfrenta desafios significativos. A cultura punitiva ainda predomina na sociedade, e a resistência ao conceito de “perdão” ou “reparação” pode ser um obstáculo substancial. A sociedade brasileira precisa, portanto, passar por um processo de mudança cultural, que permita a aceitação de que a punição não é a única forma de garantir justiça.
A superlotação das prisões brasileiras continua a ser uma das questões mais urgentes a ser abordada. O sistema carcerário está no limite de sua capacidade, com mais de 900 mil pessoas encarceradas, segundo dados do Word Prison Brief, e uma ocupação de cerca de 135% em relação à capacidade oficial. Essa realidade gera uma série de problemas, como a violação dos direitos humanos, a falta de condições adequadas de trabalho e de acesso a serviços. O Estado brasileiro possui atualmente déficits de mais de 174 mil vagas no sistema prisional, com aproximadamente 664 mil pessoas custodiadas frente a capacidade total de pouco mais de 488 mil lugares.
A perspectiva futura passa pela implementação de reformas estruturais nas unidades prisionais, com uso de penas alternativas e ampliação dos regimes aberto e semiaberto.
Em termos de políticas públicas, o foco deverá estar na humanização das prisões e no incentivo ao uso de tecnologias para monitoramento eletrônico, permitindo que um número maior de indivíduos cumpra penas em regime aberto ou semiaberto, com o acompanhamento das autoridades competentes. Essa mudança de paradigma seria um passo importante para reduzir a superlotação e melhorar as condições dos presos.
As inovações tecnológicas e o uso da inteligência artificial (IA) são uma tendência crescente nos sistemas penais de vários países, incluindo o Brasil. Ferramentas como o monitoramento eletrônico, a análise preditiva de crimes e o uso de algoritmos para avaliar a reincidência criminal são exemplos de como a tecnologia pode ser incorporada ao sistema de justiça. No Brasil, a implementação de tecnologias ainda é limitada, mas é possível que nos próximos anos haja uma expansão do uso de ferramentas tecnológicas para monitorar criminosos, evitando a superlotação das prisões e oferecendo alternativas à privação de liberdade. A IA também pode ser usada para otimizar o trabalho dos juízes e promotores, acelerando o processamento de casos e aumentando a eficiência do sistema.
No entanto, o uso de IA também levanta questões éticas e jurídicas, como o risco de discriminação algorítmica e a violação da privacidade dos cidadãos. É crucial que o Brasil desenvolva políticas públicas claras para a utilização da tecnologia no sistema penal, garantindo que ela seja usada de maneira transparente e justa, respeitando os direitos fundamentais dos indivíduos.
Embora a reforma do sistema penal deva ser uma prioridade, a segurança pública, especialmente no que se refere à criminalidade organizada e ao tráfico de drogas, continuará a ser uma preocupação central. A criminalidade organizada no Brasil tem se expandido, com facções criminosas controlando grandes áreas do território e atuando no tráfico de drogas, extorsão e outros crimes. A tendência futura será um enfoque mais integrado entre as diversas esferas de governo para combater essas organizações. Isso inclui a implementação de políticas públicas de segurança mais eficientes, que integrem o trabalho das forças de segurança, do Judiciário e do sistema penitenciário. Além disso, será essencial uma abordagem mais eficaz no combate ao tráfico de drogas, com ênfase em políticas de redução de danos, educação e tratamento de dependentes químicos.
O enfrentamento da criminalidade organizada também exigirá reformas legislativas que fortaleçam o combate ao crime organizado, como já foi demonstrado pelo recente pacote de medidas contra organizações criminosas, embora tais reformas devam ser cuidadosamente avaliadas para não exacerbarem a seletividade penal.
As políticas de prevenção à criminalidade e inclusão social são, sem dúvida, os elementos mais eficazes para evitar o ingresso de novos indivíduos no sistema penal. A pobreza, a falta de acesso à educação e à saúde, bem como a discriminação racial, são fatores que contribuem significativamente para a criminalidade no Brasil. Investir em educação de qualidade, em programas de capacitação profissional, e em políticas de combate à desigualdade social são fundamentais para a redução da criminalidade no país.
Programas de prevenção à violência, como aqueles que já existem em algumas comunidades, podem ser ampliados para todo o país. Além disso, políticas de inclusão social, como o fortalecimento de programas de assistência à juventude e à população em risco, devem ser priorizadas. Essas ações não apenas ajudam a reduzir a criminalidade, mas também contribuem para a criação de um ambiente social mais justo e equilibrado.
As perspectivas futuras do sistema penal brasileiro passam por um reexame profundo das políticas de segurança e justiça. A sociedade brasileira, cada vez mais consciente dos limites do modelo punitivo atual, precisa se unir em prol de um sistema penal mais justo, humano e eficaz. As tendências globais, como a justiça restaurativa, o uso de tecnologias e a ênfase nas políticas de prevenção, podem ajudar a reformar um sistema penal que, por muito tempo, tem sido ineficaz e discriminatório.
A implementação dessas reformas, no entanto, dependerá de uma mudança cultural e política profunda, que permita à sociedade brasileira repensar suas noções de justiça, punição e reintegração. O futuro do sistema penal no Brasil não está escrito, mas com coragem, inovação e compromisso com os direitos humanos, é possível criar um sistema mais justo e eficiente para todos os cidadãos.
12. A Influência da Mídia e da Opinião no Sistema Penal Brasileiro
A mídia desempenha um papel crucial na formação da opinião pública sobre o sistema penal, especialmente no Brasil, onde os temas relacionados à criminalidade e à segurança são tratados com grande intensidade. O tratamento dado aos crimes e aos criminosos nos meios de comunicação reflete diretamente as atitudes sociais, muitas vezes contribuindo para a estigmatização de certos grupos e alimentando a percepção de que a solução para a violência está no aumento das penas e no encarceramento em massa. Nesse sentido, Da Silva Leal e Jeremias afirmam que:
“a mídia, em especial […] tende à interpretação e potencializa acontecimentos criminais, conformando as percepções da sociedade em relação ao crime” (LEAL, JEREMIAS, 2015).
A forma como os meios de comunicação retratam os eventos criminosos têm uma grande influência sobre as políticas públicas adotadas pelo Estado, o que gera impactos diretos nas práticas do sistema penal.
A mídia, ao cobrir casos de crimes violentos ou de grande repercussão, muitas vezes distorce a realidade, criando uma narrativa sensacionalista e tendenciosa. Esse tipo de cobertura, ao se concentrar na figura do “inimigo público”, reforça a ideia de que a solução para o aumento da criminalidade está no endurecimento das leis, na ampliação do sistema penal e no uso exacerbado da força policial. Em muitos casos, a mídia favorece uma perspectiva punitiva, associando a criminalidade exclusivamente a classes mais baixas e marginalizadas da sociedade, criando uma visão distorcida sobre quem são os “culpados” pela violência.
Esse fenômeno, que reflete uma visão simplista e reducionista da criminalidade, influencia diretamente a opinião pública, que passa a exigir soluções rápidas e rígidas. A busca por punições mais severas, como o aumento da prisão preventiva, a ampliação do encarceramento e a redução da maioridade penal, são algumas das respostas imediatas à pressão gerada pela mídia. Ao focar nas histórias de crimes violentos e nos rostos de criminosos, a mídia cria uma sensação de insegurança, que leva a sociedade a adotar, muitas vezes, medidas punitivas que não se mostram eficazes na redução da criminalidade.
Em um país como o Brasil, onde a desigualdade social é uma questão central, a maneira como a mídia aborda o crime também reforça a ideia de que certos grupos são mais propensos à criminalidade. Indivíduos de classes mais baixas, muitas vezes negros ou de origem periférica, acabam sendo estigmatizados pela mídia como criminosos em potencial, o que perpetua um ciclo de exclusão social e criminalização. Essa visão seletiva e discriminatória reforça a desigualdade do sistema penal, que, em muitos casos, pune de forma desproporcional aqueles que já são marginalizados pela sociedade.
O impacto da mídia na construção do sistema penal brasileiro é profundo. A pressão pela adoção de medidas mais duras e pela implementação de políticas punitivas é, em grande parte, alimentada por uma cobertura midiática que exagera a percepção de ameaça e criminaliza certos grupos sociais. Para transformar essa dinâmica, é fundamental uma mudança no modo como o crime e o criminoso são representados nos meios de comunicação, de modo a evitar que as decisões políticas sejam tomadas com base em estigmas e preconceitos. Além disso, é essencial que se desenvolva uma abordagem mais informada e crítica da mídia sobre as causas estruturais da criminalidade, abordando as questões de desigualdade social, falta de educação e exclusão, que são as verdadeiras raízes do problema.
Assim, a relação entre a mídia e o sistema penal no Brasil é um reflexo das tensões e contradições de uma sociedade que ainda não encontrou formas adequadas de lidar com a criminalidade e a justiça. A influência da mídia sobre a opinião pública não pode ser ignorada, pois ela determina, em grande medida, as respostas do Estado à criminalidade. A construção de um sistema penal mais justo e equilibrado passa pela desconstrução desses mitos e pela adoção de uma abordagem mais racional e eficaz no enfrentamento da criminalidade. A mudança não deve ser apenas no sistema penal em si, mas também na forma como a sociedade compreende e lida com o fenômeno da criminalidade.
13. O Papel da Educação e da Reintegração Social no Sistema Penal
A educação e a reintegração social são, sem dúvida, aspectos essenciais quando se trata de transformar o sistema penal brasileiro em um espaço de real reabilitação e reintegração dos infratores. Não basta apenas punir, é necessário oferecer alternativas que possibilitem o resgatar do indivíduo e sua reintegração à sociedade. No entanto, o sistema penitenciário brasileiro, em grande parte, falha nesse aspecto, uma vez que a superlotação e as condições desumanas das prisões impedem a implementação eficaz de programas de educação, trabalho e reabilitação. A reclusão, por sua vez, acaba tornando-se um mecanismo de exclusão social, em vez de uma oportunidade para a reintegração do infrator.
A educação no contexto prisional é um direito garantido pela Constituição Brasileira e pela Lei de Execução Penal, que prevê a oferta de ensino fundamental, médio e até superior aos detentos. No entanto, a realidade enfrentada por grande parte da população carcerária é distante dessa previsão legal. Em muitos estados, as condições de ensino são precárias ou inexistem, devido à falta de recursos, infraestrutura e profissionais qualificados. Esse cenário contribui para que os detentos permaneçam alheios à sociedade e com poucas oportunidades de desenvolvimento pessoal, o que aumenta as chances de reincidência após o cumprimento da pena.
A reintegração social também exige que o sistema penal adote uma abordagem mais humanizada e voltada para a recuperação do indivíduo, com ênfase em programas que promovam o autoconhecimento, a capacitação profissional e a construção de novas perspectivas de vida. Quando bem implementados, esses programas têm o potencial de reduzir a reincidência criminal e melhorar a qualidade de vida dos detentos. No entanto, é necessário que as políticas públicas direcionadas a esses objetivos sejam mais eficazes e não se limitem a promessas vazias de reformulação do sistema penal. É preciso garantir que os detentos recebam a educação e o suporte necessários para se reintegrar à sociedade de maneira produtiva e respeitosa.
Além disso, é fundamental que a sociedade, como um todo, adote uma postura mais receptiva e inclusiva em relação aos ex-detentos, oferecendo a eles condições dignas de trabalho e convivência. A exclusão social, em muitos casos, começa após o cumprimento da pena, quando o indivíduo enfrenta barreiras significativas para encontrar um emprego ou acessar serviços públicos essenciais. A criminalização de sua história de vida torna-se um obstáculo para sua reintegração plena, perpetuando o ciclo de criminalidade.
O sistema penal brasileiro carece de uma abordagem mais eficaz no que diz respeito à reabilitação e reintegração social dos infratores. Apenas punir não resolve o problema da criminalidade. A transformação das prisões em espaços de aprendizado, reabilitação e capacitação, acompanhado de políticas públicas que favoreçam a reintegração de ex-detentos, são essenciais para garantir que os indivíduos não apenas paguem por seus crimes, mas também tenham a oportunidade de se transformar e contribuir positivamente para a sociedade.
Essa abordagem integral e humanizada, que prioriza a educação e o apoio psicológico, é a chave para reduzir as taxas de reincidência e promover uma verdadeira justiça restaurativa, capaz de reverter os efeitos negativos do sistema penal atual. A verdadeira justiça não deve se limitar à punição, mas sim à transformação dos indivíduos em cidadãos capazes de conviver de maneira pacífica e produtiva com a sociedade.
14. O Desafio da Descriminalização e da Reforma Penal: Perspectivas para o Futuro
A discussão sobre o sistema penal brasileiro não se limita à análise do funcionamento das prisões ou à reflexão sobre a eficácia das penas aplicadas. Um dos pontos centrais desta reflexão é a necessidade de reformulação das próprias bases do sistema penal, com ênfase na descriminalização de determinadas condutas e na adoção de medidas alternativas à prisão. Nesse sentido, a reforma penal proposta em diversas esferas da sociedade brasileira surge como um caminho para corrigir as falhas estruturais do modelo atual e responder a um modelo que, além de ser ineficaz, contribui para o agravamento da desigualdade social.
A criminalização de certos comportamentos, especialmente os relacionados a drogas, como o tráfico e o uso, tem sido objeto de intenso debate. A guerra às drogas, adotada como política pública nos últimos anos, não tem se mostrado eficaz na redução da criminalidade e tem gerado efeitos colaterais devastadores para a população mais vulnerável, especialmente as camadas mais pobres e negras da sociedade. Essa política de criminalização massiva tem levado à superlotação do sistema penal e ao aumento da violência policial, sem, no entanto, resolver os problemas sociais que originam o tráfico e o consumo de substâncias ilícitas.
O desafio da descriminalização das drogas não significa, de forma alguma, apoiar o uso indiscriminado e irresponsável de substâncias. No entanto, a abordagem penal, que muitas vezes pune o usuário com penas severas, resulta apenas na marginalização e estigmatização, sem promover qualquer tipo de transformação social. A descriminalização, por outro lado, poderia abrir portas para políticas de saúde pública mais eficazes, que tratam o consumo de drogas como um problema de saúde, e não como um ato criminal. Países que adotaram essa abordagem, como Portugal, apresentam dados positivos em termos de redução de crimes relacionados a drogas e melhoria da qualidade de vida da população.
Além disso, a reforma penal deve ser pensada para incluir um sistema de penas mais diversificado e justo. O uso indiscriminado da prisão preventiva e o encarceramento em massa têm sido uma resposta falha e contraproducente aos problemas de criminalidade. A criação de medidas alternativas, como a prisão domiciliar, o monitoramento eletrônico e a aplicação de penas não privativas de liberdade, representa uma maneira mais eficaz de lidar com determinados tipos de crimes, ao mesmo tempo que desafoga o sistema penitenciário e permite que os infratores cumpram suas penas de maneira mais humanizada.
É essencial que o Brasil repense a lógica punitiva que orienta sua justiça penal, adotando um modelo que priorize a reabilitação, a reintegração e a justiça restaurativa, em detrimento da punição exacerbada. A reforma penal deve ir além da simples mudança de leis e se voltar para uma transformação profunda na maneira como a sociedade vê o crime, a punição e a recuperação do infrator. Isso implica, também, a revisão do conceito de criminalização, buscando uma abordagem mais justa, equitativa e humana, que não se baseie apenas na moralidade do comportamento, mas no impacto social e na eficácia das políticas implementadas.
O desafio da descriminalização e da reforma do sistema penal no Brasil é complexo, mas não impossível. Ao adotar uma perspectiva mais progressista e menos punitiva, é possível avançar para um modelo de justiça mais igualitário, que respeite os direitos humanos e promova a verdadeira reintegração dos indivíduos à sociedade, em vez de perpetuar o ciclo de violência e exclusão.
15. A Influência das Disparidades Sociais no Processo Penal: O Impacto da Classe e Raça nas Decisões Judiciais
O sistema de justiça penal brasileiro está intrinsecamente ligado às desigualdades sociais e raciais que permeiam a sociedade. A aplicação da lei, muitas vezes, não é cega, mas reflete as desigualdades estruturais presentes em diversos aspectos da vida cotidiana. A classe social e a raça têm grande influência sobre o tratamento dispensado aos acusados, a forma como os processos são conduzidos e as sentenças proferidas. As disparidades no tratamento dos indivíduos no sistema penal são evidentes, com a população negra e pobre sendo mais frequentemente alvo da criminalização e da punição.
As estatísticas sobre a população carcerária brasileira revelam uma realidade alarmante: uma grande parcela dos presos é composta por pessoas negras e de classes sociais mais baixas. Embora o Brasil seja uma nação que se diz democrática e igualitária, a justiça penal não é tratada da mesma forma para todos os cidadãos. As pessoas negras, em particular, enfrentam discriminação tanto dentro quanto fora do sistema de justiça, com maior probabilidade de serem abordadas, acusadas e presas, independentemente de sua real participação em qualquer ato criminoso.
Além disso, a classe social desempenha um papel determinante na forma como os réus são tratados no processo penal. Indivíduos de classes mais altas frequentemente conseguem se beneficiar de advogados renomados e de melhores condições de defesa, o que pode resultar em um tratamento mais favorável no decorrer do processo. Por outro lado, os acusados de classes sociais mais baixas, muitas vezes, têm acesso limitado à defesa e às garantias processuais, o que compromete a equidade do julgamento. A falta de recursos adequados e a presença de defensores públicos sobrecarregados contribuem para a perpetuação dessas desigualdades, resultando em um sistema penal onde a justiça não é verdadeiramente acessível para todos.
Essa disparidade no tratamento penal, com um enfoque discriminatório voltado para os mais pobres e negros, está enraizada em uma estrutura social que valoriza as classes sociais superiores e marginaliza as classes mais baixas. A criminalização de certos comportamentos, muitas vezes vinculados a essas classes marginalizadas, como o tráfico de drogas, resulta em uma seletividade penal que desproporcionalmente afeta esses indivíduos. Por outro lado, crimes cometidos por pessoas de classes sociais mais altas, que muitas vezes envolvem fraudes, corrupção e crimes financeiros, são tratados com mais leniência, devido à maior capacidade de defesa e à percepção de que esses crimes são de “menor importância”.
Para enfrentar essas desigualdades, é fundamental uma mudança de paradigma que passe a enxergar o processo penal não apenas sob a ótica da punição, mas também com foco na reparação das injustiças estruturais que perpetuam essas disparidades. Isso envolve a implementação de políticas públicas que garantam o acesso igualitário à justiça, a revisão das práticas discriminatórias e a adoção de medidas que busquem uma abordagem mais justa e equitativa para todos os cidadãos, independentemente de sua classe social ou cor da pele.
O sistema penal precisa ser reformulado para promover uma justiça que seja verdadeiramente acessível a todos, sem distinção. A crítica à seletividade penal, que reflete as desigualdades sociais e raciais, deve ser central em qualquer discussão sobre a reforma do sistema de justiça no Brasil. Somente por meio da conscientização, da educação e da implementação de reformas concretas será possível romper com o ciclo de desigualdade que ainda impera no sistema penal, assegurando que a justiça seja, de fato, aplicada de forma igualitária e imparcial.
16. O Papel da Sociedade na Reformulação do Sistema Penal: Responsabilidade Coletiva e Ações Transformadoras
A reformulação do sistema penal brasileiro não pode ser vista como uma tarefa exclusiva do poder legislativo ou do judiciário. A sociedade, enquanto principal destinatária das políticas públicas, desempenha um papel crucial no processo de transformação do sistema de justiça penal. O envolvimento ativo da sociedade é fundamental para que as reformas no sistema penal sejam efetivas e sustentáveis. A conscientização, a educação e a ação coletiva são instrumentos indispensáveis para alcançar um sistema penal mais justo, humano e igualitário.
A sociedade brasileira precisa repensar seu papel diante do sistema penal. Em muitos casos, existe uma cultura punitiva arraigada, que vê a prisão como a única solução para os problemas de criminalidade, sem considerar outras alternativas de justiça. A falta de uma reflexão crítica sobre as causas estruturais da criminalidade, como a pobreza, a desigualdade social, a educação deficiente e a falta de oportunidades, faz com que o sistema penal continue a ser uma ferramenta de exclusão e marginalização, em vez de uma oportunidade de transformação e reintegração social.
A responsabilidade da sociedade não se limita apenas ao apoio à reforma legislativa ou à demanda por uma justiça mais equitativa. É necessário que a sociedade compreenda o impacto das desigualdades no processo penal e que se envolva ativamente na construção de um sistema mais justo. Isso inclui o combate à estigmatização dos ex-detentos, a promoção de políticas públicas voltadas para a educação e a reintegração dos indivíduos ao mercado de trabalho, e a criação de espaços de diálogo sobre o papel da punição na sociedade.
Além disso, a sociedade deve ser capaz de questionar e reformular a ideia de segurança pública que temos, indo além da ideia de punição e violência. A segurança pública deve ser compreendida de forma mais ampla, como a garantia de direitos sociais, econômicos e culturais, e não apenas como um mecanismo de controle e repressão. Nesse sentido, as políticas de segurança pública devem ser formuladas com base na prevenção em vez de se concentrar apenas na repressão do crime. O investimento em educação, saúde, habitação e políticas de inclusão social são fundamentais para reduzir as taxas de criminalidade e proporcionar uma verdadeira sensação de segurança à população.
A mudança do sistema penal brasileiro depende, portanto, de um esforço coletivo que envolva todos os segmentos da sociedade: do poder público às organizações da sociedade civil, passando por cidadão. A conscientização sobre os efeitos negativos do encarceramento em massa, a defesa de políticas de justiça restaurativa e o apoio à reintegração dos ex-detentos são ações que exigem um compromisso coletivo em favor de um sistema mais justo e menos punitivo. A responsabilidade da sociedade não é apenas de protestar contra os abusos do sistema penal, mas de se engajar ativamente na criação de um modelo de justiça mais humano e transformador.
17. Conclusão: Caminhos para a Reformulação do Sistema Penal Brasileiro: Entre a Desigualdade e a Humanização
A humanização do sistema penal brasileiro é um desafio complexo, que exige não apenas a revisão das normas e práticas punitivas, mas também uma mudança profunda na mentalidade de todos os envolvidos no processo: dos legisladores aos operadores do direito, das autoridades policiais aos membros do judiciário, e até mesmo da sociedade como um todo. O sistema penal, que historicamente foi voltado para a punição e a exclusão social, precisa se transformar em um sistema que favoreça a reabilitação, a reintegração e, principalmente, a dignidade humana.
Um dos maiores desafios para alcançar a humanização do sistema penal é a resistência à mudança. A ideia de que a punição é a única resposta para o crime está enraizada na cultura punitiva brasileira, que tende a ver o infrator como alguém que deve ser excluído da sociedade em vez de alguém que precisa de apoio para reintegrar-se e reconstruir sua vida. Esse modelo punitivo, que se baseia principalmente na prisão como ferramenta de controle, é ineficaz, pois não resolve as causas subjacentes do crime, como a pobreza, a falta de acesso à educação e a exclusão social.
A humanização exige uma abordagem que vá além do simples encarceramento e que envolva medidas alternativas de punição, como a prestação de serviços à comunidade, a justiça restaurativa e o acompanhamento psicológico. A aplicação dessas medidas pode reduzir a superlotação carcerária e promover a ressocialização dos indivíduos, permitindo-lhes uma segunda chance na sociedade. Além disso, é importante lembrar que a humanização não se resume ao tratamento dos presos, mas também à promoção de um sistema que valorize os direitos dos trabalhadores do sistema penitenciário e as condições de trabalho dos profissionais da segurança pública e do judiciário.
Outro aspecto essencial para a humanização do sistema penal é a educação. O sistema penitenciário, em muitos casos, funciona como um repositório de pessoas desamparadas, sem acesso à educação, ao trabalho e à formação profissional. Em vez de se concentrar apenas no castigo, o sistema penal deve ser encarado como uma oportunidade para promover a capacitação, o desenvolvimento de habilidades e a preparação para o retorno à sociedade. Isso não só contribui para a reintegração dos presos, mas também para a diminuição da reincidência criminal, uma vez que oferece aos indivíduos a possibilidade de reconstruir suas vidas de maneira digna.
Em paralelo a essas questões, também é fundamental repensar as condições de encarceramento, que muitas vezes violam os direitos humanos básicos. A superlotação, a falta de infraestrutura adequada, o tratamento degradante e a falta de serviços de saúde e educação dentro dos presídios são aspectos que precisam ser revistos para garantir que o sistema penal cumpra sua função de reintegração de forma efetiva e humanizada.
Porém, para que essas mudanças ocorram de forma efetiva, é necessário o comprometimento de todos os atores envolvidos, bem como uma mudança na mentalidade da sociedade brasileira. A criminalização das questões sociais, como a pobreza e a marginalização, não pode ser a base do sistema penal. Pelo contrário, é necessário um enfoque que busque compreender as causas do crime, oferecendo alternativas à prisão e promovendo a inclusão social, o acesso a direitos básicos e a garantia de oportunidades.
A humanização do sistema penal não deve ser vista como uma utopia, mas como um processo possível e necessário para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É urgente que o Brasil se comprometa com a transformação do sistema de justiça penal, colocando em prática medidas que garantam a dignidade dos indivíduos, a justiça social e a reintegração dos condenados, em vez de perpetuar um ciclo de punição, exclusão e violência.
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1 É um conceito central em criminologia que enfatiza como a sociedade define e rotula certos comportamentos e indivíduos como criminosos, influenciando assim a sua conduta futura..
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
LIMA, Gabryel Fraga. A Sobrevivência do Criminoso Nato: A atualidade da Teoria Lombrosiana sob Novas Roupagens no Sistema Penal. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-sobrevivencia-do-criminoso-nato-a-atualidade-da-teoria-lombrosiana-sob-novas-roupagens-no-sistema-penal/. Acesso em: 17/09/2025.