Direitos Humanos e Estado de exceção

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito, Educação, Filosofia

Este artigo foi revisado e aprovado pela equipe editorial.

Aprovado em 25/01/2024

15/01/2024

Autores

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Jorge Leandro Short Fontes

Curriculo do autor: Possui graduação em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL (2012), graduação em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (2019) e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (2016).

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Resumo

Este trabalho explora a análise de Giorgio Agamben sobre as estruturas de poder e os conceitos de "estado de exceção" e "bio-política", que ele identifica como os fundamentos operacionais das organizações políticas contemporâneas. A partir dessa perspectiva, o "campo" emerge como a manifestação desse poder, onde a "vida nua" é submetida a uma lógica de inclusão excludente. Com base em teorias de filósofos como Foucault, Schmitt, e Arendt, o estudo questiona as fundações jusnaturalistas e contratualistas do estado moderno, que, ao invés de protegerem a dignidade humana, servem ao poder soberano como justificativa para a apropriação da vida. O texto discute as limitações do constitucionalismo na garantia de direitos fundamentais e explora como a globalização reforça o bio-poder sobre os estados-nação, especialmente os periféricos, convertendo os direitos humanos em instrumentos de controle e disciplinarização.

Palavras-Chave

Estado de Exceção. Bio-política. Vida Nua

Abstract

Based on Giorgio Agamben's juridico-philosophical work and his views on modern and postmodern political organizations, this study examines the concepts of "band," "bare life," "state of exception," and "biopolitics" to argue that the state of exception is the foundation of biopolitics in contemporary states, with the "camp" as the materialization of this power logic. The analysis advocates revisiting the contractualist categorical framework of the modern state's foundation (Hobbes, Grotius, etc.), particularly addressing its foundational elements that influence contemporary juridical thought—namely, the interplay of state, sovereignty, and nation. Agamben posits that the appropriation of life, by integrating it into the strategic calculations of power, was present since the formation of the modern state and the theoretical construction of the human as a rights-bearing subject. This rereading does not negate the protective role of human rights—enshrined in historical human rights declarations and the political charters of democratic states—but highlights their dual nature, which allows sovereign power to appropriate bare life under the guise of citizenship protection. The state of exception, turned into a technique of power, represents the new normal, with the "camp" embodying this paradigm, where human beings, under biopolitical arbitrariness, are detached from their humanity, making fundamental human rights violations permissible.

Keywords

Biopolitics. State of Exception. Sovereignty

1. INTRODUÇÃO

Com base na produção jurídico filosófica de Giorgio Agamben, bem como na sua concepção sobre as organizações políticas modernas e pós-modernas, considera-se os conceitos de bando, vida nua, estado de exceção e bio-política para afirmar que o estado de exceção é a base de atuação da bio-política no estado contemporâneo e o campo a materialização dessa lógica de poder. Defende-se, nessa linha, uma revisão do quadro categorial contratualista de fundação do estado moderno (Hobbes, Grotius etc.), ou melhor, a superação de alguns pilares de sua fundamentação que condicionam em certa medida o pensamento jurídico contemporâneo, especialmente a representação do trinômio estado, soberania e nação. Para Agamben, a apropriação da vida (sua inclusão nos cálculos estratégicos do poder) já estava presente com a formação do estado moderno e a construção teórica do homem enquanto sujeito de direitos. A realização dessa (re) leitura das bases de fundação do estado não negará a função de defesa dos direitos humanos — presentes nas declarações históricas de direitos humanos e nas diversas cartas políticas dos estados democráticos de direito ocidentais — na proteção dos direitos e garantias públicas, mas ressaltará seu caráter bifronte ou dúplice que assegura ao poder soberano apropriar-se da vida nua à pretexto da tutela da cidadania e a partir de uma lógica de inclusão excludente ou de exclusão includente, termos próprios de Agabamben. O estado de exceção, transformado em técnica de poder, é o ‘novo normal’ e o campo, estrutura que assumiu a função de princípio regulador da inscrição da vida no ordenamento territorial, é a sua manifestação por excelência, onde o homem, sob o arbítrio bio-político, é dissociado de sua humanidade e toda espécie de violações aos direitos humanos fundamentais é permitida.

2. BASES DO ESTADO MODERNO

Segundo Giacoia Jr. (2008), a perspectiva de um direito natural fundado em um comando eterno, imutável e superior a qualquer poder temporal é alterada no início da modernidade. A natureza humana racional é tornada o elemento decisivo para opor-se aos atos decorrentes do exercício da soberania, a fundamentação última da Justiça no sentido legado em Antígona, quando a personagem principal que dá o nome a essa Tragédia se opôs ao decreto real de Creonte com base em uma instância superior de fundamentação das ações humanas. No mesmo sentido, Sarmento (1999) destaca que “durante a ilustração, foram edificados os pilares do jusnaturalismo racionalista que centrava as suas preocupações no ser humano, considerando-o como ente dotado de direitos que precediam ao Estado, e que deveriam ser assegurados pela ordem jurídica.”

Por isso, pode-se afirmar que a humanidade do homem é publicada em diversas declarações políticas enquanto o fundamento e limite do direito e da atuação soberana. O exercício dos poderes inerentes à conjuntura jurídico política do estado moderno é respaldado em algo que o ultrapassa e o justifica. Segundo Sarmento (1999), “(…) com o constitucionalismo, a fonte do poder soberano desloca-se da pessoa do monarca para a Nação à qual se atribui a titularidade do Poder Constituinte”. Há, portanto, uma continuidade do poder soberano, todavia sob outra configuração. Os direitos humanos (elemento ideológico fundante do contrato social), nessa perspectiva, constituem o baluarte do ser humano, posto que (re) conhecidos como a limitação metafísica do poder soberano e da violência que o acompanha, que serviu para sua instituição e serve para sua manutenção. A ordem política e jurídica soberana se justifica na medida que concretize esses mesmos direitos, na medida em que dê vida à figura ideal do cidadão.

Cartas políticas como a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa de 1789, bem como as diversas constituições dos estados democráticos de direito ocidentais foram informadas teoricamente pela mudança apontada por Giacóia Jr. (2008). O lema dos teóricos do estado moderno (Hobbes, Rousseau, Grotius etc.), opondo-se ao modelo político absolutista, descreveu os direitos humanos enquanto salvaguarda contra os desmandos do poder soberano através do simples depósito de seu rol nessas cartas.

Essa concepção jus naturalista, todavia, não foi respaldada por eventos históricos subsequentes dentro ou fora dos territórios nacionais. Eleger os direitos humanos como elemento reitor do ordenamento jurídico do estado, bem como enquanto norte para reger as relações entre os sujeitos de direito internacional, não foi suficiente para evitar que a história fosse preenchida com períodos macabros nos quais a natureza humana foi negada àqueles que em tudo ostentavam essa quididade.

A incapacidade dos estados nacionais de proteger os indivíduos que ostentam sua nacionalidade, bem como de conferir dignidade humana aos que não a têm, evidencia, para Agamben (2002), o caráter bifronte dos direitos humanos presentes nas cartas políticas dos estados modernos, bem como nas declarações políticas internacionais. Segundo Giacóia Jr. (2008), pessoas desnacionalizadas, refugiados, moradores de favelas, índios, quilombolas etc. descortinam o paradoxo de fundamentação da soberania nacional nos direitos humanos, posto que, apesar de sua condição humana, a eles é negada essa dignidade.

Agamben (2002), sem desconsiderar a importância intrínseca desses direitos, seu papel em favor da conquista e preservação de garantias humanas básicas, aponta em uma direção singularmente diversa daquela da teoria jurídico-filosófica contratualista: as declarações de direitos representaram um meio de apropriação da vida, um pretexto para atuação soberana. Para ele, essa apropriação se deu não apenas com a disciplina da vida dos que se encontravam nos limites de um território nacional, com a sua regulamentação, mas com a distinção implícita de quem seria tratado como ser humano. Tal tratamento vinculou-se, no início da modernidade, ao qualificativo cidadão; posteriormente, ao poder soberano de expor o ser humano à vida nua, ao seu arbítrio de incluí-lo ou não no campo.

Agamben (2002) defende uma (re) leitura das bases teóricas de fundação do estado moderno e com isso abriu um flanco para pensar as crises que sucederam a essa conformação política e invadiram o estado contemporâneo. Para tanto, recorreu, segundo Giacóia Jr. (2008), à produção teórica de Foucault, Kelsen, Schmitt, Benjamin e Arendt, de onde angariou reflexões decisivas para desenvolver uma perspectiva bio-política que conjuga os conceitos de bando, estado de exceção, campo e vida nua.

Com esse arcabouço teórico, ele apresenta uma visão de modernidade na qual os corpos são adestrados e as almas docilizadas, os homens são feitos de títeres, de massa de modelar para suportar a forma que convém aos interesses do poder político. O homem não é um fim, mas meio e os direitos humanos fundamentais servem, sob essa perspectiva, como pretexto para os jogos de poder. Em si, os direitos humanos são elemento indispensável para constituição de uma realidade política iluminada pela dignidade humana; na dinâmica política do estado contemporâneo, foram transformados em justificativa para o arbítrio soberano.

Haveria, portanto, certa contradição em termos com a fundamentação jus filosófica do estado-nação, posto que as declarações de direitos humanos (constitutivas de sua base teórica), os documentos internacionais sobre esse tema, bem como as diversas cartas constitucionais dos estados democráticos de direito referem-se a ‘direitos humanos’ dando a entender que a fundamentação última dos direitos humanos é a própria natureza humana e, até onde percebemos, refugiados, membros de estados periféricos, toda espécie de submetidos a privação de liberdade e membros de minorias, apesar de sua condição humana, são tratados como corpos vivos destituídos de natureza humana.

Logo, a inscrição dos direitos humanos nos documentos jurídicos superiores do estado, aparece como pretexto legitimador de apropriação da vida; ora para ‘fazer morrer e deixar viver’, ora para ‘fazer viver e deixar morrer’ (AGAMBEN, 2002). À propósito, válida a ponderação de Hannah Arendt sobre os privados de cidadania ou de sua humanidade: “Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria das vezes) bênçãos ou ruínas lhes serão dados ao sabor do acaso e sem qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer” (ARENDT, 1989, p.330).

Conjectura-se, nesse sentido, que o homem nunca esteve tão encalacrado como sob o manto protetor dos estados nacionais e do modus vivendi ocidental. Ele abandona a condição de súdito, mas tem sua vida desapropriada para o estado. Sem perceber, e com a maquiagem teórica contratual, os homens perderam primeiro seus corpos e, em seguida suas almas. Estado, nacionalidade (nascimento) e território são apontados enquanto nómos da modernidade de inscrição da vida sob os influxos do poder soberano. A eficácia dos direitos humanos, apesar do status de sua fundamentação, revela-se condicionada à postura das estruturas políticas soberanas ocidentais de dar e retirar humanidade ao homem (AGAMBEN, 2002).

O foco não é o hiato entre direitos humanos e sua efetivação (concretização), a polarização entre o povo e os detentores do poder em uma luta constante para fazer valer os direitos humanos fundamentais, mas a função mesma desses em um contexto histórico onde a vida humana é um dado estratégico e de exercício do poder soberano. Entre técnicas de poder disciplinar e regulamentar (normatizador) de um lado e o desenvolvimento conceitual dos termos ‘bando’, ‘exceção’, ‘campo’ e ‘banido’ do outro, a construção teórica de Agamben abre espaço, conforme Giacóia Jr. (2008), para uma discussão das categorias de fundamentação do estado moderno e contemporâneo e para sua reestruturação teórica. Logo, propor-se repensar as categorias fundantes do estado e apresentar uma saída para o (des) governo bio-político de nossas vidas.

3. SISTEMA DE EXCEÇÃO

A superação da crença nas bases históricas declaradas de fundação do estado moderno, que constituem o estado contemporâneo, é um imperativo para o pensamento filosófico e jurídico sobre a vida humana na conjuntura política atual, a qual aponta para uma crise do regime de governo democrático ou, de outro modo, para uma crise dos valores que são sua tradução, por exemplo, sistema representativo e garantia de um espaço de participação política das minorias (GIACÓIA JR., 2019). Os discursos sobre a fundação histórica da modernidade (enquanto fenômeno jurídico-político), todavia, quando repetidos sem qualquer filtro crítico, romantizam os enunciados das cartas políticas e declarações de intenções produzidas nesse contexto (constitutivas do constitucionalismo contemporâneo) que não refletiram, todavia, a dinâmica dos fatos no curso do tempo.

Por isso, para Foucault (1999), a vida do sujeito de direitos que surge com a formação do estado-nação também é o lugar do exercício de tecnologias de poder disciplinar e regulamentar, de continuidade do exercício do poder soberano sob a forma de estado democrático. Segundo ele, “Durante milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de uma existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão sua vida de ser vivente” (FOUCAULT, 1999, p.22).

Com o fim do antigo regime, o súdito não se transformou num ato de prestidigitação em um sujeito autoconsciente de seus direitos e de todos os termos do contrato social para uma vida de busca da felicidade sob o manto protetor do governo instituído cuja função jaz exclusivamente em ser o provedor das condições de realização desses direitos, como estatuído, por exemplo, no art. 3º na Declaração de Direitos da Virgínia de 1776. Ele foi transformado em elemento imprescindível para o exercício da soberania numa conformação política onde o governo se dá em nome do povo e para o povo.

Se é certo que a natureza humana é fundação e justificativa do estado moderno (constantemente reeditado enquanto estrutura política de organização da vida humana no Ocidente), não menos é o desgoverno no exercício do poder soberano ínsito a esse fenômeno. A nação, o ordenamento jurídico e o território constituem parte do mecanismo que legitima as estruturas formais de governo a incluir a vida, através de técnicas disciplinares, e mais tarde o conjunto delas, em função de técnicas regulamentares, sob os cálculos estratégicos de poder (FOUCAULT, 1999). A vida humana, que no início da modernidade foi disciplinada em meio a instituições como escolas, reformatórios e prisões, é contemporaneamente cultivada, administrada, regulamentada. Vige, nesse contexto e em oposição ao clássico poder soberano de ‘fazer morrer e deixar viver’, o poder de ‘fazer viver e deixar morrer’ (FOUCAULT, 1999).

A apropriação da vida tematizada por Foucault (1999) nesses termos assume em Agamben (2002) um tom mais radical e aponta uma lógica de governo que pode ser desvelada a fim de fornecer ao pensamento jurídico filosófico elementos para enfrentar uma realidade que se impõe, uma realidade na qual o homem encontra-se no limiar de perda da própria humanidade (evidenciada pela ofensa constante aos direitos humanos dentro ou fora das barreiras de um estado nacional).

Não apenas a vida do ser humano está em questão, mas as condições de possibilidade para essa mesma vida, a existência de um espaço político e representativo organizados onde direitos e garantias fundamentais, informados pela dignidade humana, são elementos constitutivos da organização estatal, ainda que potencialmente. A tese de Giorgio Agamben — o estado de exceção enquanto paradigma da política contemporânea e o campo de concentração enquanto sua materialização , nesse sentido, descortina o mitologema de fundação do estado moderno e fornece elementos suficientes para pensar estruturas políticas de governo que materializem a democracia e nas quais o poder soberano seja efetivamente limitado pelos direitos humanos, com a preservação de valores básicos como a representatividade e o respeito às minorias.

Não mais o contrato social dos jus filósofos clássicos (Hobbes, Rousseau e Grotius), mas o que Agamben denomina “bando”, caracterizaria o fundamento do estado moderno. (GIACÓIA JR., 2008). O ‘bando’ é a expressão do poder soberano de tornar inaplicável a ordem jurídica a um homem ou grupamento humano, o poder de suspender todo e qualquer direito político (GIACÓIA JR., 2008).

Os direitos e garantias fundamentais, expressão máxima de um estado democrático de direito baseado na dignidade humana, “são postos em estado de suspensão”, pois a lógica do bando faz do estado de exceção (tal como o estado de sítio e o estado de defesa) regra, o nómos dos estados de direto. Segundo Bercovici (2004, p.34), o estado de exceção é usado “permanentemente para manter o próprio capitalismo, na expressão consagrada de Polany, o “moinho satânico”, que transforma os homens em massa, triturando as vidas do povo”. A decisão pela manutenção da ‘normalidade’ ou instauração da exceção emanam do arbítrio soberano (SCHMITT, 2004).

Nesse contexto, o campo de concentração surge como expressão autêntica do estado de exceção (GIACÓIA JR., 2008). Se o soberano é marcado pelo poder de suspender o ordenamento jurídico, o campo de concentração é sua materialização. Agamben (2004) não problematiza o campo a partir de uma narrativa do fato histórico campo de concentração, mas se perguntando: o que acontece quando acontece o campo?; o que é o campo?; qual sua estrutura jurídico-política? Para ele, “Isso nos levará a considerar o campo não como um fato histórico, como uma anomalia que pertence ao passado (mesmo que em algumas circunstâncias ainda possamos nos deparar com ela), mas, em certa medida, como a matrix oculta, como o nómos do espaço político, no qual sempre ainda vivemos” (2004, pp. 37-38).

O facismo e o nazismo não seriam um acidente histórico, um momento de irracionalidade da política ocidental, mas a lógica da exceção bio-política que veio à luz. Houve, segundo Agamben (2002), um processo de naturalização do estado de exceção. O campo de concentração não foi superado; ele foi transformado em uma tecnologia de poder permanente; ele é a expressão do estado de exceção tornado regra, técnica de governo. O campo é o paradigma bio-político dos estados contemporâneos que ocorre em qualquer lugar e em qualquer momento; expressão do racismo, do poder de ‘fazer morrer’ (AGAMBEN, 2004).

Pois o campo demarca o espaço anômalo de vigência absoluta de um poder que torna se efetivo e se aplica pela suspensão legítima da norma. O campo é pois, a condição segundo a qual, no mundo contemporâneo, a exceção torna-se a regra, como consequência da relação dialética entre uma violência que institui o direito e uma violência que garante sua aplicação. (GIACÓIA JR., 2019, p.10)

Válida aqui a sugestão de Giacóia Jr. Para ele, o campo poderia ser entendido como um lugar desespacializado de experiência de novas tecnologias bio-éticas e bio-políticas, o laboratório da soberania (GIACÓIA JR., 2019). Ele acontece e submete moradores de comunidades carentes em meio a grandes centros urbanos, indígenas nos rincões da floresta amazônica, os Rohingyias em Myanmar ou a população mundial com a Pandemia a um regime de exceção onde os direitos e garantias básicos que estruturam a vida humana em um estado democrático de direito são suspensos de forma permanente. Tal fenômeno é potencializado em razão da globalização que aproxima os diversos cantos do mundo de um modo nunca antes visto na história humana e vulnera os pilares democráticos do estado de direito ou, nas palavras de Sarmento (1999, p.1) “as novas variáveis econômicas, políticas e sociais emergentes do processo de globalização implodem os pilares fundamentais sobre os quais se alicerçou o pensamento jurídico ocidental, desafiando o jurista a reexaminar os institutos e conceitos que formam o seu instrumental técnico sob novas perspectivas, despindo-se de preconceitos e dogmas”.

Sob esse pressuposto, e considerando uma realidade globalizada na qual os estados nacionais estão presos pela linha invisível macroeconômica e do poder em escala mundial (CASTRO DE LIMA, 2002), o bio-poder assume proporções globais; tanto os nacionais de um estado quanto grupos de pessoas sem estado ou com status de refugiado são submetidos à vida nua (são destituídas de dignidade humana, dos direitos mais básicos em virtude de sua natureza) não apenas por um estado nacional, mas por estruturas globais de bio-poder.

O bio-poder global, gerido por entidades que controlam a economia nessa escala, determina a formação do estado de exceção nos países periféricos (ou em qualquer país que represente um obstáculo para os seus objetivos) a fim de justificar aos ‘olhos do mundo’ a destruição desses estados e ter a ocasião de (re) configurá-los em um formato que sirva aos seus propósitos. Governos são desestruturados, polarizações ideológicas são fomentadas, eleições são fraudadas, a democracia é utilizada para sua própria destruição. O problema e a solução são criados pela mesma ‘força’ e, na maioria dos casos sob pretextos repetidos: fazer valer os direitos humanos; restaurar o estado democrático de direitos ou combater o terrorismo.

Nesse contexto, a estrutura dos estados-nação periféricos é mantida formalmente, mas a sua soberania é completamente esvaziada e o cumprimento das promessas constitucionais inviabilizada. Os direitos e garantias fundamentais espalhados pelas constituições de países latino-americanos como o Brasil, por exemplo, ‘jazem mortos’, não no papel, mas nas promessas de realidade que deixam de ser concretizadas. Com isso, instaura-se “(…) um verdadeiro mal estar no constitucionalismo, na medida em que seus fundamentos basilares vão se revelando anacrônicos, e não surgem novos modelos teórico suficientes para enquadrar, sob o ângulo jurídico, a realidade contemporânea de nossas comunidades políticas” (SARMENTO, 1999, p.1). Nesse sentido, Bercovici (2004, p.177) escreve que “os países latino-americanos mantêm formalmente seu autogoverno, mas compartilham de modo crescente sua gestão macro-econômica com os Estados Unidos através de organismos multilaterais e do sistema financeiro internacional. As redes de poder foram deslocadas, portanto, para o campo da administração macroeconômica global”.

A democracia, a participação popular para a construção do coletivo fundado em direitos humanos erigidos no documento de maior estatura jurídico-político do País, é transmudada em ilusões que servem prioritariamente para alimentar as entidades gestoras do bio-poder local. Para Sarmento (1999, p.2), “variáveis internacionais, em relação às quais o Estado é absolutamente impotente tornam-se, cada vez mais, condicionantes da vida doméstica das nações. Com isso, a crença de que seria possível, através de uma Constituição dirigente, imprimir os rumos da vida de uma comunidade política, converte-se numa longínqua utopia”. Aquelas entidades colhem as migalhas, os ‘restos mortais’ dos estados periféricos que, de algum modo, foram obstáculos para o bio-poder global; mantêm-se o simulacro de estado democrático de direito sob o receio de perder essa posição na gestão bio-política planetária da vida.

4. CONCLUSÃO

A lógica do estado de exceção funciona de modo distinto dentro das barreiras do estado nacional e fora desses limites territoriais. A vida nua (das blosse leben) é construída em outra escala, é preciso atentar para isso. Não só os administradores da bio-política são distintos, mas a massa de corpos biológicos administrados é outra. As técnicas do bipoder são diversas. Se no estado nacional a escala da lógica de exceção constrói vida nua em bairros, em grupos estigmatizados ou tipos de pessoas merecedoras da suspensão indefinida dos direitos humanos fundamentais e submetidas ao arbítrio totalitário soberano, no mundo a escala avança sobre todo o estado nacional e não diferencia entre os corpos dóceis e adestrados eleitos para viver e ter dignidade humana sob a lógica de um bio-poder nacional; extrai-se toda a humanidade, mata-se a todos dentro do estado apenas para servir aos fins do poder alimentado por uma gestão bio-política global.

Nessa escala, a lógica da exceção é materializada com base em estratégias distintas, a mais comum dentre elas é o embargo econômico. A economia de estados periféricos, desprovidos de ingerência e força de influência na economia mundial é deliberadamente abalada. Esses estados, construídos sob forma dependente dos estados centrais, são destituídos da capacidade de realizar e concretizar qualquer promessa constitucional, já que a constituição financeira deles é controlada por estruturas supranacionais e estão diretamente vinculadas às oscilações do mercado global (BERCOVICI, 2004).

Quando o caos é instaurado, e a mídia local e global engrossam seu caldo, os discursos globais de estados soberanos que controlam a economia, bem como de entidades internacionais que deveriam ser imparciais, demonizam o governo dos países embagados e completam esse caos; eles o cultivam até que seja estabelecida uma conjuntura local favorável para os projetos de bio-poder global. Enquanto esse objetivo não é atingido, a suspensão dos direitos humanos são recursos empregados até o seu esgotamento.

A nova geopolítica monetária e a concentração dos centros de decisão sobre investimentos…torna a sua capacidade de retaliação econômica o fundamento último da soberania no que diz respeito às políticas econômicas dos Estados periféricos. Isso gera, no médio e no longo prazos, a deslegitimação democrática, o esfacelamento do Estado e formas cada vez mais sofisticadas de autoritarismo. Com a globalização, a instabilidade econômica aumentou e o recurso aos poderes de emergência para sanar as crises econômicas passou a ser muito mais utilizado, com a permanência do estado de emergência econômico (BERCOVICI, 2004, p.179).

Nesse sentido, é possível relacionar o pensamento de Sarmento (1999, p.4) quando escreve que “a globalização econômica tem alimentando o processo de esfacelamento do Estado Providência, na medida em que vai corroendo o seu poder de efetivamente subordinar os fatores econômicos e sociais presentes em cada comunidade”. Os embargos econômicos são, todavia, apenas um modo de manifestação da lógica da exceção de um bio-poder global, seu rol é aberto. Outro modo de instaurar o campo nos estados periféricos é a quebra da unidade nacional com o auxílio material para formação de grupos opositores.

As crises sócio-políticas são provocadas, a população dos estados nacionais é deliberadamente dividida em torno de ideologias formatadas em laboratórios da bio-política (e divulgadas por meios bio-políticos de acesso à essa população sem precedentes na história, por exemplo, facebook, whatsapp, Google), que constroem os inimigos, as figuras incompatíveis com a sociedade e reconhecem os amigos, os partidários da mesma causa. Categorias de percepção, expressão empregada por Castro de Lima (2002), são difundidas através de diversos meios de acesso ao homem (televisão, redes sociais etc.) e condicionam a apreensão de realidade. A suspensão dos direitos é declarada formal ou informalmente.

O ambiente propício para a vigência da lógica do estado de exceção, para a exposição do homem à vida nua é criado. As democracias são transformadas em simulacro de estado de direito. Os estados periféricos não são anexados fisicamente, o custo é muito alto, o melhor é a sua destruição material ou espiritual (BERCOVICI, 2004). A destruição da vida representa um melhor custo benefício em uma economia capitalista global.

Há outras manifestações do campo mais radicais e dependentes da criatividade dos gestores dessa política. O rol é aberto. A Síria é o exemplo contemporâneo de uma das formas mais brutais dessa lógica. Esse estado, ou o que sobrou dele, representa, talvez, uma das expressões mais patentes da banalidade do mal (ARENDT, 1994) e de como a vida humana tornou-se, para essa lógica, apenas um seu instrumento, um meio para seus objetivos.

O bio-poder, no jogo das disputas globais, tornou um estado inteiro, toda uma população, milhares de vidas, de histórias etc. o espaço de enfrentamento de dois atores bio-políticos globais e seus aliados: EUA e RÚSSIA. Ambos imbuídos da mesma desculpa (de combate ao terrorismo, de proteção dos direitos humanos e preservação do espaço democrático), provocaram uma das maiores crises humanitárias da história, com uma massa de refugiados que ainda avança sobre as fronteiras dos países europeus, além de ceifarem milhares de vidas de homens, mulheres e crianças e colocarem à baixo, literalmente todo o Estado da Síria. Outras vezes, a atuação do bio-poder toma a forma de silêncio, de esquecimento deliberado da bandeira dos direitos humanos que fundamentou a derrubada de governos em outras ocasiões, em outros rincões do planeta. O caso do massacre de minorias étnicas em Myamnar é o exemplo contemporâneo desse tipo de expressão da lógica da exceção.

A fim de perseguir e combater grupos terroristas, o governo desse estado destruiu vilas inteiras, estuprou e matou homem mulheres e crianças através dos piores meios que a mente do homem médio ocidental poderia imaginar, atrocidades que disputam o podium macabro do bio-poder ao lado de eventos históricos trágicos como o massacre dos judeus ou o conflito entre tutsis e rutus em Ruanda em 1994. A minoria Rohingyas vive hoje em um dos maiores campos de refugiados da história no Bangladesh.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Jorge Leandro Short. Direitos Humanos e Estado de exceção. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, Educação, Filosofia, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/direitos-humanos-e-estado-de-excecao/. Acesso em: 24/04/2025.