A construção do conceito de “interesse público” sob influência das ciências sociais
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Resumo
O conceito de interesse público é amplamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro como fundamento para atos administrativas, atos normativos e decisões judiciais. No entanto, sua natureza aberta e indeterminada permite interpretações múltiplas, nem sempre transparentes ou isentas de viés. Este artigo tem por objetivo analisar como as ciências sociais – em especial a sociologia e a ciência política − influenciam a construção, interpretação e aplicação do conceito jurídico de interesse público. Para tanto, adotou-se uma metodologia baseada em revisão bibliográfica e análise documental de leis, normas e jurisprudência nacional. A primeira parte do estudo explora os desafios na conceituação do instituto, destacando seu uso estratégico por diferentes atores institucionais. Na sequência, discutem-se contribuições das ciências sociais. Por fim, analisam-se decisões emblemáticas do Supremo Tribunal Federal e dispositivos normativos que evidenciam como o interesse público é invocado de maneira plural. Como resultado, demonstra-se que a interlocução entre direito e ciências sociais contribui para uma compreensão crítica e mais legítima do interesse público, permitindo maior controle democrático sobre sua utilização no discurso jurídico.
Palavras-ChaveInteresse Público. Ciências Sociais. Sociologia Jurídica. Interpretação Jurídica. Supremo Tribunal Federal. Discurso Jurídico
Abstract
The concept of public interest is widely used in the Brazilian legal system as a basis for administrative acts, normative acts, and judicial decisions. However, its open and indeterminate nature allows for multiple interpretations, which are not always transparent or free from bias. This article aims to analyze how the social sciences—particularly sociology and political science—influence the construction, interpretation, and application of the legal concept of public interest. To this end, a methodology based on bibliographic review and documentary analysis of national laws, regulations, and case law was adopted. The first part of the study explores the challenges in conceptualizing the institute, highlighting its strategic use by different institutional actors. Next, it discusses contributions from the social sciences. Finally, the article analyzes landmark decisions of the Federal Supreme Court and normative provisions that demonstrate how public interest is invoked in a plural manner. As a result, it is shown that the dialogue between law and the social sciences contributes to a more critical and legitimate understanding of public interest, enabling greater democratic control over its use in legal discourse.
KeywordsPublic Interest. Social Sciences. Legal Sociology. Legal Interpretation. Federal Supreme Court. Legal Discourse
1. Introdução
A expressão “interesse público” ocupa lugar central no discurso jurídico, sendo frequentemente invocada na fundamentação de atos normativos, decisões judiciais e atos administrativos. Contudo, apesar de sua ampla utilização, trata-se de um conceito dotado de alta carga indeterminada, cujo conteúdo não se apresenta de forma objetiva e unívoca. Nesse contexto, as ciências sociais oferecem ferramentas teóricas e analíticas que contribuem para uma compreensão mais profunda e crítica desse enunciado normativo, evidenciando os elementos históricos, políticos e ideológicos que permeiam sua construção e aplicação.
A relevância do tema reside justamente no fato de que a indefinição do conceito pode dar margem a usos arbitrários, retóricos ou instrumentalizados do direito, afetando diretamente direitos fundamentais e a legitimidade das políticas públicas. A partir da interlocução com saberes das ciências sociais, torna-se possível desnudar como diferentes grupos de poder moldam a noção do que é “público”, bem como os impactos disso na elaboração, aplicação e contestação das normas jurídicas. Em tempos de intensos debates sobre a atuação estatal e a distribuição de recursos, compreender criticamente o que se entende por interesse público é um passo fundamental para a promoção de uma ordem jurídica mais justa e transparente.
O presente artigo tem como objetivo analisar como as ciências sociais − especialmente a sociologia e a ciência política − influenciam a concepção e a aplicação do conceito jurídico de interesse público.
Para atingir tal propósito, será adotada uma metodologia baseada em revisão bibliográfica e análise documental, além da investigação de normas jurídicas brasileiras que invocam o interesse público como fundamento. A análise também considerará decisões judiciais e atos normativos em que o conceito seja central para a argumentação.
O desenvolvimento do artigo será estruturado em três partes principais. A primeira tratará do conceito de interesse público no Direito, destacando seu caráter indeterminado. A segunda parte apresentará contribuições das ciências sociais para a compreensão crítica desse conceito, especialmente sob a ótica da sociologia e da ciência política. Por fim, a terceira parte abordará casos concretos da legislação e da jurisprudência brasileira, evidenciando como o interesse público é invocado.
2. Desenvolvimento
2.1. O conceito de interesse público
O conceito de interesse público é recorrente em diversos ramos do direito, sobretudo no campo do Direito Administrativo. Embora frequentemente utilizado como fundamento para atos administrativas e decisões judiciais, trata-se de um conceito aberto, com difícil delimitação objetiva. Essa indeterminação, por um lado, confere flexibilidade ao direito, permitindo sua adaptação a diferentes contextos sociais e históricos; por outro lado, exige do intérprete cuidado redobrado quanto à sua aplicação, sob pena de servir como justificativa vazia ou arbitrária para o exercício do poder estatal.
Em profundo estudo sobre o tema, Justem Filho (2016) começa por investigar aquilo que não é interesse público, para então procurar determinar aquilo que poderia sê-lo. Para isso, explica que interesse público não pode ser confundido com interesse estatal ou do aparato administrativo, pois o Estado, como sujeito de direito, pode ter interesses em plano similar a qualquer sujeito privado. Também não se confundiria com o interesse da sociedade, enquanto mero somatório de indivíduos, ou da maioria dos sujeitos privado, sob pena de práticas autoritárias ou opressão a grupos minoritários.
Prossegue o autor dizendo que é incorreto equiparar o interesse público à soma dos interesses da maioria da população, pois nem todo interesse compartilhado por muitos possui natureza pública. Em excelente exemplo, explica que, mesmo que a maioria do povo brasileiro tivesse grande interesse por futebol, isso não transformaria o futebol em matéria de direito público, já que certos interesses coletivos ou difusos, apesar de atingirem diversos indivíduos, mantêm a natureza privada.
Partindo para o que seria de fato o conceito de interesse público, Justem Filho aponta que sua caracterização se dá pela presença de valores fundamentais e indisponíveis, como a dignidade da pessoa humana, ainda que não atenda o desejo da maioria.
O conceito de Justem Filho, todavia, parece insuficiente. Imagine uma situação em que a Administração Pública necessite modificar unilateralmente o contrato administrativo para ampliar a construção de uma unidade administrativa física. Ao invés de 100 salas, serão 101. Em tese, isso é possível, pois é uma hipótese de “interesse público”. Mas como quantificar o impacto da tutela de valores fundamentais e indisponíveis com a construção de um cômodo a mais na estrutura administrativa?
De certo que a amplitude e abstração do conceito de interesse público possibilitam sua mobilização estratégica em diferentes esferas do poder. Grau (1988) esclarece que, no caso de conceitos abertos por imprecisão, os parâmetros para sua concretização devem ser extraídos da realidade, considerando inclusive as concepções políticas predominantes, as quais são influenciadas pela dinâmica das forças sociais em determinado contexto. Para Oliveira (2021), há que se considerar também a constante conexão do interesse público com o interesse privado.
A quem serve o interesse público declarado? Quais interesses foram considerados e quais foram excluídos da decisão? As ciências sociais, como será visto adiante, contribuem para desnudar esse processo, ao evidenciar que o interesse público, muitas vezes, representa interesses de determinados grupos com maior poder político, econômico ou simbólico, travestidos de universalidade.
2.2. Contribuições das ciências sociais para a compreensão do interesse público
A sociologia oferece uma contribuição essencial para a compreensão do interesse público ao revelar que esse conceito, longe de ser estático ou naturalmente dado, é socialmente construído. Autores como Émile Durkheim, Max Weber e Pierre Bourdieu analisam o Direito não como um sistema isolado, mas como produto das relações sociais, impregnado de valores, disputas e interesses.
Segundo essa perspectiva, o que se entende por interesse público em um dado momento histórico reflete a estrutura social vigente e as forças dominantes em disputa. Em contextos de forte desigualdade, por exemplo, decisões jurídicas fundamentadas no interesse público tendem a proteger a ordem estabelecida, mesmo que isso implique a restrição de direitos de grupos marginalizados. Assim, a sociologia do direito contribui para desnaturalizar o conceito, revelando-o como expressão de determinadas concepções de mundo − e não como uma verdade objetiva e universal.
Bourdieu (2001), em especial, destaca a função simbólica do Direito como instrumento de consagração de determinados valores sociais. Para ele, o campo jurídico opera com uma linguagem pretensamente neutra, mas que frequentemente reproduz as hierarquias e domínios existentes na sociedade. Nessa linha, o interesse público pode ser compreendido como uma categoria simbólica que busca universalizar interesses particulares, conferindo-lhes legitimidade jurídica.
A ciência política, por sua vez, acrescenta à análise o papel central das instituições, dos agentes políticos e das relações de poder na definição do que é (ou não) interesse público. A noção de que o interesse público é o interesse da maioria ou da coletividade é constantemente desafiada por análises que evidenciam a ação de grupos de pressão, elites econômicas e coalizões partidárias que influenciam as decisões estatais.
Em contextos democráticos, essa disputa se manifesta nos parlamentos, nas cortes constitucionais, nos conselhos de políticas públicas e nas ruas. O interesse público torna-se, assim, um campo de tensão entre a técnica jurídica e a vontade popular, e seu conteúdo final dependerá tanto da articulação institucional quanto da capacidade de mobilização social dos diferentes grupos envolvidos.
2.3. Aplicações concretas e interface com a legislação e jurisprudência brasileira
A legislação brasileira recorre com frequência ao conceito de interesse público para justificar restrições a direitos individuais, autorizar intervenções estatais ou fundamentar políticas públicas. No entanto, muitas dessas normas não explicitam claramente o que se entende por esse interesse, deixando-o como uma cláusula genérica. Um exemplo clássico é o art. 104 da Lei 14.133/21, que prevê a prerrogativa do Poder Público de modificar unilateralmente contrato para adequá-lo ao interesse público.
Outro exemplo significativo está no Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), que trata da função social da propriedade urbana e da promoção do “interesse público” por meio da política urbana. Apesar de avançar no sentido de promover a equidade e o desenvolvimento sustentável, a lei deixa espaço para interpretações divergentes sobre o que constitui esse interesse, especialmente em contextos de conflitos fundiários ou remoções de comunidades.
No âmbito jurisprudencial, o interesse público é amplamente invocado, sobretudo nas cortes superiores, como critério de legitimação de decisões que afetam a coletividade. Um exemplo emblemático está na ADPF 132, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. No julgamento, o STF, mesmo em ambiente normativo desfavorável, entendeu que o reconhecimento da união estável satisfazia o interesse público, especialmente num olhar sociológico.
Já com uma vertente antropológica, o STF, no âmbito da ADPF 186, entendeu que as cotas eram instrumento legítimo para corrigir desigualdades históricas e promover inclusão social, alinhando-se ao princípio constitucional da igualdade material.
Por fim, por meio de contribuição da economia enquanto ciência social, o STF entendeu ser constitucional a interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento (ADI 6432). O conceito de interesse público aqui foi fortemente influenciado pela Teoria dos Bens Escassos.
Todas essas situações mostram como as ciências sociais fornecem subsídios para a construção do conceito de interesse público.
3. Considerações Finais
Diante do exposto, constata-se que o objetivo central deste artigo foi plenamente atendido ao evidenciar como as ciências sociais exercem influência direta sobre a concepção e a aplicação jurídica do conceito de interesse público. A partir de uma análise teórica e normativa, foi possível demonstrar que esse conceito, embora frequentemente invocado no discurso jurídico, está longe de possuir um conteúdo objetivo e estável. Ao contrário, sua definição e uso se revelam marcadamente condicionados por fatores históricos, culturais e políticos que podem, muitas vezes, camuflar interesses particulares sob o manto da universalidade.
Por meio da revisão bibliográfica e da análise documental de leis e decisões judiciais, constatou-se que o interesse público funciona como uma categoria simbólica, cuja força normativa é construída e legitimada dentro de contextos sociais específicos. Assim, compreender o interesse público a partir das ciências sociais permite uma fundamentação jurídica mais crítica e responsável, como também uma atuação mais democrática e justa do próprio direito.
4. Referências Bibliográficas
Justen Filho, M. (2016). Curso de Direito Administrativo (4. ed., e-book). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
Bourdieu, P. (2001). O poder simbólico (F. Tomaz, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Grau, E. R. (1988). Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
Oliveira, R. C. R. (2021). Curso de Direito Administrativo (9. ed.). Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO.
Presidência da República. (2021). Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 20 de abril de 2025.
Presidência da República. (2001). Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 20 de abril de 2025.
Supremo Tribunal Federal. (s.d.). ADPF 132. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2598238. Acesso em: 20 de abril de 2025.
Supremo Tribunal Federal. (s.d.). ADPF 186. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691269. Acesso em: 20 de abril de 2025.
Supremo Tribunal Federal. (s.d.). ADI 6432. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5916208. Acesso em: 20 de abril de 2025.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
OLIVEIRA JUNIOR, Eliézer Guedes de (ORCID 0009-0000-9405-6256) . A construção do conceito de “interesse público” sob influência das ciências sociais. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-construcao-do-conceito-de-interesse-publico-sob-influencia-das-ciencias-sociais/. Acesso em: 25/07/2025.