A Influência do Programa Bolsa Família sobre Famílias de Baixa Renda: Entre a Proteção Social e o Incentivo à Procriação como Meio de Ampliação do Benefício.

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: Bruna Cristina Alves Ferreira em 2025-07-22 10:25:12

Submissão: 23/04/2025

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Gabryel Fraga Lima

Curriculo do autor: Estagiário na Promotoria de Justiça Única de Miraí/MG.

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Resumo

O presente artigo analisa criticamente os impactos do Programa Bolsa Família sobre famílias de baixa renda, com ênfase na possível indução à dependência econômica e no incentivo à procriação como meio de ampliação do benefício. Partindo da premissa de que o programa, embora concebido como ferramenta de proteção social, vem produzindo distorções em sua aplicação prática, a pesquisa destaca a ausência de mecanismos de transição para o mercado formal de trabalho, bem como a vinculação direta entre o número de filhos e o valor do auxílio recebido. Com base em fundamentos jurídicos e constitucionais, examina-se como tais fatores comprometem princípios como a dignidade da pessoa humana, a isonomia e a eficiência administrativa. O estudo propõe alternativas à atual estrutura do programa, como a exigência de comprovação de busca ativa por emprego e a criação de uma fila nacional de colocação profissional, sob pena de exclusão do benefício. Conclui-se que o verdadeiro compromisso com a superação da pobreza não está na manutenção de políticas de assistência permanente, mas na construção de estratégias que promovam a emancipação social do indivíduo.

Palavras-Chave

Bolsa Família. Proteção Social. Procriação. Dependência Econômica. Princípios Constitucionais. Emancipação.

Abstract

This article presents a critical analysis of the impacts of the Bolsa Família Program on low-income families, with a focus on the potential inducement of economic dependency and the encouragement of procreation as a means to increase the benefit amount. Based on the premise that the program, although conceived as a social protection tool, has produced distortions in its practical application, the research highlights the absence of mechanisms for transitioning to the formal labor market, as well as the direct link between the number of children and the value of the aid received. From a legal and constitutional perspective, it examines how these elements undermine principles such as human dignity, equality, and administrative efficiency. The study proposes alternatives to the current structure of the program, such as requiring proof of active job-seeking and the creation of a national job placement queue, under penalty of benefit cancellation. It concludes that the true commitment to overcoming poverty lies not in maintaining permanent assistance policies, but in designing strategies that foster individual social emancipation.

Keywords

Bolsa Família. Social Protection. Procreation. Economic Dependency. Constitutional Principles. Emancipation.

1. Introdução

 

A Carta Magna de 1988 consagrou, em seu artigo 6°, os direitos sociais como fundamentos essenciais para a efetivação da dignidade da pessoa humana e para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Nesse contexto, o Programa Bolsa Família surgiu como uma importante política pública de transferência de renda voltada ao combate à pobreza extrema e à promoção da inclusão social. Criado pela Lei n° 10.836/2004, o programa tem como objetivo central garantir o mínimo existencial a família em situação de vulnerabilidade, por meio da concessão de benefícios condicionados a frequência dos filhos e à realização de acompanhamento de saúde.

Todavia, a implementação prática do programa suscita questionamentos relevantes sob a ótica jurídica e socioeconômica, sobretudo, no que se refere os efeitos colaterais que podem decorrer de sua aplicação. Em determinadas regiões, observa-se a formação de uma cultura de dependência estatal em que o benefício, embora essencial à substância imediata, acaba por desestimular a inserção no mercado de trabalho. Muitas famílias deixam de procurar emprego formal, ainda que surja, oportunidades, por receio de perderem o benefício assistencial, o que configura uma distorção da finalidade originária da política pública. Além disso, relatos empíricos e estudos preliminares indicam que a possibilidade de incremento do valor recebido, proporcionalmente ao número de filhos, pode , em alguns casos, influenciar a decisão de ampliação da prole, convertendo o benefício em estratégia de subsistência a longo prazo.

Diante desse cenário, a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) teceu críticas contundentes ao programa, advertindo que:

(…) É só uma ajuda pessoal e familiar. É verdade que 11 milhões de famílias recebem no Nordeste e no Norte, mas isso levou a uma acomodação, a um empanzinamento. Parece que não há visão de crescimento, desenvolvimento e inserção (…) “A nossa sugestão seria rever profundamente. Precisamos de escolas técnicas, cursos profissionalizantes, inserção no mundo do trabalho, gerar oportunidades de estudos. Como está sendo levado adiante vicia(…).”

Desse modo, o presente artigo propões uma análise crítica dos impactos jurídicos sociais do Bolsa Família sobre famílias de baixa renda, com foco na eventual utilização do programa como instrumento indireto de incentivo à procriação e à perpetuação da condição de vulnerabilidade. Para tanto, serão examinados os princípios constitucionais aplicáveis, e função social da política pública assistencial, os limites éticos da atuação estatal e os reflexos dessa realidade no princípio da dignidade da pessoa humana. O estudo parte da premissa de que a proteção social não deve ser confundida com a manutenção artificial da pobreza, devendo o Estado atuado de modo a garantir autonomia e emancipação cidadã aos beneficiários.

 

2. A Proteção Social na Constituição Federal de 1988: Princípios e Finalidades

 

A Constituição da República Federativa de 1988 inaugurou um novo paradigma de Estado Democrático de Direito, comprometido com a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem-estar coletivo, conforme preconiza seu artigo 3°:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988)

Nesse contexto, a proteção social passou a ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico, sendo concebida com um direito fundamental de todo cidadão e um dever do Estado.

Nos termos do artigo 6° da Carta Magna, a assistência social figura entre os direitos sociais expressamente assegurados, ao lado da educação, saúde, trabalho, moradia e previdência social. O artigo 203, por sua vez, disciplina que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à seguridade social, com o objetivo de atender às necessidades básicas da população em situação de vulnerabilidade.

A proteção social, nesse modelo, não se limita ao mero assistencialismo, mas deve ser compreendida como instrumento de emancipação e de inclusão cidadã. O Estado, ao prover meios mínimos de sobrevivência, deve simultaneamente fomentar a autonomia dos indivíduos promovendo a dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o artigo 1°, inciso III da Constituição Federal de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III – a dignidade da pessoa humana;

(…)

(BRASIL, 1988)(grifo nosso)

Outro princípio constitucional que se destaca é o da função social das políticas públicas. A assistência social deve, portanto, possuir um papel transformador e não meramente paliativo. A sua eficácia deve ser mensurada não apenas pela quantidade de benefícios distribuídos, mas, sobretudo, pela capacidade de retirar pessoas da condição de pobreza e inseri-las de forma ativa na vida econômica e social do país. Nesse sentido José Afonso da Silva(2009) afirma que:

são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade”(SILVA, 2009, pp. 286-287)

Complementando esse entendimento, Ingo Wolfgang Sarlet(2009) destaca que a efetividade dos direitos fundamentais sociais não pode ser concebida apenas sob o ponto de vista da sua existência formal, mas exige, sobretudo, sua concretização prática. A partir dessa moldura constitucional, percebe-se que o dever estatal vai além da simples transferência de renda. A efetivação dos direitos sociais exige planejamento, fiscalização, metas de longo prazo e medidas que impeçam a perpetuação da dependência, sob pena de violação ao próprio ideal de justiça social proclamado pela Constituição.

Dessa forma a proteção social deve caminhar lado a lado com políticas de qualificação profissional, estímulo à empregabilidade, acesso à educação de qualidade e oportunidades de inserção no mercado forma de trabalho. O distanciamento desse modelo e a consolidação de um ciclo de dependência financeira do Estado ferem não apenas a lógica da dignidade humana, mas também a função republicana da política pública.

 

3. O Programa Bolsa Família: Aspectos Jurídicos e Estrutura Normativa

 

O Programa Bolsa Família instituído pela Lei n° 10.836, de 09 de janeiro de 2004, é apresentado como uma política de transferência de renda voltada à promoção da dignidade da pessoa humana e à erradicação da pobreza. No entanto, sob a ótica crítica proposta neste artigo, torna-se necessário ir além da narrativa oficial e examinar como sua estrutura normativa pode, na prática, produzir efeitos perversos, desviando-se de seus fins constitucionais declarados.

À primeira vista, o programa parece alinhar-se com os princípios constitucionais da assistência social, consagrados nos artigos 6° e 203 da Constituição da República. A assistência como direito de todos e dever do Estado está prevista em moldes que visam atender a situações emergenciais e promover a emancipação dos vulneráveis. No entanto, a execução normativa do Bolsa Família apresenta inconsistências que fragilizam esse ideal e revelam uma estrutura que, em vez de promover a autonomia, frequentemente estimula a permanência na condição de dependência estatal. Como aponta José Carlos Lima da Silva(2011), em sua análise sobre o programa:

Evidenciamos, através da nossa análise, a contradição existente no Programa Bolsa Família quando o programa objetiva a emancipação das famílias beneficiadas e perpetua uma dependência das mesmas.”(SILVA, 2011)

De modo alarmante, o desenho do programa vincula diretamente o valor do benefício ao número de filhos menores de idade presentes no núcleo familiar, criando, ainda que de forma não intencional, um incentivo velado à natalidade em contextos de pobreza. O aumento do repasse financeiro proporcional ao número de filhos menores matriculados na escola ou com caderneta de vacinação atualizada pode funcionar como fatos de cálculo dentro de uma lógica de sobrevivência, em que a ampliação do núcleo familiar se converte em estratégia de aumento de renda mínima. Essa preocupação é compartilhada por José Eustáquio Diniz Alves(2013), que observa:

O Programa Bolsa Família (PBF) tem um desenho parecido com o PRAF1 de Honduras. Os benefícios do PBF crescem até 5 filhos, sendo 3 crianças de 0-15 anos e até 2 adolescentes de 15 a 17 anos.”(ALVES, 2013)

Nesse cenário, o programa passa a assumir contornos que o distanciam de uma política pública emancipadora e o aproximar de um mecanismo que perpetua o estado de vulnerabilidade. O incentivo indireto a procriação como forma de amplificação do benefício reforça ciclos de pobrezas intergeracional, compromete o planejamento familiar e enfraquece políticas públicas que deveriam priorizar a capacitação, a empregabilidade e desenvolvimento humano. Larissa Verena Rocha Batista ressalta a necessidade de políticas complementares que promovam a inclusão social dos beneficiários:

“O PBF não constituirá um programa estruturante sem a oferta de reais condições ao seu público-alvo para a superação da pobreza e ampliação das chances de vida.”(BATISTA, 2009)

Sob o aspecto jurídico, essa distorção se revela particularmente preocupante. A ausência de mecanismos legais que estabeleçam uma transição segura para fora da condição de beneficiário, aliada à vinculação do benefício à composição familiar, compromete a efetividade dos princípios constitucionais da isonomia, da eficiência administrativa e da proteção integral da criança. Além disso, cria um paradoxo no qual o exercício da liberdade individual “como busca por trabalho formal” é desincentivado pelo receio de perder o amparo estatal, gerando dependência institucionalizada. Clóvis Roberto Zimmermann(2006), ao analisar os programas sociais sob a ótica dos direitos humanos, destaca:

O Bolsa Família tornou-se um dos principais programas de combate à fome no Brasil, pois para muitas famílias pobres, os benefícios desse Programa são a única possibilidade de obtenção de uma renda. Todavia, sob a ótica dos direitos humanos, esse Programa ainda apresenta uma série de obstáculos.”(ZIMMERMANN, 2006)

O vício não está apenas na concepção, mas na manutenção de uma lógica assistencialista contínua e desprovida de contrapartidas estruturantes. A legislação que sustenta o Bolsa Família ignora, em larga medida, a necessidade de inserir os beneficiários em políticas públicas de profissionalização, geração de renda ou incentivo à inserção no mercado de trabalho. Com isso, transforma o benefício em fim em si mesmo, e não em meio para superação da condição de miséria. Como observa Tiago Conde Teixeira(2015):

Este artigo busca estabelecer as relações entre o programa Bolsa Família e a justiça fiscal, demonstrando que o programa não é um favor estatal ou mero assistencialismo, afirmando que os próprios beneficiários do programa se ‘‘autofinanciam’’ em razão da alta regressividade do sistema tributário.”(TEIXEIRA, 2015)

É necessário, portando, repensar a estrutura normativa do programa à luz de sua funcionalidade prática. Ao estimular a procriação como via de aumento do benefício, o Bolsa Família deixa de ser uma ferramenta de superação da pobreza para se tornar, inadvertidamente, um mecanismo de sua reprodução. O discurso da proteção social precisa ser confrontado com os dados da realidade sob pena de se perpetuar uma política pública que, em vez de romper com a exclusão, a consolida de forma disfarçada sob o manto da solidariedade estatal.

 

4. Consequência Sociais Não Intencionadas: Dependência Econômica, Desestímulo ao Trabalho e Aumento da Prole

 

Embora o Programa Bolsa Família seja frequentemente exaltado como um marco na política de transferência de renda brasileira, sua execução prolongada e sua lógica operacional revelam uma séria de efeitos colaterais não intencionados que merecem crítica. Entre os mais evidentes, destacam-se a formação de uma cultura de dependência econômica, o desestímulo à inserção no mercado de trabalho e o crescimento desordenado da prole como estratégia de ampliação do benefício, todos incompatíveis com a perspectiva de dignidade e autonomia previstas na ordem constitucional.

A dependência econômica criada pelo programa não decorre apenas do auxílio em si, mas da ausência política de transição ou de emancipação social paralela. As famílias beneficiadas, especialmente as chefiadas por mulheres no contexto de extrema vulnerabilidade, acabam por incorporar o beneficio à estrutura financeira como fonte primária “e, por vezes, exclusiva” de sustento. O Estado, ao se posicionar como mantenedor quase absoluto da subsistência desses núcleos, substitui o papel da iniciativa individual e da busca por alternativas de ascensão social, convertendo o auxílio temporário em uma condição quase permanente. Estudo de Tavares (2010) aponta que:

quanto maior a transferência recebida, menor o engajamento da mãe no mercado de trabalho”(TAVARES, 2010)

Esse cenário gera o que se pode classificar como inércia socioeconômica: uma situação na qual o esforço por inserção no mercado formal do trabalho é desincentivado pelo temor concreto da perda do benefício. O paradoxo é evidente; enquanto o trabalho é constitucionalmente valorizado como meio de emancipação e dignificação do ser humano, o modelo atual do Bolsa Família induz, ainda que indiretamente, ao abandono desse caminho, Em vez de representar um trampolim para a autonomia, o programa termina por institucionalizar a dependência, fomentando um ciclo de pobreza sustentada pela própria política pública. Pesquisa publicada na Revista de Administração(2010) pública indica que:

os programas de transferência condicionada de renda no Brasil não mudam o número médio de horas trabalhadas pelos homens, mas aumentam sua taxa de participação e levam a queda nas horas trabalhadas pelas mulheres”.(FOGUEL, 2010)

A consequência mais polêmica, contudo, reside na alteração da dinâmica familiar motivada pela vinculação direta entre o número de filhos e o montante do benefício recebido. Em regiões de maio vulnerabilidade, verifica-se um padrão recorrente: o aumento do número de filhos deixa de ser resultado de uma escolha reprodutiva livre e consciente, passando a integrar o cálculo de sobrevivência econômica da família. A reprodução torna-se, então, um meio funcional de incremente da renda familiar, distorcendo completamente o sentido de políticas de proteção à infância e ferindo, de forma dissimulada, o princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo estudo de Alves e Cavenaghi (2013) sugere que, embora o desenho do programa possa ser considerado pró-natalista, na prática, a população pobre coberta pelo programa continua reduzindo suas taxas de fecundidade.

Esse mecanismo, ainda que não formalmente incentivado, é legitimado pela forma como o benefício é estruturado: quanto mais filhos em idade escolar ou com acompanhamento de saúde regular, maior o valor recebido. Com isso, cria-se uma lógica perversa que contraria frontalmente as diretrizes de planejamento familiar (art. 226, §7° da Constituição Federal) e esvazia a eficácia de políticas públicas voltadas à educação reprodutiva. A maternidade precoce, muitas vezes incentivada pelas próprias gerações anteriormente, perpétua um modelo de existência no qual a dependência do Estado substitui o projeto de vida.

Nesse contexto, o Programa Bolsa família, em vez de servir como instrumento de transformação social, converte-se, gradativamente, em uma engrenagem de reprodução da miséria, ainda que sob o véu da assistência. Ao premiar, por vias indiretas, a inatividade e a multiplicação familiar, o programa se distancia da finalidade constitucional de inclusão produtiva e incorre no risco de reforçar o ciclo intergeracional da pobreza.

Urge, portanto, repensar os parâmetros estruturais e jurídicos do programa, a fim de evitar que ele continue funcionando como fator de incentivo a uma lógica social regressiva. A manutenção do modelo atual representa não apenas um equívoco técnico, mas uma afronta velada ao ideal republicano de justiça social pautada no mérito, no esforço e na dignidade da pessoa humana como fundamentos da cidadania.

 

5. A (In)constitucionalidade de Incentivos Velados à Natalidade: Uma Análise à Luz da Dignidade da Pessoa Humana e do Princípio da Proporcionalidade

 

A estrutura atual do Programa Bolsa Família, ao atrelar o valor do benefício ao número de filhos, introduz de forma velada um incentivo à natalidade que desafia diretamente princípio constitucionais caros à ordem democrática brasileira. Tal mecanismo, ainda que não explicitamente delineado como política entre famílias em situação de vulnerabilidade econômica, criando tensões relevantes do ponto de vista jurídico-constitucional.

O primeiro ponto de fricção reside na violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1°, III, da Constituição Federal). Quando a procriação passa as ser instrumentalizada como meio de sobrevivência econômica, o núcleo essencial da dignidade humana é comprometido. A decisão de ter filhos “que deveria ser livre, consciente e amparada por condições mínimas de estabilidade” passa a ser condicionada por incentivos financeiros oriundos do Estado. Tal lógica mercantiliza a materialidade e esvazia o sentido ontológico da filiação, transformando seres humanos em instrumentos de ampliação de benefícios assistenciais. Nesse sentido Demo (2002) afirma que:

Tais auxílios [cesta básica, renda mínima] podem ser muitos decisivos na vida das pessoas, mas não geram emancipação (…) lança-se esperança excessiva e no fundo contraditória sobre a renda mínima, como se isso resolvesse o problema (DEMO, 2002, p. 18)

Além disso, tal desenho estrutural contraria o disposto no art. 226, § 7°, da Constituição, que assegura o planejamento familiar como livre decisão do casal, cabendo ao Estado apenas a oferta de recursos educativos e de saúde que possibilitem essa liberdade. Ao vincular vantagem financeira ao aumento da prole, o Estado se afasta de seu papel de garantidor d autonomia e converte-se em agente indireto de indução reprodutiva, o que se revela um evidente desvio de finalidade administrativa.

No plano de proporcionalidade, observa-se nova ofensa constitucional. A política pública que objetiva combater a fome e garantir o mínimo existencial não pode utilizar meios que geram, como subproduto previsível, o aumento da dependência estatal e a perpetuação da miséria. O critério de proporcionalidade exige que a medida estatal seja adequada, necessária e equilibrada em relação aos seus fins. No caso do Bolsa Família, os meios adotados “especialmente a majoração do benefício com base na quantidade de filhos” extrapolam os limites do razoável, pois fomentam, mesmo que indiretamente, consequências adversas á própria finalidade social proclamada.

Do ponto de vista da isonomia, também se revela uma distorção. Famílias em condições semelhantes de pobreza, mas com composição reduzida, acama por receber menor auxílio, independentemente de suas necessidades reais. Essa seletividade com base num critério demográfico “o número de filhos” é arbitrária e compromete o tratamento igualitário entre os cidadãos em igual situação de vulnerabilidade, ofendendo o art. 5°, caput, da Constituição.

É importante destacar, ainda, que tais incentivos velados à natalidade produzem impactos intergeracionais. Ao reforçar um modelo de sobrevivência baseado na reprodução, o Estado transmite às futuras gerações uma lógica distorcida de ascensão social, não por meio do estudo ou do trabalho, mas pela perpetuação da dependência estatal. Esse modelo afronta a ordem constitucional, que consagra o trabalho como fundamento da República (art. 1° IV) e da dignidade humana como valor basilar.

Estudos recentes têm investigado os impactos do Programa Bolsa Família na fecundidade das beneficiárias. Soares, Ribas e Osório (2012) buscaram verificar se o programa contribui para aumentar a fecundidade entre as beneficiárias, considerando que o aumento no tamanho da família, até certo limite, leva ao aumento dos benefícios. Utilizando modelos estatísticos que controlam possíveis endogeneidades, os autores concluíram que, pelo menos no início do programa, não houve efeito significativo nesse sentido. Pelo contrário, as beneficiárias pareciam mais inclinadas a trocar quantidade por qualidade dos filhos do que não beneficiárias elegíveis ao programa. No entanto, é necessário considerar que o comportamento das beneficiárias pode variar ao longo do tempo e em diferentes contextos regionais.

Por outro lado, Alves e Cavenaghi (2013) argumentam que, embora o desenho do Programa Bolsa Família possa ser considerado pró-natalista, na prática, a população pobre coberta pelo programa continua reduzindo suas taxas de fecundidade, devido à reversão do fluxo intergeracional de riquezas e à inclusão social. Os autores sugerem que o programa tem contribuído para a transição da fecundidade no Brasil, promovendo uma redução nas taxas de natalidade entre as populações mais pobres.

Em síntese, a forma como o Bolsa Família está estruturado hoje acarreta, ainda que de modo indireto, incentivos incompatíveis com os princípios constitucionais da dignidade, da proporcionalidade e da liberdade individual. A ausência de freios normativos e a fragilidade na fiscalização do uso instrumental do programa revelam não apenas falhas administrativas, mas um verdadeiro deficit de constitucionalidade. Reformular a política assistencial é, portanto, medida urgente para que ela deixe de ser um estímulo silencioso à reprodução precária e volte a ocupar o lugar que a constituição lhe reservou: instrumento de emancipação, não de submissão.

 

6. Proposta de Reformulação: Rumo a uma Assistência que Promova a Autonomia e a Responsabilidade Familiar

 

Diante das distorções constatadas na estrutura atual do Programa Bolsa Família “notadamente o estímulo indireto à natalidade, o desincentivo ao trabalho formal e a institucionalização da dependência”, mostra-se indispensável a reformulação de suas diretrizes. Tal reconstrução deve estar orientada pela busca de uma assistência social que não perpetue vulnerabilidades, mas que atue como ponte para a autonomia, a corresponsabilidade e a inclusão produtiva das famílias beneficiadas.

A primeira medida a ser considerada diz respeito à desvinculação automática entre valor do benefício e número de filhos. Embora a lógica quantitativa pareça razoável à primeira vista, ela não considera a complexidade dos contextos familiares e tampouco condições materiais efetivas de cada núcleo. Substituir tal critério por uma avaliação individualizada de vulnerabilidade, com base em indicadores de renda, acesso a serviços públicos e condição habitacional, garantia maior justiça distributiva sem incentivar a ampliação artificial da prole.

Em segundo plano, é imperiosa a criação de mecanismos de transição gradual para fora da assistência. Famílias que logra, inserção no mercado de trabalho não podem ser imediatamente privadas do benefício é reduzido de forma proporcional ao aumento da renda formal, garantiria estabilidade e previsibilidade, promovendo o protagonismo do cidadão sem lhe impor uma ruptura repentina. Estudo de Freguglia, Kern e Vieira (2018) indica que “o declínio nas horas do setor formal é compensado por um aumento nas horas trabalhadas no setor informal”, sugerindo a necessidade de ajustes que incentivem a formalização do trabalho.

Ainda nesse sentido, deve-se prever contrapartidas formativas e laborais que estimulem a qualificação profissional e o engajamento em atividades produtivas. O assistencialismo, para ser legítimo, deve ser transitório e educativo. Um programa que se propões emancipador precisa ir além da simples transferência de renda, articulando-se com políticas de emprego, educação técnica e empreendedorismo de base comunitária, evitando a armadilha da dependência crônica.

Nesse escopo, propõe-se também a criação de uma fila nacional de vagas de trabalho voltada aos dependentes do programa, sendo a inscrição ativa e a busca por empregos critérios condicionantes para a manutenção do benefício. O beneficiário que recusar ofertas compatíveis com sua formação ou condição física, sem justificativa plausível, teria o benefício suspenso ou reduzido progressivamente, em respeito ao princípio da boa-fé e função social da política pública. Essa proposta visa transformar o assistido em sujeito ativo de sua própria superação, reforçando o compromisso do Estado com a emancipação, e não com a tutela indefinida.

Outro ponto crucial diz respeito à transaparência social. A ausência de mecanismos eficazes de fiscalização tem permitido o uso estratégico do programa por grupos políticos como instrumento de dominação eleitoral e de cooptação da pobreza. A reformulação deve incluir critérios objetivos, auditáveis e acessíveis, que permitam à sociedade civil acompanhar e avaliar a efetividade da política pública, rompendo com a lógica patrimonialista que ainda contamina o sistema assistencial brasileiro. Conforme destacado por Dantas (2015):

a transparência pública é essencial para o exercício da cidadania e para o controle social efetivo das políticas públicas”(DANTAS, 2015)

Por fim, impõe-se uma reorientação discursiva e institucional sobre o sentido da assistência. O Estado não pode se apresentar como provedor perpétuo, mas como garantidor de condições mínimas para que o indivíduo possa, com dignidade, desenvolver sua trajetória pessoal e familiar. Isso exige a adoção de uma pedagoga estatal que revaloriza o trabalho, o esforço e a responsabilidade individual, sem estigmatizar a pobreza, mas também sem romantizá-la.

Reformar o Programa Bolsa Família, portanto, não é negá-lo, mas purificá-lo de suas distorções. É devolvê-lo à sua finalidade constitucional: instrumento de combate à desigualdade, de fortalecimento da cidadania e de transição para a emancipação da miséria e adotar uma política de Estado que promova, verdadeiramente, justiça social com liberdade e responsabilidade.

 

7. Conclusão

 

O presente artigo propôs uma análise crítica sobre o Programa Bolsa Família, especialmente no que tange aos efeitos sociais não intencionais que sua estrutura normativa tem produzido ao longo dos anos. Longe de negar a importância histórica da assistência social como instrumento de combate à pobreza extrema, buscou-se demonstrar que, em seu atual desenho, o programa tem promovido distorções preocupantes, que vão desde o desestímulo ao ingresso no mercado de trabalho até o incentivo indireto à ampliação da prole como estratégia de maximização do benefício.

Observou-se que a lógica quantitativa e automática da concessão do benefício, aliada à ausência de mecanismos de transição para a autonomia dos beneficiários, compromete valores constitucionais essenciais, como a dignidade a pessoa humana, a isonomia, a proteção integral da criança e, sobretudo, a eficiência na administração pública. A vinculação direta entre números de filhos e valor do auxílio gera incentivos perversos que, em vez de fomentar e emancipação da família em situação de vulnerabilidade, cristalizam sua condição de dependência em relação ao Estado, transferindo para a esfera privada “especialmente para a mulher pobre” o ônus da perpetuação da miséria em nome de um benefício mínimo e transitório.

Para além da crítica, foram apresentadas propostas de reformulação do programa, com destaque para a desvinculação entre o valor do benefício e a quantidade de filhos, a criação de mecanismos de transição gradual para fora da assistência, a exigência de contrapartidas formativas e a implementação de uma fila nacional de vagas de trabalho, cujo aceito ou recusa passaria a influenciar a continuidade do recebimento do auxílio. Tais medidas visam reconduzir o Bolsa Família à sua finalidade republicana original: garantir condições mínimas para que o cidadão supera a vulnerabilidade, e não para que nela permaneça indefinidamente.

É imprescindível, portanto, que o debate público e jurídico em torno do Programa Bolsa Família se livre da dicotomia simplista entre defesa irrestrita e negacionista social. O verdadeiro compromisso com os pobres não se revela na perpetuação de políticas que os infantilizam, mas na formulação de estratégias que os libertem da tutela assistencial. O Estado deve ser o braço que ampara, não a mão que prende. A assistência que não emancipa, aprisiona; e o benefício que eterniza a miséria deixa de ser direito para se tornar condenação.

 

Referência

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gabryel Fraga. A Influência do Programa Bolsa Família sobre Famílias de Baixa Renda: Entre a Proteção Social e o Incentivo à Procriação como Meio de Ampliação do Benefício.. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.16321913, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 22/07/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-influencia-do-programa-bolsa-familia-sobre-familias-de-baixa-renda-entre-a-protecao-social-e-o-incentivo-a-procriacao-como-meio-de-ampliacao-do-beneficio/. Acesso em: 17/09/2025.