Pejotização – Precarização de direitos trabalhistas, inconstitucionalidade em matéria tributária
Autores
Resumo
Em tempos de crise fiscal, cujos efeitos são suportados mais diretamente pela população carente, com a redução, por exemplo, de despesas direcionadas a programas de saúde e educação, mister que a tributação seja efetiva, levando em consideração a capacidade econômica dos contribuintes. Nesse contexto, o presente artigo analisa o art. 129 da Lei n° 11.196/2005, que incentivou a pejotização de serviços intelectuais de natureza artística, cultural e científica. O trabalho apresenta o contexto de edição da norma, bem como os impactos econômicos de sua aplicação nas relações trabalhista, previdenciária e fiscal. Também apresenta defesa da competência dos auditores-fiscais para desconsideração de negócios jurídicos dissimulados e cobrança dos tributos devidos, quando identifique relação de emprego sob o manto da pejotização. Por fim, diante dos elementos estruturais do postulado da igualdade, aponta a manifesta inconstitucionalidade do dispositivo legal, em afronta expressa à norma-regra disposta no art. 150, II, da CF/88, bem como aos princípios da capacidade contributiva e da solidariedade.
Palavras-ChaveJustiça, isonomia e capacidade contributiva
Abstract
In times of fiscal crisis, the effects of which are borne most directly by the needy population, with the reduction, for example, of expenditures directed at health and education programs, it is essential that taxation be effective, taking into account the economic capacity of taxpayers. In this context, this article analyzes Article 129 of Law No. 11.196/2005, which encouraged the private employment of intellectual services of an artistic, cultural, and scientific nature. The paper presents the context in which the law was enacted, as well as the economic impacts of its application on labor, social security, and tax relations. It also defends the authority of tax auditors to disregard concealed legal transactions and collect due taxes when they identify an employment relationship concealed as a private employment relationship. Finally, given the structural elements of the principle of equality, it highlights the manifest unconstitutionality of the legal provision, in express violation of the rule set forth in Article 129. 150, II, of the CF/88, as well as the principles of contributory capacity and solidarity.
KeywordsJustiça. isonomia. capacidade contributiva
1. Introdução
Em 21 de novembro de 2005, foi sancionada a Lei 11.196/2005, resultante da conversão da Medida Provisória n° 255/2005. Referida lei trata de diversos temas de natureza tributária, dentre eles a legalização, em seu art. 129, de regime diferenciado de tributação aos rendimentos decorrentes de prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística e cultural, conforme se depreende da leitura do dispositivo, in verbis:
Lei n° 11.196/2005
Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.
Parágrafo único. (VETADO)
A redação original da Medida Provisória n° 255/2005 continha apenas 2 (dois) artigos que, conforme exposição de motivos que consta no portal do Planalto (2019), tratavam de tema totalmente alheio. Ela foi totalmente desfigurada no Congresso Nacional com a inserção, via emendas legislativas, de vários dispositivos referentes a concessões de diversos benefícios fiscais e regimes diferenciados de tributação, dentre eles o do atual art. 129 da Lei n°. 11.196/2005, resultante da conversão da supracitada medida provisória.
Na Exposição de Motivos do Projeto de Conversão de Medida Provisória que originou o referido art. 129 da Lei n° 11.196/2005, o Senado Federal assim fundamentou a proposta: “os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no artigo 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da administração pública e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo eventuais controvérsias sobre a matéria”.
Em tempos anteriores à edição da sobredita norma, foram noticiadas várias autuações da Receita Federal sobre personagens da mídia, como por exemplo as multas aplicadas ao apresentador Carlos Massa (conhecido como Ratinho) e ao treinador Luiz Felipe Scolari (conhecido como Felipão), divulgadas pelo portal Conjur[1].
Diante desse contexto prévio, aparentemente os destinatários diretos e imediatos da norma foram artistas, apresentadores de programas midiáticos, de telejornais e desportistas em geral, profissionais com altíssimas remunerações, que estariam sendo autuados pela Receita Federal, por terem oferecido rendimentos decorrentes dos trabalhos desenvolvidos executados enquanto pessoa física, em pessoa jurídica criada unicamente para economia tributária, sem legislação que autorizasse tal prática.
Com a entrada em vigor do art. 129 da Lei n°. 11.196/2005, a despeito da defesa por alguns de sua natureza interpretativa, ficava instituído novo regime de tributação, especialmente para as pessoas físicas que prestam serviços de natureza intelectual, que passaram, diferentemente dos demais trabalhadores que prestam serviços de natureza técnica ou manual, a ter a possibilidade de tributação dos rendimentos dos seus trabalhos individuais em pessoa jurídica especialmente criada para economia tributária.
Mesmo com o permissivo legal em referência, continuou o embate entre fisco federal e contribuintes. Os auditores-fiscais continuaram autuando as pessoas jurídicas contratantes e profissionais quando, a despeito da utilização do manto da pejotização, identificavam elementos que comprovavam a existência de relação de emprego. Por seu turno, os representantes dos contribuintes alegam a incompetência dos auditores para desconsideração da personalidade jurídica e reconhecimento do vínculo empregatício, que seria privativa da justiça trabalhista.
Muitas dessas autuações fiscais estão sendo mantidas no âmbito da primeira (Delegacias da Receita Federal de Julgamento – DRJ) e da segunda instância do contencioso administrativo fiscal (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF), motivo pelo qual foi proposta recentemente (outubro de 2019) a Acão Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n° 66, pela Confederação Nacional de Comunicação Social (CNCOM), em defesa do art. 129 da Lei n° 11.196/2005 e pela incompetência do fisco (auditores e julgadores) para desconsideração da personalidade jurídica e reconhecimento do vínculo empregatício.
Diante desse panorama, o presente trabalho abordará os impactos da pejotização sob a ótica trabalhista e tributária, com enfoque em análise sobre a regularidade do art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 em relação a texto da Constituição Federal de 1988.
2. Pejotização – motivação tributária e impacto sobre a seguridade social
A “pejotização”, neologismo associado com a sigla PJ – Pessoa Jurídica – se refere a situação pela qual o prestador de serviços pessoa física constitui uma pessoa jurídica para substituir o tradicional vínculo empregatício.
Para o profissional pejotizado, o principal benefício está na redução do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF), antes incidente sobre o rendimento enquanto pessoa física, cujas alíquotas atualmente variam de 7,5% a 27,5%, sendo que esta alíquota mais alta incide já sobre rendimentos superiores a R$ 4.664,68 (quatro mil, seiscentos e sessenta e quatro reais) mensais, conforme tabela vigente em 2019, disponível no site da Receita Federal do Brasil.
Conforme estudo divulgado pela Receita Federal do Brasil (2016), sob o aspecto econômico, a utilização da forma jurídica artificial transforma uma única pessoa –o profissional que exerce atividade regulamentada (advogado, médico, dentista, engenheiro, psicólogo, etc) – num ente jurídico que exerce atividade de empresa, ou seja, que profissionalmente realiza atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens e serviços.
Tal prática representa um desvirtuamento do uso da pessoa jurídica como sociedade empresária, pois não há razoabilidade econômica no fato de uma única pessoa que presta serviços de natureza intelectual ser equiparada a uma sociedade empresária normal, que combina os fatores de produção capital, equipamentos e trabalho, sujeitando-se aos riscos do empreendimento.
Nesse sentido, conforme estudo relatado (2016, pág. 06), a Receita Federal do Brasil tem se manifestado pela reprovabilidade da concessão do tratamento tributário das pessoas jurídicas às pessoas físicas pejotizadas.
17. Nesse ponto, a discussão em torno da pejotização assume relevância quanto ao aspecto da incidência tributária. Não há como conceber que o modelo de tributos que incide sobre uma sociedade empresária normal, que possui empregados, instalações, máquinas e equipamentos, intangíveis (v.g. marca, know-how) e carteira de clientes, seja também adequado a pessoa jurídica cujo único sócio é o prestador do serviço, sem agregar qualquer outro fator na produção.
18. Ou seja, a incidência tributária que recai sobre a pessoa jurídica empresária é incompatível com a incidência sobre um prestador de serviço de natureza intelectual. Para fins fiscais e previdenciários, um trabalhador não deve receber o mesmo tratamento que uma sociedade empresária, que representa uma combinação organizada mais complexa dos fatores de produção.
19. A comparação entre a carga incidente sobre o serviço contratado de uma pessoa jurídica e a carga sobre esse mesmo serviço contratado segundo as legislações trabalhista, fiscal e previdenciária atuais revela um hiato existente em razão dos fatores díspares que determinaram a forma distinta de concepção desses modelos. Por outras palavras, na concepção das regras de tributação de uma relação de emprego e de uma relação entre pessoas jurídicas, os elementos são diferentes, o que resulta numa carga tributária também diferente.
20. Essa diferença na incidência tributária motiva os agentes econômicos a adotarem a forma atípica e inusual para suas operações. Ou seja, o fenômeno da pejotização pode ser explicado com base na vantagem fiscal obtida com a contratação de serviços intelectuais por intermédio de pessoas jurídicas, ainda que seja economicamente inapropriado considerar essa relação como típica entre empresas.
As vantagens tributárias da pejotização devem ser abordadas sob os ângulos do profissional pejotizado e da empresa anteriormente empregadora – agora mera contratante de serviços prestados sob a égide do Direito Civil.
Ainda em referido estudo da Receita Federal (2016, pág. 07), consta gráfico, exposto abaixo, com comparativo de incidência tributaria sobre 1) pessoa física; 2) empresa prestadora de serviços, com empregados, instalações, equipamentos, etc, tributada com base no lucro presumido; e 3) um profissional pejotizado, também tributado pelo lucro presumido.
Tabela 01 – Incidência tributária na prestação de serviços, por forma jurídica
Fonte: Receita Federal do Brasil (2016)
A partir de um rendimento total anual de R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais), ou mensal de R$ 30.000 (trinta mil reais), o gráfico demonstra que a carga tributária federal suportada por um empregado pessoa física fica na ordem de 23,60%. Com o mesmo rendimento, o impacto da tributação federal sobre um profissional pejotizado cai para 17,34% – uma economia tributária de 6,26%.
A despeito de sua utilidade, o multicitado estudo da Receita Federal não aborda outros aspectos que devem ser considerados pelo profissional, antes da constituição da pessoa jurídica.
O profissional pejotizado se sujeitará aos tributos aplicáveis às pessoas jurídicas, quais sejam: Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição Previdenciária sobre o pró-labore e Imposto sobre Serviços (ISS). Para cada desses tributos as administrações tributárias estabelecem declarações próprias, que periodicamente deverão ser elaboradas e transmitidas pelo contribuinte pessoa jurídica, com informações detalhadas sobre faturamento, regime de tributação escolhido, apuração do tributo, etc, sob pena de multa.
Assim, a não ser que o contribuinte domine a legislação tributária e se sujeite a tal trabalho, deverá arcar com custo de contratação de profissional contábil competente para o cumprimento de tais obrigações.
Assim, considerando um cenário de ausência de sonegação, com a pejotização a vantagem tributária para o profissional anteriormente empregado é inferior à economia de 6,26%, apontada no estudo da Receita Federal, pois referido estudo não considerou o custo com contratação de contador, nem a preocupação com o cumprimento das diversas obrigações acessórias impostas às pessoas jurídicas.
Ademais, tal percentual de economia desaparece quando consideramos a perda de direitos trabalhistas como férias remuneradas, décimo terceiro e FGTS – que sob o vínculo empregatício, representa depósito de 8% sob a remuneração do trabalhador, direito q se incorpora ao seu patrimônio.
Já para as pessoas jurídicas anteriormente empregadoras do profissional pejotizado, a vantagem, tanto tributária quanto trabalhista, é imensa!
A empresa que contrata os serviços intelectuais, quando opta por contratar o prestador segundo o regime trabalhista — ou seja, estabelecer uma relação jurídica de emprego na acepção dada pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) —, suporta o pagamento da contribuição previdenciária patronal (20%), dos encargos do Sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Senac, etc, a depender do setor econômico da empresa) e do SAT –Seguro de Acidente do Trabalho – (1 a 3%, a depender do Fator Acidentário da empresa), do depósito para o FGTS (8%), além dos demais direitos (custos) trabalhistas que devem ser assegurados ao trabalhador, como décimo terceiro salário, férias, horas extras, vale-transporte, vale-alimentação, etc.
Diferentemente, caso a empresa tomadora dos serviços opte por contratar a pessoa jurídica constituída pelo profissional para prestar os mesmos serviços, ficará desincumbida dos encargos trabalhistas em 31% aproximadamente, além de simplificar a relação jurídica com o prestador, pela não necessidade de cumprir obrigações acessórias da legislação trabalhista, como a transmissão mensal de Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP.
Veja-se que a alteração na forma de contratação (de empregado para profissional pejotizado) tem significativo impacto sobre o orçamento da seguridade social.
É que com a substituição do contrato de emprego entre empresa tomadora dos serviços e empregado, por relação de prestação de serviços entre empresa tomadora e pessoa jurídica (profissional pejotizado), como exposto acima, além de se desonerar do depósito do FGTS (8%) e do SAT (3%), a contratante também se desobriga da contribuição previdenciária patronal (20%) prevista no art. 195, I, a, da CF/88.
Com a disseminação da prática da pejotização entre os profissionais liberais, tem-se a tendência de erosão cada vez mais significativa de uma das principais bases de tributação da seguridade social – a contribuição previdenciária patronal.
Há ainda outro benefício tributário para as empresas que contratam os profissionais sob a forma de pessoa jurídica. Trata-se da possibilidade, para as contratantes submetidas à apuração não cumulativa do PIS e da Cofins de que tratam as Leis n° 10.637/2002 e 10.833/2003, respectivamente, de apuração de créditos de PIS e Cofins sobre os pagamentos efetuados pelos serviços prestados pelos profissionais pejotizados. O §2° do art. 3° de referidas Leis veda expressamente a apropriação de créditos dessas contribuições sociais sobre o valor de mão-de-obra paga a pessoa física. Vejamos:
Leis n° 10.637/2002 e 10.833/2003
Art. 3°- Do valor apurado na forma do art. 2° a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:
II – bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata
0 art. 2o-da Lei nP-10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da TIPI;
[…]
§ 2° Não dará direito a crédito o valor: 1 – de mão-de-obra paga a pessoa física; (Negritei)
Assim, alterada a forma de contratação dos profissionais, da pessoa física para a pessoa jurídica, contornada está a vedação da legislação supracitada, possibilitando a apuração de créditos de PIS e Cofins sobre o pagamento da mão de obra pelas empresas submetidas ao regime da não cumulatividade das referidas contribuições, cuja arrecadação está constitucionalmente (art. 195, I, b, da CF/88) vinculada ao financiamento da Seguridade Social.
O fato é que o permissivo normativo à pejotização se apresenta como um contrassenso à argumentação do governo de déficit das contas da seguridade social, utilizada amplamente para legitimação política da reforma da previdência. É que, se a arrecadação de contribuições para a seguridade social não têm sido suficientes para cobrir as despesas com aposentadoria e demais benefícios da seguridade, por que reduzir a arrecadação decorrente dos serviços prestados por artistas, desportistas e pelos profissionais liberais?
3. Para os profissionais, a pejotização é uma cilada!
Como dito na introdução, aparentemente os destinatários imediatos do enunciado no art. 129 da Lei n° 11.196/2005 foram profissionais com remuneração astronômica, como artistas, desportistas, apresentadores de TV, etc.
Entretanto, considerando que o dispositivo em questão incluiu serviços intelectuais de natureza científica, não tardou para os empregadores “estimularem” os profissionais liberais, como os médicos, dentistas, arquitetos, etc, a abrirem CNPJ, para contratá-los como pessoas jurídicas, obtendo os benefícios tributários e trabalhistas mencionados anteriormente.
Para “convencimento” dos profissionais pela alteração na forma de contratação, geralmente os anteriores empregadores oferecem remuneração superior à paga ao profissional enquanto empregado submetido à CLT. O “aumento salarial”, acrescido da redução do IRPF, anteriormente descontado pela própria fonte pagadora, apresenta-se como oferta tentadora, dificultando a percepção dos profissionais sobre os riscos da decisão.
Para os profissionais pejotizados, a primeira dificuldade está na precária relação de trabalho. Com a pejotização, o profissional perde uma série de direitos que lhe eram conferidos quando empregado regido pela CLT. Após pejotizado, o profissional não mais terá direito a férias, décimo terceiro, repouso remunerado. Sua remuneração decorrerá diretamente dos serviços que prestar à empresa contratante da pessoa jurídica que ora titulariza.
A contratante não assume mais sozinha os riscos do empreendimento; os riscos serão compartilhados com o profissional pejotizado, inclusive quanto a evento de acidente ou doença, pois o anterior empregador não mais estará obrigado a lhe garantir remuneração e emprego.
Cabe um destaque sobre o tema responsabilidade civil. Na relação de emprego, com esteio no art. 2° da CLT, o empregador assume os riscos da atividade econômica, de modo que eventual responsabilização por falha no serviço prestado será sua, possibilitada ação regressiva contra o empregado prestador de serviço em caso de culpa comprovada do profissional.
Com a pejotização, em que o típico contrato de prestação de serviços se sujeita às normas do direito civil (ramo jurídico em que predomina senso de nivelamento entre as partes contratantes e a liberdade negocial), nada obsta que seja estipulada em contrato a assunção de responsabilidade solidária do profissional pejotizado com seu contratante, em relação ao serviço oferecido no mercado. Assim, os contratos de pejotização poderão carregar cláusulas de responsabilidade prioritária e objetiva dos profissionais em relação a seus contratantes, como as simuladas nas cláusulas seguintes:
Da responsabilidade
Cláusula X – Assume a contratada as responsabilidades e indenizações de caráter administrativo ou judicial em sua totalidade, caso ocorram erros nos serviços prestados por sua culpa, dolo ou qualquer outro título, devidamente comprovados.
Cláusula Y – Caso a contratante for acionada em ação judicial, de forma isolada ou solidária com a contratada, obriga-se esta a concordar com o pedido de exclusão da contratante da parte ré da lide, bem como lhe dá garantia de direito de ação de regresso para que a mesma venha a se ressarcir de todos os prejuízos que ocasionalmente venha a ter.
Além disso, outro fator importante, do ponto de vista econômico, é que a oferta inicial de remuneração superior para os profissionais pejotizados tenderá a não mais ocorrer quando a maioria dos profissionais estiverem submetidos a esta modalidade de contratação. Veja-se que a proposta de pagamento maior, feita pelos anteriores empregadores, tem por propósito convencer os profissionais a constituírem CNPJ e assumirem os riscos pela prestação do serviço. Entretanto, à medida que ocorre a mudança estrutural na relação de trabalho, ou seja, quando a maioria dos profissionais contratados se der sob a forma pejotizada, aos empregadores, não haverá mais a necessidade de oferta de remuneração superior, pois a realidade do mercado de trabalho será a sujeição dos trabalhadores à prestação de serviços como pessoas jurídicas. Assim, ao longo do tempo, a tendência natural será o retorno da remuneração desses profissionais ao patamar do que recebiam enquanto empregados, com o agravante da ausência de férias, décimo terceiro, etc.
4. A revogação da isenção do IRPJ sobre os lucros e dividendos distribuídos por pessoas jurídicas entrou na agenda política.
Como abordado anteriormente, a vantagem tributária para os profissionais decorreria da tributação de seus rendimentos não mais pelo IRPF, cuja alíquota varia de 7,5% a 27,5%, sendo que esta alíquota mais alta incide já sobre rendimentos superiores a R$ 4.664,68 (quatro mil, seiscentos e sessenta e quatro reais) mensais, conforme tabela vigente em 2019, disponível no site da Receita Federal do Brasil.
Com a nova modalidade de contratação, incidirão o IRPJ e a CSLL sobre o lucro que, considerando a opção do contribuinte pela forma presumida de tributação (art. 210 do Decreto n° 9.580/2018), em se tratando de serviços, será de 32% sobre a receita auferida (art. 220, §1°, III, a, do Decreto n° 9.580/2018). Sobre o faturamento da pessoa jurídica, ainda incidirão o PIS, a Cofins e o ISS.
Ocorre que a economia tributária na ordem de 6,26% para o profissional pejotizado, apresentada no citado estudo da Receita Federal (que não considera o custo de conformidade, nem a perda de direitos trabalhistas com férias, décimo terceiro e FGTS, repise-se!), tem sua explicação na isenção do IRPF sobre os lucros e dividendos distribuídos aos sócios das pessoas jurídicas.
Desde a edição da Lei n° 9.249 de 26 de dezembro de 1995, os lucros e dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficam sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integram a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário. Tais rendimentos são tributados exclusivamente na pessoa jurídica (IRPJ e CSLL), ficando isentos por ocasião da distribuição aos sócios.
Essa isenção vem sendo objeto de crítica desde sua edição, de forma mais intensa no cenário de crise fiscal atual, em que o orçamento do governo federal tem apresentado déficits sucessivos (valor da arrecadação tributária inferior ao das despesas públicas).
Conforme estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) sobre Imposto de Renda e distribuição de renda no Brasil (2019), além do Brasil, apenas a Estônia isenta de tributação os lucros e dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas, situação que, por si só, contradita fortemente a defesa pela manutenção de tal isenção. O mesmo estudo ainda informa que a revogação da isenção sobre a distribuição de lucros e dividendos pode representar aumento na arrecadação de até R$ 39 bilhões anuais.
Entidades de classe, como o Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, por exemplo, tem apresentado propostas tributárias emergenciais para enfrentamento da crise provocada pela Covid-19 (2020), dentre elas a revogação da sobredita isenção.
No cenário de 2020, considerando a queda de arrecadação decorrente da paralisia econômica para contenção da epidemia de Covid-19, dificilmente a isenção em questão permanecerá. Assim, considerando uma provável futura revogação da isenção de IRPF sobre a distribuição de lucros e dividendos, a economia tributária obtida pelos profissionais pejotizados será ainda mais reduzida, praticamente anulando a questionável vantagem econômica obtida com a prestação de serviços via pessoa jurídica.
5. O art. 442-B da CLT e o reforço à pejotização
Embora o art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 admita expressamente a transformação de pessoas físicas que prestam serviços intelectuais de natureza personalíssima em pessoas jurídicas, a Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT –impõe limite legal à prestação de serviços por pessoa jurídica. Tal limite se expressa na conjugação das seguintes disposições da norma trabalhista:
Art. 2° – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
[…]
Art. 3° – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.
[…]
Art. 9° – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
Assim, a partir da constatação, no âmbito de uma fiscalização, da presença dos elementos da relação de emprego presentes no art. 3° da CLT, a autoridade tributária desconsidera a forma jurídica e cobra as contribuições previdenciárias devidas sobre a remuneração paga ao profissional contratado.
Ocorre que, mediante pressão sob os legisladores, setores organizados dos contribuintes conseguiram, com a dita reforma trabalhista promovida pela Lei n°. 13.467/2017, inserir o art. 442-B na CLT, com a seguinte redação:
Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o desta Consolidação. (Incluído pela Lei n° 13.467, de 2017) (Grifou-se)
Essa nova disposição legal dificulta fortemente a identificação da relação empregatícia pela fiscalização tributária, uma vez que a pessoalidade e a habitualidade não podem mais ser considerados como elementos determinantes da relação de emprego.
Primeiro se tem a redação “com ou sem exclusividade” do art. 442-B da CLT que, em conjunto com a expressão “caráter personalíssimo”, do art. 129 da Lei n°. 11.196/2005, praticamente afasta a pessoalidade como traço relevante da relação empregatícia, eliminando a possibilidade da autoridade fiscal comprovar o uso irregular da pejotização pelo fato do profissional executar os serviços contratados com exclusividade.
Também não cabe mais à autoridade tributária concluir pela relação de emprego porque o profissional presta serviço de forma contínua, habitual.
Assim, considerando que a onerosidade não ajuda no traço distintivo, pois tanto na relação de emprego, quanto na mera relação de prestação de serviços, o pagamento pelos serviços prestados está presente, o elemento determinante para a prova do abuso na utilização da pessoa jurídica e configuração da relação de emprego está na subordinação.
Contudo, considerando que o art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 trata de serviços de natureza intelectual, a configuração do elemento subordinação é de difícil comprovação em relação aos serviços em que predomina o conhecimento científico, artístico ou cultural. Um médico contratado como pessoa jurídica por um hospital, por exemplo, não recebe ordens específicas do contratante sobre os conhecimentos que deve utilizar no atendimento aos pacientes.
Logo, em relação aos serviços de natureza intelectual, a comprovação da relação empregatícia restou limitada à comprovação da subordinação estrutural, situação em que o profissional se insere na estrutura organizacional da entidade, em funções de direção, gerência ou supervisão.
A propósito, não obstante a prática da pejotização atualmente seja mais presente em relação aos profissionais com alta remuneração, da conjugação entre o art. 442-B na CLT pela Lei n°. 13.467/2017 e o art. 129 da Lei n° 11.196/2005, não se visualiza óbice para que demais profissionais que prestam serviços de natureza intelectual constituam pessoas jurídicas para o exercício de suas profissões.
É que, embora aparentemente o art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 tivesse como destinatários imediatos artistas, apresentadores de canais de TV e desportistas, a natureza intelectual dos serviços é conceito abrangente, compreendendo várias atividades em que não predomina o trabalho técnico ou manual.
Na atividade de ensino, por exemplo, se se considerar que de regra os professores (do ensino infantil ao superior) não se subordinam aos contratantes (escolas e universidades) quanto à forma com que ministram suas aulas, com autonomia didático-científica, e que a habitualidade (presença diária para prestação do serviço), a pessoalidade e a onerosidade não são determinantes para a configuração do vínculo empregatício, sob a égide do art. 129 da Lei 11.196/2005, nada impede que os professores constituam pessoas jurídicas para prestação de serviço aos estabelecimentos de ensino.
Na realidade, mesmo para os prestadores com baixa remuneração, como professores de nível infantil, fundamental e médio, provavelmente não será incomum a constituição de pessoas jurídicas por pressão dos contratantes que, como visto acima, com a pejotização, eximir-se-ão da contribuição previdenciária patronal e de encargos trabalhistas como férias e décimo terceiro salário, sendo os principais, senão os únicos beneficiários da pejotização.
Tal situação, repisa-se, além da precarização dos direitos trabalhistas, reduzirá ainda mais a base da tributação da seguridade social.
6. A inconstitucionalidade – inobservância dos princípios da isonomia tributária e da capacidade contributiva
Consoante ensina Schoueri (2013, pág. 328), “para que se possa concretizar o Princípio da Igualdade, é preciso que se tenha um critério de comparação. Ou seja: para que se atenda ao Princípio da Igualdade, percorrem-se duas etapas: primeiro, encontra-se um critério e, em seguida, comparam-se as situações a partir do critério eleito”.
De forma mais específica, Ávila (2015) prescreve que uma norma que pretenda realizar a igualdade deve guardar uma relação de coerência entre os 4 seguintes elementos estruturais: sujeitos de comparação, medida de comparação, elemento indicativo da medida de comparação e finalidade da comparação.
Pois bem, analisando o texto do multicitado art. 129 da Lei n° 11.196/2005, identificam-se os seguintes elementos da norma:
a) sujeitos de comparação: as pessoas físicas;
b) medida de comparação: a natureza dos serviços realizados;
c) indicativo da medida de comparação: trabalho de natureza intelectual; e
d) finalidade: arrecadatória (nem o texto do dispositivo, nem a exposição de motivos da norma explicitaram a busca por valores outros, como geração de empregos, etc. Desse modo, a regra geral de norma de cunho tributário é ter por finalidade a arrecadação).
De pronto, percebe-se que o dispositivo legal afronta diretamente a vedação do inciso II do art. 150 da CF/88, que proíbe o legislador de instituir diferenciação entre os contribuintes meramente em razão da ocupação profissional ou função exercida. In verbis:
DAS LIMITAÇÕES DO PODER DE TRIBUTAR
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[…]
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; (Grifou-se)
Tanto a medida de comparação eleita (natureza do serviço), quanto o elemento indicativo dessa medida de comparação (serviço intelectual – atividade artística, cultural ou científica) afrontam diretamente a norma constitucional retrocitada, pois acabam por conceder tratamento tributário distinto em razão da ocupação profissional dos contribuintes.
Cabe ressaltar, conforme asseverado por Torres (2010), que com a CF/88, ficou extinta a isenção outorgada a militares, juízes e políticos, que vigeu no regime autoritário de 1967/69. Assim, nenhum privilégio pode ser concedido a qualquer profissão.
O profissional que, sob o manto da pessoa jurídica, exerce individualmente atividade de natureza intelectual, oferecendo apenas seu trabalho, sem auxílio de empregados, nem utilização de instalações e equipamentos, não se sujeita a situação diferente da daquele que presta seus serviços individualmente como pessoa física.
Se é dever do Estado tratar a todos igualmente (art. 5° da CF/88), deve ele demonstrar, com suficiente determinação, a finalidade que justifica qualquer distinção que faz entre seus cidadãos, especialmente em matéria tributária.
Isso porque a igualdade não é um valor a ser considerado em termos absolutos, mas relativo. Como ensina Schoeuri (2013, pág. 328), “a Constituição não consagra o princípio da Identidade, e sim o Princípio da Igualdade. A igualdade, diferentemente da identidade, é relativa”. Assim, para este mesmo professor, “pode-se considerar ferido o Princípio da Igualdade quando não se consegue identificar um critério para o tratamento diferenciado”.
E ainda conforme magistério de Schoeuri (2013), a diferenciação legislativa deve recair sobre parâmetros aceitos (não vedados) pelo constituinte originário, como, por exemplo, a capacidade contributiva (art. 145, § 1°), a essencialidade (arts.. 153 § 3°, I e 155, § 2°, III), tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte (art. 179), etc.
No caso em apreço, não se identifica qualquer situação de desigualdade material que legitime o tratamento diferenciado instituído pelo art. 129 da Lei n° 11.196/2005. Por maior esforço mental que se faça na busca de alguma situação de desigualdade material entre os empregados comuns, que realizam trabalhos técnico-manuais, e aqueles que prestam serviços de natureza intelectual, não se vislumbra razoável fator de discrímen em favor desses últimos, que fundamente legitimamente a diferenciação realizada pela norma criticada.
Ao contrário, quando se toma o exemplo dos profissionais médicos, que têm alto índice de empregabilidade, dada a demanda muito maior que a oferta por seus serviços, enxerga-se a odiosidade do regramento instituído pelo art. 129 da Lei n°. 11.196/2005, pois mesmo com grande empregabilidade e com rendimento médio alto, esses profissionais de natureza intelectual acabam por contribuir para o orçamento fiscal em menor medida que os profissionais comuns, de menor renda e maior vulnerabilidade às intempéries econômicas e consequentes crises de empregabilidade.
Logo, considerando que profissionais como médicos, dentistas, artistas, desportistas, advogados, etc, têm maiores remunerações, com maior capacidade econômica, o art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 ofende ainda a disposto no art. 145, §1°, da CF/88 (Brasil, 1988), que trata do princípio da capacidade contributiva.
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
[…]
§ 1° Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. (Grifou-se)
Para Schoeuri (2013, pág. 331), o princípio da capacidade contributiva representa a explicitação, no sistema tributário nacional, do princípio da solidariedade, que constitui um dos objetivos da República, consagrados no art. 3° da CF/88, sendo em nome desse princípio que, nos dizeres do referido jurista “o critério aceitável para a diferenciação dos contribuintes será aquele que atingir a máxima: cada um contribuirá com quanto puder para o bem de todos.“
Desse modo, considerando que o art. 129 da Lei n°. 11.196/2005, a um só tempo, descumpriu a vedação do art. 150, II, da CF/88, bem como os princípios de capacidade contributiva e da solidariedade, deveria ter tido sua presunção de constitucionalidade discutida judicialmente pelos órgãos e entidades competentes para a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com destaque para a Procuradoria-Geral da República.
Entretanto, em pesquisa ao índice de Ações Diretas de Inconstitucionalidade no site do Supremo Tribunal Federal do Brasil (2019), não foi encontrado qualquer questionamento sobre a irregularidade da norma.
Por outro lado, recentemente foi impetrada a Acão Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n° 66, em defesa do art. 129 da Lei n° 11.196/2005, pela Confederação Nacional de Comunicação Social (CNCOM).
A motivação para a propositura de tal ADC foi a atuação de auditores da Receita Federal que, identificando nas relações de trabalho das pessoas fiscalizadas a presença dos elementos da relação de emprego, desconsideraram a contratação dos profissionais via pessoa jurídica, efetuando a cobrança dos tributos incidentes sobre as remunerações pagas e recebidas como decorrentes de vínculo empregatício e aplicando as multas pertinentes.
Considerando que essas autuações estão sendo mantidas no âmbito da primeira e da segunda instância do contencioso administrativo fiscal, além do pleito pela constitucionalidade do art. 129 da Lei n° 11.196/2005, a proponente pleiteia também a declaração de incompetência dos auditores-fiscais para reconhecer vínculo empregatício de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas, sem prévia manifestação da Justiça do Trabalho.
Anexa à ADC n° 66, movida pela CNCOM e distribuída para relatoria da Ministra Cármen Lúcia, consta parecer do eminente tributarista Humberto Ávila. Da leitura de referido parecer, observa-se que o insigne professor adotou duas linhas de pensamento, uma para criticar a desconsideração da norma pelos auditores-fiscais, outra para legitimação da norma, que estaria perfeitamente alinhada ao princípio fundamental da liberdade. A seguir, conclusão do parecer, que resume o posicionamento do tributarista.
1) a norma reconstruída a partir do artigo 129 da Lei n°. 11.196/05 determina que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas; esta norma, portanto, esclarece que uma empresa legitimamente constituída com base no Direito brasileiro pode prestar serviço intelectual (critério A), em caráter personalíssimo (critério B) e com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados (critério C), sendo a presença destes três critérios irrelevante para a sua classificação como uma pessoa jurídica para fins fiscais;
2) o que se verifica na prática, contudo, é a existência de autos de infração lavrados pela Receita Federal em manifesta desconsideração ao teor desta norma, na medida em que a Receita Federal segue usando estes mesmos critérios para a autuação de contribuintes e a desconsideração da personalidade jurídica de empresas para fins fiscais e previdenciários, o que justifica a presente Ação Declaratória de Constitucionalidade para a manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do artigo 129 da Lei n°. 11.196/05;
3) a liberdade, tal como prevista na Constituição brasileira e interpretadapelo Supremo Tribunal Federal, não é decorrência da falta de normas queproíbem determinados comportamentos; ela é, em vez disso, decorrência daprevisão de normas que qualificam determinados comportamentos comopermitidos; este contexto demonstra que a Constituição adotou um sentidoforte e positivo de liberdade de acordo com o qual o cidadão pode fazer tudoaquilo que não seja expressamente proibido;
4) relativamente à atuação do Poder Executivo (e, portanto, da administração tributária) em conformidade à lei, a exigência de conformidade da administração tributária à lei assume o caráter de vinculação substancial da administração àquilo que esteja estabelecido em lei; não se trata de uma exigência de mera compatibilidade (ausência de contradição) ou de mera autorização (previsão legal), mas sim de uma exigência de predeterminação material, de acordo com a qual a lei funciona para a administração tanto em sentido positivo, predeterminando (positivamente) o conteúdo da atuação administrativa, isto é, delimitando aquilo que ela deve fazer (comandos), quanto em sentido negativo, circunscrevendo (negativamente) determinados limites para a atuação administrativa, isto é, delimitando aquilo que ela não pode fazer (vedações);
5) a exigência de legalidade material, portanto, tutela os direitos fundamentais contra a administração e reconduz a instituição e o aumento dos tributos ao domínio do legislador; ao fazê-lo, delimita a competência entre as fontes (o que cabe à lei e o que cabe ao regulamento) e delimita o poder entre os órgãos (o que cabe ao legislador e o que cabe ao administrador);
6) é nesse contexto que deve ser analisada a compatibilidade do artigo 129 da Lei n°. 11.196/05 com a Constituição, uma vez que a referida lei especificou o princípio constitucional de liberdade em duas normas expressas: de um lado, este dispositivo permite reconstruir uma norma de conduta proibitiva, dirigida à administração: esta fica proibida de desconsiderar as pessoas jurídicas com base nos critérios A (porque prestam serviços intelectuais), B (porque prestam serviços em caráter personalíssimo) e C (porque prestam serviços sem designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados), analiticamente, esta norma pode ser traduzida da seguinte forma: “É proibido à administração tributária empregar os critérios A, B e C para desconsiderar a pessoa jurídica prestadora de serviços para efeitos fiscais e previdenciários”;
7) de outro lado, este dispositivo permite reconstruir uma norma de conduta permissiva, dirigida ao contribuinte: este fica autorizado a criar pessoas jurídicas com base nos critérios A (para prestar serviços intelectuais), B (para prestar serviços em caráter personalíssimo) e C (para prestar serviços sem designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados), analiticamente, esta norma pode ser traduzida da seguinte forma: “É permitido ao contribuinte criar pessoas jurídicas com base nos critérios A, B e C sem que elas sejam desconsideradas para efeitos fiscais e previdenciários”;
8) assim, a proibição de o administrador desconsiderar pessoas jurídicas com base nos critérios A, B e C traduz, de modo simétrico e coextensivo, o direito fundamental (e legalmente especificado) de o contribuinte formar pessoas jurídicas com base nos critérios A, B e C: são dois lados da mesma moeda, porque tal especificação legal do direito fundamental de liberdade impede que a administração possa utilizar os critérios da natureza dos serviços e da existência de obrigações a sócios e empregados para desconsiderar as pessoas jurídicas para efeitos fiscais;
9) as normas reconstruídas a partir o artigo 129 da Lei n°. 11.196/05 são, portanto, expletivas de um direito que já poderia ser reconstruído a partir dos direitos prescritos pela Constituição: como a Constituição Federal garante o livre exercício de atividade econômica, o contribuinte é livre para definir o que contratar, com quem contratar, como contratar e quando contratar;
10) todas as considerações anteriores permitem afirmar que o artigo 129 daLei n°. 11.196/05 está em plena conformidade com a Constituição, namedida em que ela apenas concretiza, mediante especificação, o direitofundamental de liberdade.
Com todas as vênias possíveis, ousamos discordar do eminente parecerista.
Como disse o ex-ministro do STF Eros Grau em voto-vista proferido no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 101, ” não se interpreta o direito em tiras; não se interpretam textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo”.
Assim, ao concentrar seu parecer pela constitucionalidade do art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 com supedáneo no princípio fundamental da liberdade, o nobre jurista parece não ter considerado que o cerne do problema está no tratamento tributário favorecido, que não se sustenta, considerando que a medida de comparação e o elemento indicador de tal medida, eleitos pelo legislador, afrontam expressa e diretamente texto constitucional (art. 150, II), que, em verdadeira norma-regra, em juízo de tudo ou nada, ou seja, sem possibilidade de ponderação, proíbe “qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
O entendimento pela inconstitucionalidade da medida de comparação, bem como da classificação da vedação do art. 150, II, da CF/88, como norma-regra, decorre de ponderação realizada pelo próprio constituinte originário e que, portanto, não comporta atenuação pelo legislador ou pelo judiciário, como ensina o próprio Ávila (2012, pág. 171):
3.6.3.1 Igualdade
A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade de distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim). Sem negrito no original.
Ademais, o texto do art. 129 da Lei n° 11.196/2005 não revela mera norma expletiva de direito já permitido pelo ordenamento até então vigente, como defende o parecerista, pois o ordenamento pátrio não permitia a prestação de serviços personalíssimos sob a forma de pessoa jurídica.
Nessa senda, vejamos o que dispunha o Decreto n° 3.000/99 (Regulamento de Imposto de Renda), vigente à época da publicação do dispositivo legal criticado:
“TRIBUTAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS CONTRIBUINTES
Art. 146. São contribuintes do imposto e terão seus lucros apurados de acordo com este Decreto (Decreto-Lei n°5.844, de 1943, art. 27):
I – as pessoas jurídicas (Capítulo 1);
II – as empresas individuais (Capitulo II).
§ 1° As disposições deste artigo aplicam-se a todas as firmas e sociedades, registradas ou não (Decreto-Lei n°5.844, de 1943, art. 27, § 2°).
§ 2° As entidades submetidas aos regimes de liquidação extrajudicial e de falência sujeitam-se às normas de incidência do imposto aplicáveis às pessoas jurídicas, em relação às operações praticadas durante o período em que perdurarem os procedimentos para a realização de seu ativo e o pagamento do passivo (Lei n°9.430, de 1996, art. 60).
§ 3° As sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada são tributadas pelo imposto de conformidade com as normas aplicáveis às demais pessoas jurídicas (Lei n° 9.430, de 1996, art. 55).
§ 4° As empresas públicas e as sociedades de economia mista, bem como suas subsidiárias, são contribuintes nas mesmas condições das demais pessoas jurídicas (CF, art. 173, § 1°, e Lei n° 6.264, de 18 de novembro de 1975, arts. 1° a 3°.
CAPITULO II
EMPRESAS INDIVIDUAIS
Art. 150. As empresas individuais, para os efeitos do imposto de renda, são equiparadas às pessoas jurídicas (Decreto-Lei n° 1.706, de 23 de outubro de 1979, art. 2°).
§ 1° São empresas individuais:
I – as firmas individuais (Lei n°4.506, de 1964, art. 41, § 1°, alínea “a”);
II – as pessoas físicas que, em nome individual, explorem, habitual eprofissionalmente, qualquer atividade econômica de natureza civil oucomercial, com o fim especulativo de lucro, mediante venda a terceirosde bens ou serviços (Lei n°4.506, de 1964, art. 41, § 1°, alínea “b”);
III – as pessoas físicas que promoverem a incorporação de prédios emcondomínio ou loteamento de terrenos, nos termos da Seção II desteCapitulo (Decreto-Lei n° 1.381, de 23 de dezembro de 1974, arts. 1° e 3°,inciso III, e Decreto-Lei n° 1.510, de 27 de dezembro de 1976, art. 10, inciso
I).
§ 2° O disposto no inciso II do parágrafo anterior não se aplica às pessoas físicas que, individualmente, exerçam as profissões ou explorem as atividades de:
I – médico, engenheiro, advogado, dentista, veterinário, professor, economista, contador, jornalista, pintor, escritor, escultor e de outras que lhes possam ser assemelhadas (Decreto-Lei n° 5.844, de 1943, art. 6°, alínea “a”, e Lei n°4.480, de 14 de novembro de 1964, art. 3°);
II – profissões, ocupações e prestação de serviços não comerciais (Decreto-Lei n°5.844, de 1943, art. 6°, alínea “b”);”
[… ]
Negritei.
A leitura da legislação supracitada revela que o ordenamento não permitia tratamento tributário de pessoa jurídica a serviços prestados em caráter personalíssimo, individual, mesmo em relação a profissões regulamentadas, como as de médico, engenheiro, advogado, dentista, etc.
É certo que já se prescrevia o tratamento tributário de pessoa jurídica a “sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão legalmente regulamentada” (art. 146, §3°, Decreto n° 3.000/99), mas não em relação a atividades personalíssimas, exploradas individualmente, exercidas com exclusividade, conforme o art. 129 da Lei n° 11.196/2005 veio possibilitar.
Essa ideia, qual seja, a de não possibilitar tratamento “despessoalizado” (de pessoa jurídica) a serviços executados de forma individual (exercido só por aquela pessoa natural, em razão de suas qualificações pessoais) tem fundamento na própria concepção e utilidade da instituição pessoa jurídica.
O instituto da pessoa jurídica é criação do direito para resolver problemas da realidade social, sendo que as sociedades de direito privado foram forjadas para facilitar e incentivar as atividades comerciais, conforme ensinamento de Rodas (2016):
As sociedades de interesse privado foram as últimas a se revestir de personalidade jurídica. No que tange às sociedades comerciais, elas se forjaram sob o influxo dos costumes sociais e das exigências do comércio, tendo sido inicialmente regidas por Direito Consuetudinário, mais tarde reconhecido pela jurisprudência. A legislação começaria a se preocupar com a matéria somente no século XVII, com as ordenações francesas.
[…]
Inobstante os diferentes tipos sociais tenham-se corporificado isoladamente, não se pode negar terem mutuamente exercido certas influências.
Da empresa familiar e da solidariedade e indivisão que lhe são características, brotaria uma espécie de sociedade: sociedade geral ou em nome coletivo. A proibição canónica de receber juros de empréstimos e o interesse em participar nos riscos de um negócio faria surgir a sociedade em comandita. Já a sociedade por ações foi o arcabouço associativo elaborado para servir os fins dos banqueiros e colonizadores.
Sendo um instrumento autorizado pelo direito para o atingimento de interesses humanos, especialmente os relacionados à necessidade de segurança jurídica, pode-se dizer que o instituto da pessoa jurídica, quando se refere a sociedade, tem por principais funções a distinção dela em relação às pessoas que compõem o quadro da instituição, bem como a autonomia patrimonial da sociedade em relação aos bens dos sócios. Nessa linha, o magistério de Tomazette (2017, pág. 305):
Uma das consequências mais importantes da personificação das sociedades é a existência distinta da dos seus sócios (art. 20 do Código Civil de 1916), vale dizer, é o reconhecimento da sociedade como um centro autónomo de imputação de direitos e obrigações. Assim sendo, os atos praticados pela sociedade são atos dela e não de seus membros, produzindo efeitos na sua órbita jurídica e apenas excepcionalmente afetando os sócios, por problemas de aparência.
[…]
A última e mais importante consequência da personificação de uma sociedade é a autonomia patrimonial, isto é, a existência de um património próprio, o qual responde por suas obrigações. Disso decorre que, a princípio, é o património da pessoa jurídica a garantia única dos seus credores e, por conseguinte, os credores, a princípio, não possuem pretensão sobre os bens dos sócios.
Por essa lógica, em decorrência da funcional necessidade de diferenciação entre pessoa física e jurídica, a legislação tributária então vigente (art. 146 c/c art. 150 do Decreto n° 3.000/99) vedava o tratamento tributário concedido às pessoas jurídicas, para as atividades de natureza personalíssima, exploradas de forma individual por pessoa natural. Assim, ao prescrever tratamento tributário de pessoa jurídica a serviços intelectuais, de natureza personalíssima, o art. 129 da Lei n° 11.196/2005 acabou por instituir regime diferenciado de tributação para seleta categoria de serviços, não representando, portanto, mera norma de caráter interpretativo.
Sobre o problema tributário do enunciado legal em combate, vejamos também a manifestação do Congresso Nacional no bojo da ADC n° 66, conforme trecho seguinte:
27. Além do mais, a lei em questão possui natureza fiscal-previdenciária, tanto é assim que para a aplicação da regra, necessária se faz o preenchimento de certos requisitos, com o fim de respeitar os limites impostos com uma interpretação ontológica. São três os critérios mencionados: (i) prestação de serviço intelectual (critério A); (ii) em caráter personalíssimo (critério B); e (iii) com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados (critério C).
28. Nesse diapasão, é possível afirmar que a redação do art. 129 da referida Lei se respalda em um cenário de evolução, tanto do Direito do trabalho quanto do Direito Tributário, possibilitando a contratação de tais serviços com significante diminuição do ônus inerente aos contratos de trabalho que, até então, eram submetidos à Consolidação das Leis do Trabalho.
29. Com efeito, o disposto no art. 129 da Lei n° 11.196/2005 objetiva afastar a controvérsia sobre a incidência tributária nas hipóteses de prestação de serviços personalíssimos de natureza intelectual, artística, científica ou cultural, vale dizer, se há incidência da exação sobre a atividade exercida pela sociedade ou pelos seus sócios ou empregados. Sua essência foi justamente desonerar os contratantes de mão de obra dos encargos previdenciários sob responsabilidade dos empregadores.
A manifestação do Congresso Nacional, ao afirmar que a essência da norma “foi justamente desonerar os contratantes de mão de obra dos encargos previdenciários sob responsabilidade dos empregadores”, reforça as duas principais ideias defendidas neste artigo: a de grave precarização de direitos trabalhistas, sendo os empregadores os principais destinatários da economia fiscal e previdenciária concedida; e a de inconstitucionalidade do enunciado legal, por afronta ao princípio da isonomia tributária, pois os destinatários da norma foram seletos empregadores, excluindo de seus benefícios, sem motivo revelado, os empregadores de profissionais que executam atividades de natureza técnica ou manual.
A propósito, do conteúdo da manifestação do Congresso Nacional, pode-se perceber o contexto de baixa legitimidade da norma em debate, a qual promoveu verdadeira reforma estrutural nas relações trabalhistas, previdenciárias e tributárias, sem grande debate e divulgação social. Ou seja, na prática, promoveu uma verdadeira revogação de direitos trabalhistas e previdenciários de profissionais de serviços intelectuais, bem como redução expressiva de obrigações tributárias para seletos empregadores.
Veja-se que, sob a justificativa de existência de “um cenário de evolução do Direito do Trabalho e Tributário”, com o art. 129 da Lei 11.196/2005, o Congresso Nacional retirou dos prestadores de serviços de natureza intelectual, sem alarde, direitos históricos, de ordem constitucional, como as férias remuneradas. Se a ideia era a desoneração da folha de pagamentos, havia outras opções, como a redução da alíquota da Contribuição Previdenciária Patronal, bem como a eliminação ou redução de diversas outras contribuições sobre a folha de pagamento. Tudo após amplo debate legislativo, com apresentação de medidas de compensação da queda de arrecadação necessária ao custeio do orçamento da seguridade.
Ademais, ainda que não existisse a vedação do art. 150, II, da CF/88, devese considerar que não está em xeque apenas afronta ao direito fundamental de liberdade, com a alegada interferência injustificada da administração tributária sobre as escolhas dos contribuintes quanto à forma de exercício de suas atividades. Também está em jogo o dever do Estado de assegurar tratamento igualitário aos contribuintes, notadamente sob o seu aspecto material.
Cabe lembrar que o constituinte de 1988 não optou pela conformação da República Federativa do Brasil como um estado liberal (de extrema liberdade) ou social (de extrema igualdade), mas como um estado democrático de direito (art. 1° da CF/88), resultado da convergência entre essas duas ideologias, conforme nos ensina o saudoso Reale (2005) em seu clássico livro O Estado Democrático de Direito e os Conflitos das Ideologias.
Assim, para além da inconstitucionalidade da norma em debate por afronta à regra constitucional esposada no art. 150, II, da CF/88, a atuação dos auditores da Receita Federal está assentada na competência fiscalizatória para constituição e cobrança dos tributos de competência da União (como a contribuição previdenciária e o IRPF, por exemplo), bem como no poder de desconsideração de atos ou negócios jurídicos dissimulados, quando se depararem as autoridades com situação em que, embora sob o manto da pejotização, esteja presente a relação de emprego, com os serviços executados por pessoa física de forma pessoal, subordinada, habitual e onerosa.
Como é cediço, a liberdade não é um direito absoluto, de modo que as formas de exercício das atividades particulares só podem ser consideradas válidas quando em harmonia com os demais valores constitucionais, como os da igualdade e da solidariedade.
Nesse diapasão, configura abuso de forma a prática de atos jurídicos dissimulados, com a exclusiva finalidade de fugir à tributação, não podendo ser considerada lícita a elisão praticada sem qualquer finalidade negocial, quando os atos ou negócios realizados, além de contrários à constituição e à lei, objetivam a simples economia de tributos.
Sobre os limites aos planejamento tributário, vale destacar o pensamento de Greco (2019), segundo o qual o art. 145, § 1°, da CF/88, ao estabelecer o princípio da capacidade contributiva ou econômica, impôs um cerco à criatividade dos agentes econômicos, representando um postulado intimamente ligado ao princípio democrático da solidariedade social, um instrumento que compatibiliza e torna possível a vida em sociedade. Segundo Grego (2019, pág. 333), “no sistema brasileiro, a capacidade contributiva é desdobramento, no campo tributário, do princípio da solidariedade social e, portanto, é elemento necessário para construir uma sociedade justa (CF/88, artigo 3°, I) o que repercute na identificação da eficácia jurídica que deve ser-lhe reconhecida.
Desse modo, a fiscalização tributária tem legitimação constitucional e legal para o combater o abuso de forma na utilização de pessoa jurídica, quando se identifique e se comprove que ela se deu para esconder o vínculo empregatício, com mera intenção de economia tributária.
7. Tema 1398/STF – Licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do Tema 1.389 no ARE 1.532.603 (PR) e, em sequência, determinou a suspensão nacional de processos que discutem: (i) a competência da Justiça do Trabalho para julgar discussões sobre fraude em contratos civis/comerciais de prestação de serviços; (ii) a licitude da contratação de autônomos ou de pessoas jurídicas (PJs) para prestação de serviços; e (iii) a distribuição do ônus da prova nessas ações. Trata‑se do “marco” do debate contemporâneo sobre “pejotização”, com efeitos que atravessam o direito do trabalho e alcançam o fiscal e o previdenciário
Na fase de organização do julgamento, o relator, ministro Gilmar Mendes, convocou audiência pública — remarcada para 6/10/2025 — justamente para coletar elementos técnicos (inclusive tributários) sobre o fenômeno: efeitos em arrecadação, vantagens fiscais típicas de prestação de serviços por PJ, riscos previdenciários e possíveis alterações legislativas. Isso explicita que a controvérsia não é apenas trabalhista, mas também fiscal, com repercussão direta em IR, contribuições à Previdência e FGTS.
Em decisão posterior, o STF delimitou o escopo do que será decidido: relações mediadas por aplicativos (motoristas/entregadores) não integram o Tema 1.389 — seguirão por trilho próprio. Essa linha de corte reduz o risco de uma tese genérica capturar arranjos contratuais de lógica bastante distinta.
O Tema 1.389 vai muito além do direito do trabalho: ele definirá parâmetros para a licitude da contratação de autônomos e pessoas jurídicas (PJs), a competência da Justiça do Trabalho e o ônus da prova em alegações de fraude (“pejotização”). Esses contornos influenciam requalificações fiscais (IRPJ/CSLL x IRPF/INSS), autuações da Receita e o contencioso no Carf. Em 14/4/2025, o relator min. Gilmar Mendes determinou o sobrestamento nacional dos processos sobre o tema até o julgamento de mérito do ARE 1.532.603 (leading case), reconhecido com repercussão geral.
Nos debates, foram apresentados sinais, ainda que parciais, sobre o posicionamento dos ministros com reflexo tributário:
Alexandre de Moraes: limites à requalificação fiscal da Receita: Em 22/3/2024, na Rcl 64.608/DF, o min. Alexandre de Moraes validou a contratação por PJ e anulou autuação da Receita Federal que havia desconsiderado a forma jurídica para exigir IR como se houvesse vínculo de emprego (caso envolvendo dirigente contratado via PJ).
O despacho apontou que a fiscalização afastou precedentes do próprio STF sobre a licitude de formas contratuais para além do emprego (ADPF 324/ADC 48/Tema 725), sinalizando freios à requalificação tributária automática quando não demonstrada fraude. Embora monocrática e casuística, a decisão indica a tendência de respeitar a forma lícita quando amparada por evidências de autonomia.
Ônus fiscal quando há reconhecimento posterior de vínculoEm evento público, Moraes sugeriu — em tom não vinculante — que quem aceitou contratar como PJ e depois busca reconhecer vínculo empregatício deveria arcar com os tributos de pessoa física relativos ao período, hipótese que, segundo ele, desestimularia “pejotizações” oportunistas. Trata-se de opinião (não tese), mas que antecipa discussões sobre compartilhamento de ônus fiscais quando há requalificação judicial.
Dias Toffoli: reforço à licitude de contratações por PJNa Rcl 65.868 (26/2/2024), Toffoli também validou a contratação por PJ em situação na qual a Justiça do Trabalho havia reconhecido vínculo de emprego, destacando a necessidade de harmonizar decisões com os precedentes do STF sobre terceirização e liberdade contratual.
Gilmar Mendes: direção de voto e método de construção da teseEm 27/8/2025, o relator sinalizou apoio à licitude da contratação por PJ e disse buscar um voto de redação compartilhada, para votar ainda em 2025. A orientação é compatível com precedentes (ADPF 324, ADC 48), preservando a liberdade de organização produtiva, sem blindar fraudes.
De todo modo, espera-se os seguinte efeitos tributários prováveis da tese (à luz do que já se observou do posicionamento pretérito de membros do STF)
1. Requalificação fiscal não automáticaAs decisões monocráticas e a própria moldura do Tema 1.389 apontam que não basta a Receita reetiquetar pagamentos para exigir IRPF/INSS como se houvesse emprego: será preciso demonstrar fraude e superar evidências de autonomia do arranjo (contrato, múltiplos clientes, assunção de riscos, organização própria etc.). A Rcl 64.608 é ilustrativa ao cassar a autuação fiscal apoiada em requalificação trabalhista presumida.
2. Se houver reconhecimento judicial de vínculo, a conta fiscal tende a migrarEm hipóteses de reconhecimento judicial de emprego, cresce o espaço para exigir IRPF, contribuições previdenciárias e encargos compatíveis com remuneração de empregado — e, a depender do caso, discutir responsabilidades de contratante e contratado. A fala pública de Moraes antecipa debate sobre a repartição de ônus tributários nesses cenários.
3. Alinhamento com precedentes de terceirizaçãoA tese deverá dialogar com ADPF 324/ADC 48/Tema 725, que afirmaram a licitude de terceirização/ampliação de formas contratuais — diretriz que tem sido invocada pelo STF em reclamatórias para corrigir decisões trabalhistas que desconsideram esses fundamentos. Esse pano de fundo reduz a margem para autuações fiscais baseadas só na forma “emprego por trás da PJ”, sem prova de fraude.
4. Âmbito da suspensão e “linhas de corte”A suspensão não alcança relações mediadas por aplicativos, e já houve decisões esclarecendo hipóteses fora do Tema (p.ex., ausência de contrato formal). Esses recados operam como balizas: o que está no Tema tende a aguardar a tese; o que não está pode seguir tramitando com impactos fiscais associados.
Conclusão
É constante a atuação política de agentes econômicos no sentido da redução de suas participações nos recursos do orçamento fiscal. No Brasil, há várias normas de contorno às regras gerais de tributação, reduzindo a participação dos mais abastados no custeio das despesas públicas.
Nesse contexto, o instituto da pejotização de serviços intelectuais, instituído pelo art. 129 da Lei n° 11.196/2005, como abordado no texto, representa uma norma de contorno à regra geral de contratação dos profissionais sob a égide da CLT, possibilitando economia tributária aos profissionais pejotizados e, principalmente, aos anteriores empregadores.
Entretanto, à guisa dos princípios da isonomia tributária e da capacidade contributiva, textualmente previstos na CF/88, na interpretação do direito tributário deve prevalecer a presunção contra privilégios e discriminações, que, no Estado Democrático Fiscal, devem estar sob suspeita de odiosidade.
A parte final do art. 150, II, da CF/88, veicula norma-regra que proíbe qualquer distinção tributária em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Logo, nenhum privilégio pode ser concedido a qualquer profissão, nem mesmo a jornalistas, professores e escritores, como aconteceu no passado.
Desse modo, o regime favorecido de tributação instituído pelo art. 129 da Lei n°. 11.196/2005 se revela como uma diferenciação odiosa, pois na busca de alguma situação de desigualdade material entre os empregados comuns e aqueles que prestam serviços de natureza intelectual, não se identifica fator de discrímen razoável em favor desses últimos, para fundamentação da diferenciação.
Em outras palavras, o profissional liberal que, sob o manto da pessoa jurídica, exerce individualmente atividade de natureza intelectual, oferecendo apenas seu trabalho, sem auxílio de empregados e utilização de instalações e equipamentos, não se sujeita a situação diferente da daquele que presta seus serviços individualmente como pessoa física.
A defesa da constitucionalidade do art. 129 da Lei n° 11.196/2005, embasada em parecer do eminente professor Humberto Ávila, concentra-se na tese de que o enunciado legal está alinhado ao princípio fundamental da liberdade, apenas declarando ser o contribuinte livre para definir o que contratar, com quem contratar, como contratar e quando contratar, direito que, segundo alega, nem precisaria de enunciado de lei, podendo ser exercido diretamente a partir do texto constitucional.
Como abordado, tal tese não pode ser reconhecida, pois a legislação tributária então vigente (art. 146 c/c art. 150 do Decreto n° 3.000/99) vedava tratamento tributário das pessoas jurídicas a atividades de natureza personalíssima, realizada apenas por específica pessoa natural. Assim, ao prescrever tratamento tributário de pessoa jurídica a serviços intelectuais, de natureza personalíssima, o art. 129 da Lei n° 11.196/2005 acabou por instituir regime diferenciado de tributação para seleta categoria de serviços, não representando mera norma de caráter interpretativo.
Ademais, ao analisar a constitucionalidade da norma em questão, deve-se considerar que não está em xeque apenas a alegada afronta ao direito fundamental de liberdade, diante de interferência da administração tributária sobre escolhas dos contribuintes quanto à forma de exercício de suas atividades. Também está em jogo o dever do Estado de assegurar tratamento igualitário aos contribuintes, notadamente sob o seu aspecto material.
Assim, a atuação dos auditores da Receita Federal está assentada na competência fiscalizatória para constituição e cobrança dos tributos de competência da União (como a contribuição previdenciária e o IRPF, por exemplo), bem como no poder de desconsideração de atos ou negócios jurídicos dissimulados, quando se depararem as autoridades com situação em que, embora sob o manto da pejotização, esteja presente a relação de emprego, com os serviços executados por pessoa física de forma pessoal, subordinada, habitual e onerosa.
Não é demais repetir que a República Federativa do Brasil, constituindo-se em um estado democrático de direito, fundamenta-se não apenas o pensamento liberal (livre iniciativa), mas também os valores sociais do trabalho (igualdade e solidariedade), representando, em conclusão do processo dialético, uma espécie de síntese dessas ideologias.
Referências
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed., revista e ampliada, São Paulo: Malheiros, 2012.
ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. 3.ed. edição, São Paulo: Malheiros,
2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20/05/2020.
BRASIL. Lei n° 11.196, de 21 de novembro de 2005. Dispõe sobre regimes especiais de tributação e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11196.htm. Acesso em
20/05/2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Índice de Ações Diretas de Insconstitucionalidade. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/indiceAdi/listarIndiceAdi.asp. Acesso em
19/08/2019.
BRASIL. Secretaria da Receita Federal. O fenômeno da pejotização e a motivação tributária. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/estudos-diversos/o-fenomeno-da-pejotizacao-e-a-motivacao-tributaria.pdf/view. Acesso em 04/09/2018.
BRASIL. Secretaria da Receita Federal. Tabela de incidência do IRPF. Disponivel em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/acesso-rapido/tributos/irpf-imposto-de-renda-pessoa-fisica#tabelas-de-incid-ncia-mensal. Acesso em 20/05/2020.
Parecer Humberto Ávila na ADC n° 66. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcess oEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5794122. Acesso em 20/05/2020.
Manifestação do Presidente da República na ADC n° 66. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcess oEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5794122. Acesso em 20/05/2020.
Manifestação do Senado Federal na ADC n° 66. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcess oEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5794122. Acesso em 20/05/2020.
GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4a edição. São Paulo: Quartier Latin,
2019.
Reale, Miguel. O Estado democrático de direito e o conflito das ideologias. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Rodas, João Grandino. Direito empresarial: Evolução histórica e importância do instituto da limitação de responsabilidade patrimonial. Revista Consultor Jurídico, 21 de abril de 2016. Disponível em : https://www.conjur.com.br/2016-abr-21/olhar-economico-evolucao-criou-pessoa-juridica-merece-conhecida. Acesso em: 24/05/2020.
Schoueri, Luís Eduardo. Direito Tributário. 3a ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Brasil. 10 propostas tributárias emergenciais para o enfrentamento da crise provocada pela Covid-19. Disponível em: http://unafisconacional.org.br/UserFiles/2020/File/Medidas-Emergenciais Propostas_Fiscos.pdf. Acesso em 20/05/2020.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Teoria Geral e Direito Societário. Vol 1 – 8. ed. rev. E atual. – São Paulo: Atlas, 2017.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário – 17.ed., atualizada até 31.12.2009 – Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
[1] Cerco a prestadores de serviços chega ao Conselho de Contribuintes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2005-mar-22/receita_fecha_cerco_aos_prestadores_servicos. Acesso em 15/05/2020.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
Oliveira, Rhenee Bezerra de. e Meneses Junior, Carlos Gomes. Pejotização – Precarização de direitos trabalhistas, inconstitucionalidade em matéria tributária. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.17108554, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 12/09/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/pejotizacao-precarizacao-de-direitos-trabalhistas-inconstitucionalidade-em-materia-tributaria/. Acesso em: 17/09/2025.