A falência do modelo tradicional de Justiça e a difusão global do paradigma restaurativo

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Antropologia, Direito, Filosofia, História, Sociologia

Este artigo foi revisado e aprovado pela equipe editorial.

Aprovado em 25/01/2024

15/01/2024

Autores

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Isabella Bastos Emmerick

Curriculo do autor: Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Especialização em Direito Processual pela Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais. Especialização em Direito Penal pela UniBF. Graduação em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Agente da Polícia Civil do Estado. de Sergipe com lotação especializada no Setor de Narcóticos da Delegacia Regional de Estância. Experiência como Docente nas áreas de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estácio de Sá/Sergipe, nas áreas de Direito Ovil Constitucional da Faculdade Ages - Filial Paripiranga/Bahia e na área de Direito Civil na Universidade Federal de Sergipe. Experiência como Advogada nas áreas de Direito Civil e Direito Penal

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Resumo

Este artigo examina o modelo de Justiça Restaurativa como uma alternativa promissora ao sistema de justiça punitivo tradicional, cuja eficácia tem sido amplamente contestada. Analisando a evolução do conceito de conflito no Direito, o estudo apresenta o conflito não como uma anomalia, mas como um elemento intrínseco às dinâmicas sociais e ao desenvolvimento da comunidade. A partir de uma metodologia lógico-dedutiva, que inclui revisão de literatura e análise jurisprudencial, o trabalho explora o papel da Justiça Restaurativa na transformação construtiva dos conflitos, promovendo diálogo, reconhecimento mútuo e fortalecimento do senso de comunidade. Em consonância com novos ideais jurídicos e filosóficos, o artigo defende a Justiça Restaurativa como uma abordagem prática e crescente no cenário global, sugerindo-a como alternativa eficaz à crise do sistema retributivo clássico.

Palavras-Chave

Justiça Restaurativa. Conflito. Transformação

Abstract

This article examines the Restorative Justice model as a promising alternative to the traditional punitive justice system, whose effectiveness has been widely questioned. By analyzing the evolution of the concept of conflict within the law, the study presents conflict not as an anomaly but as an intrinsic element of social dynamics and community development. Using a logical-deductive methodology that includes literature review and jurisprudential analysis, the work explores Restorative Justice's role in constructively transforming conflicts, promoting dialogue, mutual recognition, and strengthening a sense of community. In line with new legal and philosophical ideals, the article advocates Restorative Justice as a practical and growing approach on the global stage, suggesting it as an effective alternative to the crisis in the classic retributive system.

Keywords

Restorative Justice. Conflict. Transformation

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objetivo abordar o surgimento e fortalecimento do modelo de Justiça Restaurativa como paradigma do Direito a partir da falência do sistema punitivo e retributivo tradicional representada pela inversão de suas metas precípuas e pelo afastamento da subjetividade das partes e da coletividade do âmbito processual. Para tanto, parte de uma metodologia lógico-dedutiva, através da revisão bibliográfica da literatura criminal e de direito comparado, bem como jurisprudencial do tema, para elaborar uma releitura do conflito como elemento central do enfoque judiciário, propondo sua análise como componente vital para a evolução de uma comunidade. Nesse toar, caracteriza-o como tal na dinâmica restaurativa e demonstra como se propaga e difunde esta forma de mudança de pensamento por toda a extensão do globo. Por fim, desmistificando a utopia do modelo restaurativo, alude comprovadamente ao mesmo como uma realidade em ascensão mundial e em consonância como os novos ideais teórico e filosóficos do Direito, indicando-o, pois, como efetiva alternativa à crise do sistema tradicional.

O sistema jurídico enfrenta grave crise relacionada a suas estruturas conceituais básicas. Nas searas onde o poder estatal deve exercer coerção em níveis mais avançados, isto se torna ainda mais nítido, haja vista a diametralmente oposta direção de resultado que apresentam suas medidas tradicionalistas pautadas na compensação e na retribuição. Nesse sentido, está-se, hoje, diante de um contexto de falência do modelo ortodoxo de justiça punitiva e necessidade de encontrar-se caminhos alternativos para sua reelaboração.

Isto posto, o presente estudo inicia a análise do elemento paradigmático e fenomenológico que orienta tal área do Direito, a saber: o conflito. Destarte, aponta como este se desenvolveu compreendido como problemática passível de resolução perante o sistema atual e como tal ideia influenciou as práticas modernas, bem como a derrocada destas.

A partir disto, demonstra a necessidade de sua releitura para elemento hodierno das civilizações que, pois, está sujeito uma transformação e, jamais, a um fim, o que permite a construção de formas alternativas de justiça, dentre elas a Justiça Restaurativa caracterizada, em suma, pelo diálogo, pelo reconhecimento e pelo fortalecimento do senso de comunidade.

Na esteira, analisa como o tal modelo alternativo inicia, paulatinamente, seu desenvolvimento e ganha força, destacando os países expoentes de sua difusão e perpetuação pelo globo, assim como as peculiaridades das práticas propagadas em cada um. Demonstra, neste ponto, a multiplicidade de seus procedimentos, somados à gradação de intensidade de sua manifestação.

Com efeito, conclui pelo reconhecimento deste sistema de justiça e de seus valores norteadores como um vetor efetivo e em franca ascensão mundial e prega por seu fortalecimento como motor de transformação dos conflitos sociais e das problemáticas oriundas do modelo retributivo clássico.

2. A FENOMENOLOGIA DO CONFLITO E A FALÊNCIA DO MODELO PUNITIVO TRADICIONAL

A lógica geral do Direito trabalha na perspectiva de controle e resolução de conflitos, assim entendendo estes como fenômenos anômalos da coexistência humana, a partir de uma ideia geral de interesses conflitantes que culmina numa disputa por razões, poderes, bens, dentre outros, na qual os lados opostos tem por objetivo precípuo o rebaixamento da posição defendida ou pretendida pelo outro (LEDERACH, 2012).

Assim, parte do pressuposto que as situações conflituosas possuem, necessariamente, caráter antagônico de “convergência de forças de sentidos opostos e igual intensidade, que surge quando existe atração por duas valências positivas, mas opostas” e, dessa forma, perturbam o movimento natural de equilíbrio das relações sociais. Para esta acepção, então, o conflito é tido sociologicamente como motor de desestabilização das forças de um núcleo social (LEDERACH, 2012).

Neste sentido, desenvolve-se historicamente a noção de justiça como uma compreensão de que tais conflitos, já que vistos como problemas e como fenômenos anormais, portanto, temporários, podem e devem encontrar um fim satisfativo, com um viés tipicamente retributivo, com foco na resolução da questão e na uma reparação compensatória dos danos oriundos destas contendas sociais (LEDERACH, 2012).

Nesse toar, o Direito se estrutura como um mecanismo de controle social e fornecedor de soluções para as situações práticas de seus jurisdicionados, ao passo em que aplica as normas socialmente aceitas ao caso concreto, ditando a verdade jurídica do mesmo e, teoricamente, resolvendo e pondo um fim ao conflito (BERISTAIN, 2010; CARVALHO, 2002).

Contudo, fato é que a lei não possui o poder de acompanhar e abranger toda a dinâmica de uma sociedade, bem como as compreensões subjetivas próprias de cada sujeito que envolvem fatores além dos meramente formais, mas relacionados a cultura, nível educacional e social, etnia, gênero, religião, dentre outros, fazendo com que haja necessidades e entendimentos diametralmente opostos dentro de um corpo coletivo regulado pelas mesmas normas jurídicas com pretensão de neutralidade (BUITONI, 2006; ROLIM, 2008).

Desse modo, o modelo tradicional de justiça ao realizar a subsunção do fato à sua tipificação legal e determinar seus resultados a partir do que nesta estiver previsto, não necessariamente está resolvendo um conflito em todos os seus aspectos, mas, tão somente, naquilo que este representa ao poder estatal de justiça (BUITONI, 2006, CARVALHO, 2002).

Assim, inúmeras variantes podem restar de fora da análise da questão, o que leva à insatisfação das partes para com o “fim” obtido, distante de suas carências reais e, paulatinamente, ao descrédito do próprio Poder Judiciário por se situar num patamar formalista e absorto da realidade de seus jurisdicionados, gerando, no extremo oposto do desejado, o agravamento do conflito inter e/ou intrasubjetivamente, resultando no enfraquecimento das estruturas sociais estabelecidas (VAN NESS, STRONG, 2013).

Destarte, há fortes críticas aos efeitos do modelo tradicional de punição para os infratores e para sociedade, principalmente sob o enfoque do excessivo encarceramento, acompanhado do crescente número de criminalidade, além da generalizada ausência de benefícios para comunidade, ofensor ou vítima. Isto porque o sistema retributivo apenas busca a solução compensatória e forma do dano causado, de modo que as instituições e métodos do direito são partes integrantes do ciclo de violência do conflito ao invés de soluções para este, como o querem (PRANIS, 2006; ZEHR, 2008, 2012).

Com efeito, percebe-se nitidamente que tal modelo não comporta uma resposta satisfatória à sistemática jurídica, fazendo-se mister rever a forma como se define o próprio conflito, compreendendo este não como um fenômeno anormal, mas como um elemento típico e necessário às dinâmicas sociais, que age como propulsor de novos entendimentos e mudanças úteis e, portanto, de desenvolvimento coletivo (FERNANDES, 2011).

Nesse sentido, o conflito ocorre em face das divergências de contextos e compreensões existentes, levando a momentos de crise que, ao se alcançar um entendimento satisfatório para os envolvidos, mediante a comunicação, se adapta e retorna à situação de equilíbrio inicial, de forma cíclica, haja vista a diversidade própria da natureza humana, mas em constante evolução, permitindo o aprimoramento do diálogo e das relações sociais (LEDERACH, 2012).

Por esta perspectiva, não se vislumbra um fim ou a resolução do conflito, posto que, a partir de sua existência, não se pode anulá-lo, bem como todos os seus efeitos, mas contorná-lo do modo mais benéfico aos envolvidos. Dessa forma, fala-se em sua transformação com vistas à maior satisfação possível das partes, de forma construtiva, com a participação destas no processo dialógico de construção dos resultados, permitindo-lhes expor sua versão dos fatos e entender a repercussão total dos acontecimentos (KONZEN, 2007; LEDERACH, 2012).

Com efeito, ao invés de um procedimento meramente formalista, técnico e retributivo, busca-se a transformação restaurativa das contendas pelos próprios indivíduos por ela atingidos, estimulando-se que estes expressem-se, compartilhem suas emoções e, possam, assim, compreender uns aos outros e livrar-se dos sentimentos negativos oriundos do evento danoso. Por esta abordagem, os participantes conscientizam-se dos aspectos gerais do problema e, a partir disto, desenvolvem acordos bilaterais e compreensivos que, além de satisfazer suas necessidades, permitem a superação do conflito e evitam suas futuras ocorrências negativas (VAN NESS, STRONG, 2013).

Tal concepção se denomina como Justiça Restaurativa (JR) e encabeça esta compreensão de processo como colaboração, voltado para resolução de um conflito, caracterizando-se por meio da voluntariedade como sendo um procedimento consensual entre a vítima e o ofensor, sujeitos centrais, contando com a condução de um facilitador e, em alguns casos, de pessoas da família ou da comunidade dos envolvidos no conflito, sendo que todos participam ativamente na construção de uma solução que venha a, de algum modo, restaurar os danos provenientes do da situação conflituosa (PRADO, 2001; PRANIS, 2006).

Representa, pois, uma noção de justiça que fortalece o caráter de coletividade de um grupo, o perdão, a solidariedade e o altruísmo. Permite o reconhecimento de cada ser em si e perante o outro e empodera as partes ao passo que lhes fornece meios efetivos de expor suas versões e participar dos resultados que lhes influenciarão diretamente. Destarte, os conflitos passam a ser encarados de frente em todos os seus aspectos, bem como suas consequências, permitindo uma maior aproximação de sua realidade e uma melhor alternativa de contorno e harmonização das relações entre os envolvidos (PRANIS, 2006).

3. DIFUSÃO MUNDIAL DO PARADIGMA RESTAURATIVO DE JUSTIÇA

A Justiça Restaurativa não é um fenômeno moderno. Apesar de largamente difundida e aplicada a compreensão retributiva do processo, suas noções sempre se fizeram atuantes de forma paralela, regulamentadas ou não, nas formas de resolver o conflito. Nesse sentido, a JR abarca um processo vigente desde as mais remotas civilizações, em diversos sistemas sociais e comportando múltiplas dinâmicas, dentre estas algumas reconhecidas como referências a âmbito mundial, a saber: os Círculos restaurativos, com a presença de vítima, ofensor, facilitadores e pessoas da comunidade, em reunião circular de debate do conflito; as Conferências Vítima-ofensor, contando com os mesmos participantes, mas numa sistemática mais linear entre a vítima e o ofensor; as Conferências de grupos familiares que também abarca estes sujeitos, mas abrange ainda a família dos envolvidos; e a Conciliação e a Mediação, que trabalham com vítima, ofensor e mediador, numa perspectiva mais restrita coletivamente (PRANIS, 2006, ZEHR, 2008, 2012).

Tais práticas se verificam de forma difusa e peculiar em cada país e influenciam a evolução e o aprimoramento da JR. Numa escala cronológica, os Estados Unidos da América forma percussores do processo restaurativo, em 1970, tendo criado o Instituto para Mediação e Resolução de Conflito. Na esteira, em 1976 no Canadá, surgia o Centro de JR Comunitária de Victoria e na Noruega, já se utilizava a mediação para conflitos sobre propriedade. Em 1980 na Austrália foram estabelecidos três Centros de Justiça Comunitária experimentais em Nova Gales do Sul e em 1982, o Reino Unido elabora seu primeiro serviço de mediação comunitária. Entre 1988 e 1989, a Nova Zelândia inicia trabalhos com mediação vítima-agressor por oficiais da condicional e promulga a “Lei Sobre Crianças, Jovens e suas Famílias”, incorporando a Justiça Penal Juvenil (PROGRAMA, 2017; SLAKMON, GOMES PINTO, 2005).

Com efeito, em 1999 já haviam se tornado expressivas as Conferências de grupo familiar de bem-estar e vários projetos piloto de justiça, sobretudo na Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, África do Sul, de sorte que em 2001, a Europa formula decisão-quadro do Conselho da União Europeia sobre a participação das vítimas nos processos penais para implementação de lei nos Estados e em 2002 a ONU edita Resoluções do Conselho Econômico e Social, definindo conceitos relativos a JR, balizamento e uso de seus programas. A partir de então, as práticas de JR experimentaram grande difusão, chegando ao Brasil em 2005, quando o Ministério da Justiça e PNUD patrocinam 3 projetos piloto em Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília e teve início o Projeto Justiça para o Século 21, com inspiração nos modelos internacionais para a aplicação da mediação e dos círculos de sentença (SLAKMON, GOMES PINTO, 2005).

Nesse contexto, alguns países ganharam destaque na implementação da Justiça Restaurativa e representam hoje vetores de suas práticas. Nos Estados Unidos, país que cunhou a terminologia com Albert Eglash, em 1977, em seu artigo denominado “Beyond Restitution: Creative Restitution”, os programas de mediação que surgiram como forma de ampliação do acesso à justiça se multiplicaram amplamente e já apresentam altos índices de uso e efetividade. Além disso, o Estado da Virgínia possui centro integrado de estudo e implementação dos círculos restaurativos, abrigando os expoentes no assunto (MCCOLD, 2001).

O Canadá, que possui o mais antigo registro de prática restaurativa, da cidade Ontário, datado do ano de 1974, quando fora realizada a aplicação do Programa de Reconciliação Vítima Ofensor – VORP – para jovens vândalos, com a forte inspiração dos ideais Menonitas, desenvolveu inúmeros programas a partir da influência religiosa e dos grupos indígenas, como forma de inclusão social. Neste país, a prática dos Círculos de Emissão de Sentença (Sentencing Circle) e os Círculos de Cura (Healing Circle) constituem os dois principais modelos de justiça restaurativa, aplicados largamente (JACCOUD, 2017).

Na Europa, a França se destaca pelo uso da mediação fortemente regulada 1993 a partir da instituição das chamadas “Maison Justice” e “Boutiques de droit”, pontos de apoio comunitário difundidos por bairros e de aplicação da JR. A Bélgica, em 2003, adotou a Decisão Marco do Conselho Europeu para a criação de uma rede de pontos nacionais de contato para a promoção da Justiça Restaurativa através do uso expressivo da Mediação Vítima Ofensor, com a característica peculiar da presença de advogado para aconselhamento nestes procedimentos (BONAFÉ-SCHMITT, 2003).

A Alemanha, desde o ano de 1986, institucionalizou procedimentos com inspiração restaurativa e prescreve, em diversos de seus diplomas legais práticas de natureza restaurativa pré-processuais ou como parte da punição delituosa. Todavia, as citadas normas possuem dificuldades de efetivação por ausência de conscientização da popular a respeito do modelo alternativo (MEIER, 2009).

Na Inglaterra, as experiências de Mediação iniciaram em1980, tendo em 1999 sido posto o “Youth Justice and Criminal Evidence Act” para sua regulamentação. Neste país, a Universidade da cidade de Hull implementou uma experiência em 2008 de JR, no âmbito escolar, que resultou na diminuição sensível das expulsões e dos pequenos delitos, depois difundida e aplicada como programa nas searas de justiça e ensino (AERTESEN, PETERS, 2009).

Portugal, por sua vez, apesar de ter sido um dos últimos países a implementar a determinação da ONU, possui atualmente além da mediação penal discriminada pela lei, o programa “Mediação vítima-infractor e justiça restaurativa” desenvolvido mediante parceria realizada entre a Escola de Criminologia da Faculdade de Direito, a Universidade do Porto, e o Ministério Público do Porto, e inúmeros projetos de natureza restaurativa, mas sem vinculação diretamente legalista, os chamados “Building Bridges” que funcionam como pontos integrados de aplicação da JR pelo país (AERTESEN, PETERS, 2009).

Em relação ao continente asiático, destaca-se o Japão que apesar de possuir forte tendência formalista, a aplicação da filosofia pautada nos princípios “Chotei Ewakai” (conciliação e compromisso) que exalta a tradição de valores, com a importância do perdão, da confissão e do arrependimento, colabora com a JR no sentido da possibilidade de aplicação destes elementos em qualquer fase processual e pela valorização do diálogo (JACCOUD, 2005).

Na Rússia, a Justiça Restaurativa inicia seus primeiros passos com os debates sobre a reforma judicial e assimilação de práticas no Instituto de Estado e Direito da Academia de Ciências Russa, promovendo estudos de comunidades indígenas. Sua aplicabilidade se volta à prevenção da delinquência juvenil e mediação a âmbito do Centro de Reforma Judicial e Legal (JACCOUD, 2005).

Na África, apesar de ser um continente que se destaca pela miséria, fome, sede, racismo, doenças e conflitos, cuja base da economia é o extrativismo de ouro, diamantes, petróleo e gás natural e agricultura de subsistência e comercial, caça, pesca e coleta de produtos naturais, a Justiça Restaurativa se destaca na resolução de conflitos entre as tribos com destaque pra filosofia de solidariedade “Ubuntu”, sobretudo, na África do Sul, a partir da Justiça de Transição após o término do regime do Apartheid, com a instituição das Comissões de Verdade e Reconciliação e o desenvolvimento da noções de perdão e anistia, reconhecimento e restauração. No país, tem força o modelo Zwelethemba de resolução de conflitos que busca a solução que venha a evitar que o fato se repita e aplica, principalmente, os chamados “círculos de paz” (FROESTAD, J., & SHEARING, 2005; PINTO, 2017).

Nas Américas Central e do Sul, tem-se a formalização por meio da “Declaração da Costa Rica sobre Justiça Restaurativa na América Latina”, editada em 2005, por recomendação no Seminário “Construyendo la Justicia Restaurativa en America Latina” promovida pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente e pela Comunidade Internacional Carcerária e da “Declaração de Lima sobre Justiça Juvenil Restaurativa”, de 2009, oriunda do Primeiro Congresso Mundial de Justiça Juvenil Restaurativa. O Chile, após a Ditadura Pinochet, experimentou uma fase de justiça de transição, tal qual a África do Sul, desenvolvendo as noções de verdade e anistia (MIERS, 2007).

Há destaque para o México que, com enfoque na prevenção delitiva, promoveu a Convenção sobre o Direito das Crianças e a criação do “Centro de Atención para Victimas del delito” (CENAVID) e do “Centro de Resolución de Conflictos”, além de incorporar, em sua reforma constitucional, ocorrida em 2008, no art.17 de sua Carta Magna, responsável por prescrever que seus entes federados deverão legislar sobre a matéria em sua constituição, o paradigma restaurativo, antes manifestado por experiências esparsas (MIERS, 2003).

Por fim, a Oceania, conta com a grande expressividade em termos de JR da Nova Zelândia e da Austrália. Naquele, em 1989, editou-se o Estatuto das Crianças, Jovens e suas Famílias – “Children, Young Persons and Their Faimlies Act” – baseado nas práticas ancestrais Maoris e como meio de reconhecimento e inclusão social da população nativa. Em 1995, implementou-se três esquemas piloto – o Projeto “Turnaround”, “TeWhanau Awhina” e o Programa de Responsabilidade Comunitária patrocinados pela Unidade de Prevenção ao Crime da Nova Zelândia em colaboração com a polícia e os “Safer Community Councils”, locais para desviar infratores adultos da necessidade de se apresentar em tribunais criminais. “Courtreferred” representa o modelo adotado no país e, por meio do qual, os casos são desviados do sistema de justiça sempre que possível (JACCOUD, 2005).

Na Austrália, por sua vez, o modelo é denominado de “Police-based”. Posto que a polícia ou a escola facilitam o encontro entre as partes e familiares através das “Community Youth Conferences”. A inspiração vem da tradição “Wagga Wagga” de justiça, baseada em compreensões comunitárias acerca da vida social. Nesse sentido, os encontros restaurativos conduzidos pela polícia para casos de menor gravidade como uma forma de “advertência restaurativa” e os casos são desviados do sistema tradicional sempre que possível (JACCOUD, 2005).

Com efeito, percebe-se que o que antes se encontrava difuso e incipiente, hoje possui regulamentação e expressividade a âmbito global, surgindo a Justiça Restaurativa, efetivamente, como prática capaz de alterar os contornos tradicionais de Direito, repressivo e retributivo, trazendo-o para o interior das novas perspectivas democráticas, axiológicas e constitucionais, a partir de um resgate das culturas pautadas nas noções coletivistas de harmonia e solidariedade. Observa-se, assim, o gradual movimento dos países na busca de soluções alternativas que permitam, de fato, a transformação dos conflitos e o alcance do bem estar social através da JR como modelo humanitário em ascensão (JACCOUD, 2005; MIERS, 2003, 2007).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante séculos a essência do Direito se baseou na noção de conflito como problemática capaz de encontrar um fim a âmbito jurídico, passível, pois, de ser solucionado e enxergado como um obstáculo a ser transposto. Nesse contexto, estruturou-se em volta de uma ideologia retributiva e compensatória do dano que originou o modelo punitivo tradicional, voltado à pena como forma de resolução de graves contendas sociais.

Contudo, o evoluir da humanidade revelou fortes vícios neste sistema que, além de não representar uma satisfação ou reparação efetiva ao conflito, contribuiu para o encarceramento em massa como a degradação da dignidade mínima da população prisional, o aumento constante dos índices de criminalização e reincidência, a demonização dos ofensores e a invisibilidade das vítimas e o afastamento da comunidade na construção do Direito.

Em vista disso, modelos e soluções alternativos foram buscados e resgatados para uma reformulação do sistema jurídico, dentre eles a Justiça Restaurativa, de inspiração indígena e primitiva, com uma teleologia direcionada à transformação dos conflitos de forma ampla e ilimitada por meio do trabalho coletivo de diálogo e reconhecimento. Nesse contexto, observa-se seus franco desenvolvimento por todo o planeta, ainda que de forma mais ou menos forte e com as peculiaridades de cada país, mas em larga escala de progressão e aceitação como viés de alcance de respostas mais satisfatórias que a visão ortodoxa meramente punitiva e repressora.

Busca, destarte, o desenvolvimento aliado às novas formas de pensar o Direito, pautadas no resgates dos valores e dos princípios para o interior dos ordenamentos jurídicos e na construção de novos guias teóricos e práticos, tais como a solidariedade e a fraternidade que surgem com as perspectivas neoconstitucionalista e neopositivista também como ataques ao déficits deixados por seus paradigmas radicalistas precedentes.

Ainda não se trata, entretanto, de uma substituição do modelo tradicional, ou da descriminalização e despenalização de condutas, mas de uma via complementar ou eletiva e voluntária de transformação de conflitos que, aos poucos, alcança expressividade e fomenta no pensamento coletivo e social novas formas de pensar o conflito e a harmonização do convívio. Não é, pois, uma utopia, mas, conforme demonstrado acima, um fenômeno efetivo que ganha força, tanto mais a esperança e o altruísmo retornam aos corações humanos em face das atrocidades que cometem.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EMMERICK, Isabella Bastos. A falência do modelo tradicional de Justiça e a difusão global do paradigma restaurativo. Revista Di Fatto, Subcategoria Antropologia, Ciências Humanas, Direito, Filosofia, História, Sociologia, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 2, aprovado e publicado em 25/01/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-falencia-do-modelo-tradicional-de-justica-e-a-difusao-global-do-paradigma-restaurativo/. Acesso em: 24/04/2025.