A Contratação Temporária na Administração Pública: Um Dialeto entre a Exceção e a Regra Constitucional

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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13/01/2025

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Jorge Lucchesi Rocha Junior

Curriculo do autor: Oficial de gabinete na Justiça Federal da 6ª Região. Especialista em Direito Tributário. Ex-advogado.

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Resumo

A contratação temporária na administração pública, embora prevista em lei, é uma exceção à regra do concurso público. O artigo analisa a constitucionalidade e os limites dessa modalidade de contratação, especialmente no que diz respeito à colisão entre normas federais e estaduais. O texto destaca a importância da interpretação restritiva da contratação temporária, a fim de evitar o desvirtuamento do princípio do concurso público e a perpetuação de situações precárias no serviço público. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido fundamental para a consolidação desse entendimento, ao estabelecer que a contratação temporária deve ser utilizada apenas em situações excepcionais e devidamente justificadas, sempre observando os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Palavras-Chave

Constituição Federal. Servidor Público. Lei complementar. Lei ordinária. Contratação temporária.

Abstract

Temporary hiring in public administration, although provided for by law, is an exception to the public competition rule. The article analyzes the constitutionality and limits of this type of contracting, especially with regard to the collision between federal and state standards. The text highlights the importance of a restrictive interpretation of temporary hiring, in order to avoid distorting the principle of public competition and the perpetuation of precarious situations in the public service. The jurisprudence of the Federal Supreme Court has been fundamental in consolidating this understanding, by establishing that temporary hiring should only be used in exceptional and duly justified situations, always observing the constitutional principles of legality, impersonality, morality, publicity and efficiency.

Keywords

Federal Constitution. Public Servant. Complementary law. Ordinary law. Temporary hiring.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, erigiu um conjunto de princípios que moldam a atuação da Administração Pública, dentre os quais se destacam a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Corolário desses princípios, o ingresso no serviço público deve, via de regra, ocorrer mediante concurso público. No entanto, a Carta Magna, em seu inciso IX do artigo 37, prevê a possibilidade de contratação temporária para atender a necessidades excepcionais e temporárias.

A presente análise debruçar-se-á sobre os contornos dessa exceção constitucional, com enfoque especial na colisão entre a norma federal e as disposições estaduais que buscam regulamentar a matéria. A questão central reside em definir os limites da discricionariedade dos entes federados na legislação sobre contratações temporárias, considerando a necessidade de harmonização com os preceitos constitucionais e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, será examinada a constitucionalidade de norma estadual que exige lei complementar para a contratação temporária, confrontando-a com a exigência constitucional de lei ordinária. Além disso, serão analisadas as hipóteses em que a contratação temporária é admitida, com destaque para a vedação de sua utilização para o preenchimento de cargos de natureza permanente e ordinária.

Ao final, buscar-se-á demonstrar que a contratação temporária, embora excepcional, deve ser interpretada e aplicada de forma restritiva, a fim de evitar o desvirtuamento do princípio do concurso público e a perpetuação de situações precárias no serviço público.

 

DESENVOLVIMENTO

 

A administração Pública deve pautar-se em uma série de princípios para o desenvolvimento de suas atividades, sendo explícitos no texto constitucional aqueles constantes no art. 37 – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Em decorrência desses princípios é dever da Administração Pública prover seus cargos por meio de concurso público (art. 37, II, da CRFB).

No entanto, para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, poderá ser estabelecido, por meio de lei ordinária, os casos de contratação por tempo determinado, conforme inteligência do art. 37, IX da CRFB.

Vejamos as disposições constitucionais pertinentes ao esboço acima, no que interessa:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:             (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998):

(…)

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

(…)

IX – a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público; 

 

Referidas disposições normativas, diante da sua amplitude e sujeição nacional a todos os entes federados e ainda com base no princípio da simetria, são de observância obrigatória pelos Estados, ainda que não expressamente previstas em suas respectivas constituições.

Conforme artigo de Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), “o princípio da simetria federativa acarreta a obrigatoriedade de que os entes federados internos — estados e municípios — adotem certos modelos estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil. Um exemplo: grande parte do processo legislativo é vinculado ao princípio da simetria, impedindo que haja estipulação diversa nas Constituições estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais. É nítido que isso reduz a autonomia federativa, impondo a adoção do modelo centralizado, nacionalmente estabelecido”.

O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre esta questão em algumas oportunidades em sede de controle concentrado de constitucionalidade, exarando que norma constitucional estadual que exige a edição de lei complementar para os casos em que a Constituição Federal exige lei ordinária extrapola os limites postos pelo poder constituinte originário, uma vez que para esses casos a Constituição Federal exigiu apenas a edição de lei ordinária, que não demanda quórum qualificado para sua aprovação.

Recentemente, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) nº. 7.057/CE, em 09/12/2024, em que se discutia a (in)constitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado do Ceará, que previu a exigência de Lei Complementar para os casos de contratação por tempo determinado no âmbito daquele Estado, levantou-se a tese de ampliação indevida da reserva de lei complementar pela Constituição Federal de 1988.

Em seu voto, o Min. Relator, Dias Toffoli, ao interpretar o comando constitucional sobre o tema, asseverou que “Em relação à espécie legislativa que poderá ser adotada na disciplina da matéria, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a utilização de lei complementar depende de previsão constitucional expressa” e ainda que “fato é que a Constituição de 1988 não exigiu lei complementar para as disposições acerca dos casos de contratação temporária de excepcional interesse público”.

É assente na jurisprudência do STF, portanto, que as hipóteses de reserva de lei complementar não contida na Constituição Federal violam ao princípio democrático, à separação dos poderes e à simetria. Nesse sentido, colaciono ementa do julgamento da ADI nº. 5.003, de Relatoria do Min. Luiz Fux, esclarecedora sobre o tema (grifos acrescidos):

 

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. ARTIGO 57, PARÁGRAFO ÚNICO, IV, V, VII E VIII, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. HIPÓTESES DE RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR NÃO CONTIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO, À SEPARAÇÃO DE PODERES E À SIMETRIA. PRECEDENTES. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE CONHECIDA E JULGADO PROCEDENTE O PEDIDO.

1. A lei complementar, conquanto não goze, no ordenamento jurídico nacional, de posição hierárquica superior àquela ocupada pela lei ordinária, pressupõe a adoção de processo legislativo qualificado, cujo quórum para a aprovação demanda maioria absoluta, ex vi do artigo 69 da CRFB.

2. A criação de reserva de lei complementar, com o fito de mitigar a influência das maiorias parlamentares circunstanciais no processo legislativo referente a determinadas matérias, decorre de juízo de ponderação específico realizado pelo  texto constitucional, fruto do sopesamento entre o princípio democrático, de um lado, e a previsibilidade e confiabilidade necessárias à adequada normatização de  questões de especial relevância econômica, social ou política, de outro.

3. A aprovação de leis complementares depende de mobilização parlamentar mais intensa para a criação de maiorias consolidadas no âmbito do Poder Legislativo, bem como do dispêndio de capital político e institucional que propicie tal articulação, processo esse que nem sempre será factível ou mesmo desejável para a atividade legislativa ordinária, diante da realidade que marca a sociedade brasileira – plural e dinâmica por excelência – e da necessidade de tutela das minorias, que nem sempre contam com representação política expressiva. 

4. A ampliação da reserva de lei complementar, para além daquelas hipóteses demandadas no texto constitucional, portanto, restringe indevidamente o arranjo democrático-representativo desenhado pela Constituição Federal, ao permitir que Legislador estadual crie, por meio do exercício do seu poder constituinte decorrente, óbices procedimentais – como é o quórum qualificado – para a discussão de matérias estranhas ao seu interesse ou cujo processo legislativo, pelo seu objeto, deva ser mais célere ou responsivo aos ânimos populares. 

5. In casu, são inconstitucionais os dispositivos ora impugnados, que demandam edição de lei complementar para o tratamento (i) do regime jurídico único dos servidores estaduais e diretrizes para a elaboração de planos de carreira; (ii) da organização da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar e do regime jurídico de seus servidores; (iii) da organização do sistema estadual de educação; e (iv) do plebiscito e do referendo – matérias para as quais a Constituição Federal não demandou tal espécie normativa.  Precedente: ADI 2872, Relator Min. EROS GRAU, Redator p/ Acórdão Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 1º/8/2011, Dje 5/9/2011.

6. Ação direta conhecida e julgado procedente o pedido, para declarar inconstitucional o artigo 57, parágrafo único, IV, V, VII e VIII, da Constituição do Estado de Santa Catarina.

(ADI nº 5.003, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe de 19/12/19).

 

Pois bem. Superada a premissa legal, importante ressaltar que para a regular contratação de trabalhador por prazo determinado pela administração pública, há de ser observado, dentre outras hipóteses, o caráter excepcional e temporário diante da situação específica que originou a necessidade da exceção da regra de ingresso mediante concurso público. 

Imperioso enfatizar também que a contratação não pode se dar em relação a ocupações que sejam de natureza ordinária e permanente da estrutura administrativa estatal.

A norma do artigo 37, IX da Constituição Federal deve se valer de uma interpretação restritiva uma vez que impõe exceção à regra de provimento por meio de concurso público e será inconstitucional “sempre que previr hipóteses abrangentes e genéricas de contratação, sem definir qual é a contingência fática emergencial apta a ensejá-la, ou quando contemplar o exercício de serviços típicos de carreira e de cargos permanentes de Estado sem concurso público, ou, ainda, sem motivação de excepcional relevância que justifique a referida contratação” (ADI nº. 7.057/CE, Min. Relator, Dias Toffoli).

Por fim, diante do requisito de temporalidade excepcional, de vemos ter em mente que a cláusula constitucional que autoriza a contratação temporária de pessoal estabelece uma exceção ao princípio da estabilidade no serviço público. No entanto, essa excepcionalidade encontra limites precisos. Na medida em que se destina a suprir necessidades temporárias e comprovadas, a norma em questão não pode ser interpretada de forma extensiva, a ponto de abarcar situações que demandam o provimento de cargos públicos de caráter permanente.

Assim sendo, é inadmissível a utilização dessa cláusula para atender a demandas previsíveis e regulares da Administração Pública. Afinal, para essas situações, o ordenamento jurídico prevê a realização de concursos públicos, a fim de garantir a seleção dos mais qualificados e a promoção da eficiência administrativa.

Não obstante a flexibilidade que a norma proporciona, sua aplicação deve ser sempre restrita aos casos excepcionais e devidamente justificados, sob pena de violação aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade.

Portanto, as necessidades temporárias e excepcionais, devidamente previstas em lei, são o único fundamento válido para a contratação temporária de pessoal, de modo que, necessidades que não se enquadram nesse perfil não podem legitimar a utilização desse mecanismo, sob pena de comprometer a segurança jurídica e a eficiência da Administração Pública.

 

CONCLUSÃO

 

A contratação temporária na Administração Pública, embora prevista na Constituição Federal, exige uma interpretação cuidadosa e rigorosa. A exigência de lei ordinária para a regulamentação dessa matéria, bem como a vedação à utilização da contratação temporária para o preenchimento de cargos de caráter permanente, demonstram a preocupação do legislador constituinte em garantir a legalidade e a segurança jurídica no serviço público.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido fundamental para a consolidação desse entendimento, ao afastar interpretações que possam comprometer a estabilidade no serviço público e a igualdade de oportunidades.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ANGHER, Anne Joyce. Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel. Organização. – 39. Ed. – São Paulo: Rideel, 2024. (Série Vade Mecum).

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

 

SCAFF, Fernando Facury. O STF e o princípio da simetria federativa nas Constituições de 1967 e 1988. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-19/stf-e-o-principio-da-simetria-federativa-nas-constituicoes-de-67-e-88/. Acesso em: 10/01/2025.

 

Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.003. Relator: Min. Luiz Fux.

 

Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.057. Relator: Min. Dias Toffoli.

 

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA JUNIOR, Jorge Lucchesi. A Contratação Temporária na Administração Pública: Um Dialeto entre a Exceção e a Regra Constitucional. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-contratacao-temporaria-na-administracao-publica-um-dialeto-entre-a-excecao-e-a-regra-constitucional/. Acesso em: 24/04/2025.