A seletividade tributária em Rousseau e breve comentário sobre a ineficiência da seletividade
Autores
Resumo
A organização dos povos na forma dos Estados que hoje conhecemos é essencialmente ligada aos ideais liberais do Século XVIII. O pensamento Rousseuaniano abordava as questões da tributação sobre consumo e renda, defendendo a aplicação da seletividade. A ideia da seletividade, enquanto ideal lliberal, demonstra-se na contemporaneidade como um fator de desigualdade tributária incapaz de cumprir o seu propósito. O presente artigo desdobra-se em uma breve análise sobre o pensamento Rousseauniano sobre o tema e os efeitos da seletividade na injustiça tributária presente no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-ChaveDIREITO - FILOSOFIA - TRIBUTAÇÃO - SELETIVIDADE - ROUSSEAU
Abstract
The organization of the people in the form of States that we know today is essentially linked to the liberal ideals of the 18th century. Rousseuanian thought addressed the issues of taxation on consumption and income, defending the application of selectivity. The idea of selectivity, as a liberal ideal, is demonstrated in contemporary times as a factor of tax inequality incapable of fulfilling its purpose. This article unfolds in a brief analysis of Rousseau's thinking on the subject and the effects of selectivity on tax injustice present in the Brazilian legal system.
KeywordsLAW - PHILOSOPHY - TAXATION - SELECTIVITY - ROUSSEAU
1. INTRODUÇÃO
A organização dos povos na forma dos Estados que hoje conhecemos é essencialmente ligada aos ideais liberais do Século XVIII. Jean-Jacques Rousseau se dedicou em seu “Discurso sobre a Desigualdade Econômica” a avaliar o poder-dever do Estado de instituir tributos como forma de regular a economia, a sociedade e perseguir o fim de garantir uma sociedade justa. O autor genebrino desdobra-se nos estudos sobre a tributação romana, mas em relação ao princípio da seletividade – e essencialidade – o autor remonta ao então, Estado Chinês Imperial, buscando discutir quais seriam os efeitos de uma tributação seletiva em consumo utilizando-se da essencialidade como forma de garantir arrecadação para persecução dos fins do Estado, ao mesmo tempo como utilização de regulação do mercado. Dessa forma, o presente artigo demonstrará como o autor genebrino enxerga o tema e comparará, de forma sucinta, o direito brasileiro com as ideias do autor iluminista, demonstrando as falhas no pensamento do autor genebrino.
2. A SELETIVIDADE TRIBUTÁRIA NO PENSAMENTO ROUSSEAUNIANO E A SUA INEFICIÊNCIA EM PROMOVER JUSTIÇA TRIBUTÁRIA
A tributação incide sobre fatos geradores ligados a “ser”, “ter”, “dar”, “emprestar” e “receber”, dentre outros. No direito brasileiro, os principais impostos podem se dividir entre aqueles que incidem sobre patrimônio e renda e aqueles que se dividem sobre consumo, sejam de serviços ou de bens. Portanto, enquanto o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU – incide sobre um patrimônio (a propriedade de imóvel urbano), o Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISS ou ISSQN – incide sobre o consumo de serviços. A seletividade, portanto, se direciona especialmente como forma de atenuação sobre os impostos incidentes em consumo. Entretanto, no texto constitucional, a técnica da seletividade se destina a apenas dois impostos: O Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços – ICMS – e o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI –[1]. Porém, é necessário apresentar o conceito de seletividade tributário segundo a atual doutrina jurídica:
A seletividade é forma de concretização do postulado da capacidade contributiva em certos tributos indiretos. Nestes, o postulado da capacidade contributiva será aferível mediante a aplicação da técnica da seletividade, uma evidente forma de extrafiscalidade na tributação. Mais do que isso, apresenta-se a seletividade como uma inafastável expressão de praticabilidade na tributação, inibitória da regressividade, na medida em que se traduz em meio tendente a tornar simples a execução do comando constitucional, apresentável por meio da fluida expressão “sempre que possível”, constante do art. 145, § 1º, CF. A seletividade mostra-se, assim, como o “praticável” elemento substitutivo da recomendada pessoalidade, prevista no citado dispositivo, no âmbito do ICMS e do IPI, como a solução constitucional de adaptação de tais gravames à realidade fático-social. (SABBAG, 2017, p. 243)
Portanto, a seletividade é uma forma de garantir que a tributação respeitará a igualdade material, pois, busca que indivíduos em situações distintas sejam tributados de acordo com a sua capacidade de arcar com o custo do tributo – capacidade contributiva – impedindo assim distorções nas quais os mais ricos pagam o mesmo valor em espécie de tributos que os mais pobres. A forma que a seletividade atua é direcionando aos serviços essenciais, garantindo que as alíquotas de produtos e serviços essenciais – e, portanto, com a presunção que os mais pobres consomem – serão menores, de forma a onerar menos, enquanto os produtos considerados supérfluos – que contam com a presunção de que os mais ricos são os que consomem esses bens e serviços – terão alíquotas mais altas.
Um exemplo da utilização da seletividade no caso concreto pode ser apresentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF – que determina:
Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços. [2]
Logo, é clara a utilização da seletividade: Uma técnica que busca fixar as alíquotas de acordo com a essencialidade do serviço e bem e, no caso concreto, o Supremo Tribunal Federal definiu que os serviços de fornecimento de energia elétrica e telecomunicação são serviços essenciais e, portanto, não podem ser tributados em patamares superiores aos das operações em geral. Há, porém, grandes problemas nos efeitos práticos da seletividade e sua ineficiência, mas primeiro, é importante rastrear as origens dessa técnica no ocidente:
É o que se costuma fazer na China, país onde os impostos são mais elevados e, contudo, a sua arrecadação é mais eficiente do que em qualquer outro país. Na China não é o comerciante que paga o tributo, mas só o comprador, sem revolta ou murmúrios. Com respeito às necessidades básicas da vida, como o arroz e o milho, elas estão totalmente isentas de imposto. As pessoas comuns não são oprimidas, e os tributos recaem somente sobre os que dispõem de recursos. (ROUSSEAU, 2017, p. 40)
Percebe-se que já no período pré-revolução francesa, autores iluministas defendiam a seletividade e apontavam o modelo tributário da China imperial como exemplo da seletividade sendo utilizada para garantir que os tributos não recaiam sobre os produtos mais essenciais. O autor genebrino reforça o valor da seletividade:
Impostos pesados devem ser aplicados aos criados uniformizados, mobiliário faustoso, belas roupas, jardins espaçosos, aos divertimentos públicos de todos os tipos; às profissões inúteis, tais como a dos dançarinos, cantores, jogadores; em uma palavra, a todos os múltiplos objetos de luxo, diversão e ociosidade, que sejam visíveis a todos, e são difíceis de ocultar, pois o seu objetivo é justamente a exposição, sem a qual perderiam o sentido. Não devemos preocupar-nos com o efeito arbitrário desses impostos, porque eles atingem coisas que não são em absoluto necessárias. (ROUSSEAU, 2017, p. 41)
No trecho citado, há uma escalada no discurso a favor da aplicação da seletividade, afirmando que a tributação sobre o consumo deve ser utilizada como forma de arrecadar sobre os bens supérfluos e desnecessários, pois, na visão do autor, esses objetos de luxo são desnecessários e que a tributação pesada nesses bens e serviços não afetariam os mais pobres. É clara a noção da capacidade contributiva no pensamento do autor iluminista. Isso se torna mais evidente quando o autor afirma que a seletividade não geraria redução do consumo desses bens:
Conhece mal a humanidade quem imagina que, uma vez seduzidas pelo luxo, as pessoas podem renunciar a ele; prefeririam cem vezes renunciar às necessidades comuns, para morrer de fome e não de vergonha. O aumento das suas despesas não passa de um motivo adicional para suportar tais gastos, já que a vaidade de parecer rico ganha com o preço dos objetos e o custo do imposto. Enquanto houver pessoas ricas neste mundo, elas quererão distinguir- se dos pobres, e o Estado não poderá criar uma fonte de renda menos penosa ou mais segura do que a resultante dessa distinção. (ROUSSEAU, 2017, p. 41-42).
Abre-se aqui uma observação sobre uma grande falha no pensamento do autor – compreensível, tendo em vista que não se havia ainda estudos econômicos extensos sobre o fator da tributação no consumo – que erroneamente acreditava que a tributação pesada em bens supérfluos não afetaria o consumo desses bens. O grande argumento contra a tributação pesada sobre determinados bens em relação aos outros é a denominada “curva de laffer”. A Curva de Laffer consiste na ideia de que existe um ponto de equilíbrio entre tributação e o Produto Interno Bruto e, até um certo ponto, a tributação leva ao aumento da arrecadação, mas a partir de certo ponto, o consumo é inibido e, por isso, a arrecadação tributária efetivamente cai. (SILVA, 2021, p. 2)
Aplicando a Curva de Laffer, a noção de que os ricos preferem se manter a todo e qualquer custo com as aparências e, consequentemente, pagando impostos pesados, não condiz com a realidade apontada pelas pesquisas no campo econômico e os efeitos da tributação.
A seletividade como forma de onerar maiores demonstrações de riqueza é entendimento consensual na doutrina. Alguns autores afirmam que a seletividade tributária foi absorvida pela jurisprudência e doutrina tributária sem uma análise crítica sobre suas consequências e, com isso, gerando distorções e injustiças tributárias [3].
Mesmo uma análise dedutiva é capaz de desvendar as falhas do uso da seletividade tributária. Um exemplo é o fato de que os bens e serviços essenciais não são utilizados apenas pelos mais pobres, mas também pelos mais ricos. Energia elétrica, internet, arroz e outros bens e serviços essenciais são utilizados tanto pelos pobres quanto pelos mais ricos, logo, a seletividade não contribui de fato para a capacidade contributiva, mas sim gera benefícios para todos, incluindo os mais ricos, tendo em vista que esses não pagarão, ou pagarão a menos, impostos sobre bens e serviços essenciais. Outra consequência é a de que por mais que se aumente as alíquotas, os mais ricos são mais capazes de arcar com os impostos elevados em bens “supérfluos”. Dessa forma, o que a seletividade ocasiona é dificultar aos mais pobres o acesso a produtos e serviços que, apesar de supérfluos, podem ser de grande utilidade ou desfrute. A seletividade aplicada da forma que é, advém de uma cosmovisão que aos mais pobres basta o essencial, como comer, dormir e beber, não sendo para o “bico dos mais pobres” os prazeres da vida. Itens como vinhos, viagens, restaurantes bons, são apenas para os mais ricos, o pobre não tem interesse, ele deve viver apenas para viver e gastar seu dinheiro apenas para isso. É uma técnica que na prática segrega e dificulta aos mais pobres ter acesso a uma maior qualidade de vida.
Logo, a seletividade, apesar de ser usada para mitigar os efeitos nos mais pobres e a injustiça tributária, acaba gerando um bloqueio aos mais pobres. Dessa forma a denominada “essencialidade” adotada pela doutrina, lei e jurisprudência, acaba sendo mais um instrumento justificador da política fiscal, mas pouco contribui para verdadeira justiça tributária. A seletividade acaba servindo também como instrumento extrafiscal para priorizar e incentivar determinados setores da indústria em detrimento de outros e, ao mesmo tempo, serve como um impedimento para uma reforma na tributação sobre a renda.
Importante destacar que a reforma tributária, ao adicionar o Imposto sobre Bens e Serviços e a Contribuição de Bens e Serviços, busca reduzir o impacto do imposto sobre o consumo na economia do país. Segundo um estudo do Senado, os impostos sobre bem e serviços representaram, em 2022, 40,2% da receita tributária do Brasil[4] e os estudos do Senado apontam que a Reforma Tributária diminuirão esse impacto para um patamar entre 20 a 30%[5].
Porém, a reforma mantém a linha de mitigação dos efeitos da tributação sobre o consumo e se recusa a atuar por meio de tributação sobre renda. A necessidade da eliminação de tributos indiretos com a substituição de uma instituição mais ampla e unificada de impostos sobre rendas apresenta-se como uma alternativa ao atual sistema hibrídio pátrio que busca a coexistência do Imposto de Renda com o ICMS, ISS, IPI e, após a completa implementação da reforma tributária, o IBS.
3. CONCLUSÃO
A Constituição da República é expressa ao afirmar que é fundamento da República Federativa do Brasil garantir a dignidade da pessoa humana. A tributação é um instrumento fiscal, mas igualmente, possui um importante papel extrafiscal para persecução da carga axiológica constante do texto constitucional. A tributação sobre consumo com a técnica da seletividade e essencialidade, como trabalhada, possui íntima ligação com ideias liberais do século XVIII e, apesar de terem exercido importante papel em mitigar as distorções tributárias, demonstra-se ineficiente em garantir a justiça social. Segundo, Chieza, Duarte e Cezare, não é possível alcançar verdadeira justiça social sem se alcançar justiça fiscal[6]. Portanto, entende-se que a substituição da tributação indireta por uma tributação sobre renda e patrimônio, incluindo-se a instituição sobre grandes fortunas seria meio mais eficaz de justiça tributária do que a utilização da seletividade apenas como paliativo das distorções tributárias existentes no sistema atual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, CD e MAURIN, AF. Seletividade Tributária e Política Fiscal. Revista do Mestrado em Direito da UCB (2015).
CHIEZA, RA; DUARTE, MRP; CESARE, C. Educação fiscal e cidadania: reflexões da prática educativa. Editora da UFRGS. Porto Alegre, 2018.
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a economia política. São Paulo/SP, 2017.
SABBAG, E. Manual de Direito Tributário. Saraiva Juris. São Paulo/SP, 2017.
[1] BRASIL. arts. 153, IV, e art. 155, parágrafo 2º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 714139 com Órgão de Origem: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 714139 com Órgão de Origem: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA.
[4] Tributos sobre consumo representam 40% da arrecadação no país. Contabeis., Brasília, 06 de mar de 2024. Disponível em: < https://www.contabeis.com.br/noticias/64033/ifi-40-dos-impostos-no-brasil-sao-sobre-o-consumo/ > Acesso em 24 de set de 2024
[5] Com reforma tributária, imposto sobre consumo deve variar de 20% a 30%, diz IFI. Brasília, 18 de AUG de 2023. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/08/18/com-reforma-tributaria-imposto-sobre-consumo-deve-variar-de-20-a-30-diz-ifi Acesso em 25 de set de 2024.
[6] Tributos sobre consumo representam 40% da arrecadação no país. Contábeis., Brasília, 06 de mar de 2024. Disponível em: < https://www.contabeis.com.br/noticias/64033/ifi-40-dos-impostos-no-brasil-sao-sobre-o-consumo/ > Acesso em 24 de set de 2024
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
BRITO, Fernando Vidal.. A seletividade tributária em Rousseau e breve comentário sobre a ineficiência da seletividade. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14644585, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 14/01/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-seletividade-tributaria-em-rousseau-e-breve-comentario-sobre-a-ineficiencia-da-seletividade/. Acesso em: 24/04/2025.