Teoria geral da prova e o sistema valorativo adotado no ordenamento Jurídico Brasileiro
Autores
Resumo
Este artigo aborda os conceitos fundamentais de prova no Direito Processual Penal brasileiro, explorando suas classificações e a busca pela verdade no processo judicial. Compreendendo a prova como um meio essencial para demonstrar a certeza e veracidade das alegações, a obra destaca a importância da prova na reconstrução de eventos sob a ótica do julgador. Além de diferenciar prova de elementos informativos, o texto analisa o ônus da prova e sua distribuição no contexto penal. O autor propõe uma reflexão sobre as abordagens tradicionais e modernas da busca pela verdade, enfatizando os princípios da ampla defesa e do contraditório. O estudo visa contribuir para um entendimento mais profundo do papel da prova no processo penal, promovendo uma análise crítica sobre sua valoração e implicações no sistema jurídico.
Palavras-Chaveprova. valoração. ordenamento
Abstract
This article addresses the fundamental concepts of evidence in Brazilian Criminal Procedure Law, exploring its classifications and the search for truth in judicial processes. Understanding evidence as an essential means to demonstrate the certainty and veracity of claims, the work highlights the importance of evidence in reconstructing events from the judge's perspective. In addition to differentiating evidence from informative elements, the text analyzes the burden of proof and its distribution within the criminal context. The author proposes a reflection on traditional and modern approaches to the search for truth, emphasizing the principles of broad defense and the adversarial system. The study aims to contribute to a deeper understanding of the role of evidence in criminal proceedings, promoting a critical analysis of its valuation and implications within the legal system.
Keywordsevidence. valuation. legal system or regulation
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como escopo apresentar os conceitos de prova, bem como suas classificações, a busca pela verdade no processo penal, mormente de acordo com o sistema de valoração da prova adotado no ordenamento jurídico brasileiro.
Serão tratados ainda neste artigo a diferença entre prova e elementos informativos, bem como considerações acerca do ônus da prova e sua distribuição no âmbito do processo penal.
Igualmente, se abordará uma nova visão acerca da busca pela verdade no processo penal, tanto em sua visão tradicional, como em sua visão mais moderna, tendo como fundamento os princípios da ampla defesa e do contraditório
2. TEORIA GERAL DAS PROVAS
2.1. DAS PROVAS NO PROCESSO PENAL
2.1.1 Conceito de prova
O Direito Processual Penal possui como desígnio alcançar uma verdade jurídica e tal finalidade é obtida por meio das provas. A prova, por sua vez, pode ser conceituada como o meio pelo qual se procura demonstrar a certeza e veracidade do que se alega. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 233).
No mesmo sentido, explica Lopes Junior (2013, p. 535) que o Processo Penal serve como um instrumento para reconstrução de determinado acontecimento e, por meio da prova, o julgador poderá realizar a atividade recognitiva do fato narrado no caso em concreto.
Rangel (2016, p. 464) complementa que prova pode ser conceituada como a análise do thema probandum e tem como desígnio o convencimento do juiz acerca da veracidade de um fato, de modo que ele seria o destinatário principal. Acrescenta que as provas se destinam secundariamente às partes, que são interessadas e podem ou não aceitar a verdade obtida pelo magistrado.
Existem três acepções da palavra prova, quais sejam: prova como atividade probatória, como resultado e como meio. Enquanto atividade probatória, prova se traduz no conjunto de atos praticados com a finalidade de formar a convicção do juiz acerca da verdade ou não de determinado fato. Nesse sentido, significa dizer que há direito de prova para as partes e ele surge como uma consequência do direito de ação para que lhes seja permitida a utilização de todos os meios admitidos no direito a comprovação de suas alegações. (LIMA, R., 2015, p. 571)
A prova como resultado é a convicção formada do juiz acerca da existência ou inexistência de uma situação de fato a partir de certo grau de certeza do julgador alcançado por meio da atividade probatória. Por fim, prova como meio são os meios utilizados pelo julgador para formação de sua convicção. (LIMA, R., 2015, p. 572).
2.1.1.1 Distinção entre prova e elementos informativos
Após conceituar no que consiste prova, insta agora diferenciá-la dos elementos informativos. Prova diz respeito aos elementos de convicção que foram produzidos com a participação das partes, sob o crivo dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Os elementos informativos, por sua vez, são aqueles colhidos sem a obrigatória observância dos princípios mencionados, o que não retira sua fundamental importância, tendo em vista que são necessários para a persecução penal. (LIMA R., 2015, p. 572)
Importante notar que, em razão da não obrigatoriedade de observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, os elementos informativos não podem ser utilizados de forma exclusiva para embasar uma sentença penal, consoante determina o artigo 155[1], do Código de Processo Penal, sob pena de violação do artigo 5º, LV[2], da Constituição Federal. Desta feita, tais elementos podem ser utilizados juntamente com as provas produzidas em juízo, com a exceção das provas não repetíveis, cautelares e antecipadas. (NUCCI, 2015, p. 347).
2.1.2 Objeto da prova
Objeto de prova são os fatos que as partes pretendem demonstrar, ou seja, é o fato que se quer provar, logo, que deve ser conhecido pelo juiz para que este o valore. Não se deve confundir objeto da prova com objeto de prova, que consiste em saber o que se deve provar, como por exemplo, os fatos notórios, que não precisam ser provados. Vale lembrar que os fatos incontroversos precisam ser provados no processo penal, como na hipótese de confissão do réu, ocasião em que o juiz deve confrontá-la com as demais provas. (LIMA, M., 2012, p. 383; NUCCI, 2015, p. 341; RANGEL, 2016, p 464;).
2.1.3 Meios de prova
Os meios de prova podem ser definidos como todos aqueles que o juiz se utiliza, direta ou indiretamente, para alcançar a verdade dos fatos e formar sua convicção. Estes podem ser lícitos ou ilícitos, sendo que somente os primeiros devem ser considerados pelo juiz, uma vez que são admitidos pelo ordenamento jurídico. (NUCCI, 2015, p. 338; RANGEL, 2016, p.465).
Meios de prova diferenciam-se de fontes de prova. Essa última consiste em tudo o que pode ser utilizado para esclarecer a existência de um fato, enquanto os meios de prova são os instrumentos através dos quais as fontes são introduzidas no processo. (LIMA, R., 2015, p. 577)
2.1.4 Ônus da prova
Ônus, conforme assevera Nucci (2015, p.342), significa “encargo de provar”. Quer dizer, conforme o autor, as partes no processo que possuem o interesse de demonstrar a veracidade de suas alegações devem se desincumbir desse ônus, configurando assim, um dever processual.
Consoante explica Távora (2013, p. 405), não obstante esse dever processual não deva ser entendido como uma obrigação, mas sim como uma faculdade, caso a parte não comprove o que alega, sofrerá as consequências de sua inatividade.
Rangel (2016, p. 505) complementa sobre o tema e informa que o ônus pode ser caracterizado como o encargo que recai sobre as partes de comprovar todas as arguições realizadas. Portanto, é uma obrigação que possui como prejudicado o próprio que fizer as alegações.
Explica ainda Tourinho Filho (2013, p. 268): “a regra concernente ao ônus probandi, ao encargo de provar, é regida pelo princípio actori incumbit probatio ou ônus probandi incumbit ei qui asserit, isto é, deve incumbir-se da prova o autor da tese levantada”
Ou seja, como entende a doutrina majoritária, como regra, o ônus da prova é da acusação, contudo, o réu pode chamar para si o interesse de produzir prova, como exclusão de ilicitude ou de culpabilidade. Vale ressaltar que o ônus da defesa não deve ser observado de maneira absoluta, pois vigora o princípio do in dubio pro reo. Portanto, pairando dúvidas acerca de alguma excludente, impõe-se a absolvição. (NUCCI, 2015, p. 343).
Alguns autores como Rangel (2016, p. 509) entende que cabe exclusivamente à acusação:
Destarte, discordamos da doutrina que acima mencionamos, que divide o ônus da prova entre a acusação e a defesa, dando uma visão à luz apenas da lei ordinária, e não de acordo com a Constituição, ao artigo 156 do CPP. Devemos interpretar a lei ordinária de acordo com a Constituição e não o inverso, sob pena de o ônus da prova recair sobre o réu e não sobe quem lhe fez a imputação de fato proibido na lei.
No mesmo sentido, Lopes Junior (2004, p. 180) afirma que o que grande parte da doutrina defende ao afirmar que a prova de alegação de excludente cabe à defesa. Aduz que cabe ao acusador provas o que se alega, logo, incumbe a ele demonstrar a autoria, um fato típico, ilícito e culpável. Portanto, se a ele cabe comprovar a ilicitude, obviamente, cabe também ao mesmo que não existe qualquer causa de exclusão de ilicitude.
Insta ressaltar que Távora (2013, p.405) chama atenção para que o ônus da prova seja observado tendo como um dos fundamentos o princípio da presunção da inocência, ou seja, o ônus recai sobre a acusação, de modo que, se o acusado se a acusação não for capaz de gerar no magistrado certo grau de certeza, impõe-se a absolvição.
Assim, conforme se verá nos tópicos seguintes, o princípio da presunção da inocência transfere à acusação o ônus de desconstituir tal presunção. (LOPES JUNIOR, 2004, p. 179)
2.2. SISTEMAS DO PROCESSO PENAL
O processo penal pode adotar três tipos de sistema: o sistema acusatório, o inquisitivo e o misto. O sistema inquisitivo, lastreado pelo princípio inquisitivo, preza pelo interesse em alcançar a condenação do acusado em detrimento de direitos e garantias individuais. Tal sistema tem como objetivo, portanto, a efetividade da prestação jurisdicional, de modo que não é prioridade a observância de dos direitos do acusado. (TÁVORA, 2013, p. 40).
Pacelli (2017, p. 10) explica que o modelo inquisitório tem como características “[…] um processo verbal e em segredo, sem contraditório e sem direito de defesa, no qual o acusado era tratado como objeto do processo”.
Ademais, no sistema inquisitivo a gestão da prova foi conferida ao juiz, conforme dispõe o artigo 156[3], do Código de Processo Penal, de modo que o mesmo pode agir de ofício, independentemente de qualquer iniciativa das partes. Assim, o sistema inquisitivo é característico de sociedades arbitrárias e autoritárias, tendo como um dos principais fundamentos a centralização do poder. (MACHADO, 2014, p.18; TÁVORA, 2013, p. 40)
O sistema acusatório, doutra banda, é marcado pela separação dos órgãos de acusação e de julgamento. Nesse sentido, é considerado o sistema mais atual e moderno, que preza pela imparcialidade e tratamento digno àquele acusado. (LOPES JUNIOR, 2004, p. 155; PACELLI, 2017, p. 09)
Lopes Junior (2004, p. 154) elenca demais características do mencionado sistema, quais sejam:
[…] a iniciativa probatória deve ser das partes […] tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo) […] contraditório e possibilidade de resistência […] ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicionado […].
Contudo, o sistema não é imune a críticas. Uma das maiores críticas tecidas acerca do sistema acusatório reside na gestão da prova, na qual a iniciativa probatória é das partes. Nesse sentido, cabe ao juiz, que deve permanecer inerte, decidir tão somente a partir das provas apresentadas pelas partes, ainda que elas sejam insuficientes. Contudo, a solução para tal problema não seria conferir ao juiz iniciativa probatória, mas, sim assegurar uma maior dialeticidade ao processo penal. (LOPES JUNIOR, 2004, p. 154-155).
O sistema misto, por sua vez, é aquele no qual se verifica a união dos elementos presentes tanto no sistema acusatório como no sistema inquisitivo. É constituído, dessa forma, em duas fases, sendo a primeira delas uma fase policial e a segunda, judicial. (MACHADO, 2014, p. 18)
Na visão de Pacelli (2017, p. 14-16), em que pese alguns juristas definam o sistema brasileiro como misto com características inquisitórias e acusatórias, defende que não é, porque o inquérito policial é apresentado juntamente com a denúncia que se deve descaracterizar o sistema acusatório, mormente porque este diz respeito a atuação do juiz no processo penal, enquanto o inquérito seria um procedimento administrativo. Ademais, deve-se contar com a exigência da fundamentação das decisões, que não podem ser lastreadas unicamente nas provas colhidas no inquérito policial.
No que tange a alguns dispositivos considerados ultrapassados no código de processo penal, o autor acima aduz: (2017, p. 10-13)
Sob tais distinções, o nosso processo é mesmo acusatório. Entretanto, a questão não é tão simples. Há realmente algumas dificuldades na estruturação de um modelo efetivamente acusatório, diante do caráter evidentemente inquisitivo do Código de Processo Penal e seu texto originário […] Mas que se deixe assentado: não será o fato de se atribuir uma reduzida margem de iniciativa probatória ao juiz na fase processual, isto é, no curso da ação, que apontará o modelo processual adotado.
No mesmo sentido, Machado (2014, p. 21) afirma que nosso sistema é acusatório, tendo em vista que, ainda que haja algumas previsões no Código de Processo Penal que caracterizem o sistema inquisitivo, como o quanto preconizado no artigo 156 do diploma legal, em que confere poderes instrutórios para o juiz, seria considerado uma anomalia e ofensa ao princípio constitucional de um processo acusatório.
Lopes Junior (2004, p. 164-166), por sua vez, defende que, na verdade, o nosso sistema é eminentemente inquisitivo. Aponta que o sistema misto ou bifásico seria uma falácia, tendo em vista que para definição do sistema adotado não se aprecia tão somente se há divisão entre o órgão acusatório e de julgamento. Somente este critério seria insuficiente se, após, o juiz assume um papel de inquisidor. Portanto, o ponto crucial para identificação da essência do sistema reside na identificação do núcleo fundante, qual seja, a gestão da prova. E, tendo em vista que é conferido poderes instrutórios para o juiz, isso bastaria para descaracterizar o sistema acusatório.
Prossegue no sentido de que ainda que haja uma separação da fase pré-processual inquisitiva e da fase processual acusatória, deve-se adotar o sistema acusatório puro, pois ao trazer integralmente para o processo os elementos de prova, acaba por contaminar o órgão julgador que, revestindo-se do princípio do livre convencimento motivado e de termos como “corrobora”, acaba por formar seu convencimento no quanto colhido na fase inquisitorial e “finge-se” que a condenação se dá com lastro nas provas colhidas no processo judicial. (LOPES JUNIOR, 2004, p. 165-166)
Assim aduz Lopes Junior (2004, p. 173): “Sempre que se atribuem poderes instrutórios ao juiz destrói-se a estrutura dialética do processo, o contraditório, funda-se em um sistema inquisitório e sepulta-se de vez qualquer esperança de imparcialidade […]”
Coadunando com o pensamento do autor supramencionado, Rangel (2016, p. 54) explana que não adotamos um sistema acusatório puro, ante as características que permeiam o inquérito policial que integra os autos do processo e que dá andamento à ação penal. Inclusive, ressalta o fato de que o inquérito policial dá início a busca pela verdade, uma vez que, quando da instrução, o juiz se baseia no que foi colhido durante a fase inquisitiva para, após, realizar as perguntas.
2.3. DA VALORAÇÃO DAS PROVAS
São basicamente três os sistemas de valoração de provas mais relevantes, quais sejam: o sistema legal de provas, o sistema da íntima convicção e o do livre convencimento motivado, como veremos.
No sistema legal de provas havia uma valoração hierarquizada definida a partir de uma tabela de valoração de provas, ou seja, a importância de cada uma delas era previamente determinada pela lei. Tal sistema limitava a avaliação do juiz de cada prova colhida, tendo em vista que ficava vinculado aos valores já preestabelecidos. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 561)
Assim complementa Aranha (2006, p. 80):
Cada prova tem um valor certo, constante e inalterado, preestabelecido pela norma, de tal sorte que ao juiz só é permitida a apreciação dentro da eficácia que a lei lhe atribui. O juiz torna-se um órgão passivo, pois diante do valor tabelado, a ele cabe apenas verificar o valor atribuído pela lei, reconhecendo-o na sentença, sem que possa fazer sua apreciação diante da própria convicção.
O sistema da íntima convicção do magistrado ou da certeza moral do juiz confere ao magistrado uma maior liberdade para decidir consoante sua consciência e não de acordo com valores já pré-determinados, de modo que o mesmo não fica obrigado a fundamentar sua decisão. Portanto, o juiz decide de acordo com sua convicção íntima, independentemente das provas contidas nos autos. (RANGEL, 2016, p. 518).
Destaca-se que o sistema da íntima convicção foi adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro em relação às decisões prolatadas pelos jurados do Tribunal do Júri, em cumprimento ao direito que lhes é resguardado constitucionalmente, qual seja, o sigilo das votações. (TÁVORA, 2013, p. 408-409)
Já o sistema do livre convencimento motivado, adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, é considerado um sistema intermediário entre os dois supramencionados, porquanto, em que pese o magistrado tenha a liberdade de valoração de provas, existe a obrigatoriedade de fundamentação da sua convicção. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 562).
Assim, a vantagem desse sistema consiste no fato de que devolve ao magistrado a discricionariedade, com ampla liberdade na valoração de provas, contudo é somada à obrigação de fundamentar sua decisão, bem como a de que as provas devem estar no processo e precisam ser lícitas e legítimas. (LIMA, R., 2015, p. 605)
Dessa forma, o também chamado sistema da persuasão racional, determina que o juiz aja de maneira livre ao apreciar as provas, o que caracteriza a “convicção”, contudo, deverá realizar a aferição de acordo com as regras preestabelecidas, que, por sua vez, caracteriza o termo “condicionadas”. (ARANHA, 2006, p. 81)
Decorrem do referido sistema alguns efeitos importantes: (LIMA, R., 2015, p.66),
a)Não há prova com valor absoluto: não há hierarquia de provas no processo penal, sendo que toda prova tem valor relativo […] Essa liberdade de valoração da prova, todavia, não é absoluta […]; b)Deve o magistrado valorar todas as provas produzidas no processo, mesmo que para refutá-las […] As partes possuem, portanto, o direito de verem apreciados seus argumentos e provas, direito este cuja observância deve ser aferido na motivação; c)Somente serão consideradas válidas as provas constantes no processo […].
A partir da valoração das provas, o juiz pode chegar a três resultados diversos, quais sejam: a certeza, a dúvida ou a ignorância. A certeza é resultado de uma apreciação de provas que indiquem uma só direção, de maneira que se exclua qualquer dúvida prudente. No caso da dúvida, é a situação em que há um conflito de provas e o julgador, com base nas provas antagônicas oferecidas pelas partes, não consegue definir qual delas é a verdadeira. A ignorância, por sua vez, é o estado de total ineficácia da prova para demonstrar os fatos. Conclui, portanto, somente com a certeza é possível uma decisão condenatória. (ARANHA, 2006, p. 88)
Quanto à especificidade e hierarquia das provas, vale frisar que existem certas exigências relacionadas aos meios de provas para determinados casos, contudo, isso não conduz à ideia de que há uma hierarquia entre elas. As exigências, na verdade, configuram garantias ao acusado para que não haja violação a seus direitos, bem como estabelecem critérios em relação ao grau de convencimento do magistrado acerca da prova. Quanto a hierarquia, não é possível afirmar, a priori, que haja uma hierarquia ou superioridade entre as provas, mas tão somente que algumas delas não são capazes, por si só, de sustentar a ocorrência de um delito. (PACELLI, 2015, p. 342-343).
2.4. A BUSCA PELA VERDADE NO PROCESSO PENAL
Como já fora explicitado anteriormente, o processo penal busca a reconstrução dos fatos para formular o convencimento do juiz acerca da existência e veracidade de um evento mediante colheita de provas.
Tourinho Filho (2013, p. 234) ao tratar do objetivo de prova, assegura que este visa formar a convicção do juiz acerca da existência dos fatos e o modo que os mesmos se deram. Portanto, a partir dos meios que possui, o juiz irá reconstruir os fatos passados e buscar a verdade.
A reconstrução histórica deve tentar ser o mais fiel possível aos eventos. O que se quer é a reconstrução dos fatos buscando a maior coincidência possível com a realidade, visto que é impossível atingir uma verdade absoluta. (KHAÇED JUNIOR., 2009, p. 183)
Nas palavras de Ferrajoli: (2014, p. 53)
A “verdade” de uma teoria científica e, geralmente, de qualquer argumentação ou proposição empírica é sempre, em suma, uma verdade não definitiva, mas contingente, não absoluta, mas relativa ao estado dos conhecimentos e experiências levados a cabo na ordem das coisas de que se fala, de modo que, sempre, quando se afirma a “verdade” de uma ou de várias proposições, a única coisa que se diz é que estas são (plausivelmente) verdadeiras pelo que sabemos sobre elas ou seja, em relação ao conjunto dos conhecimentos confirmados que delas possuímos.
Durante anos se entendeu que no Processo Penal vigorava o princípio da verdade real. Ela está, historicamente, relacionada ao processo inquisitório, na qual se constata uma busca por uma verdade dissociada de regras e que é utilizada para justificar eventuais atos abusivos praticados pelo Estado. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 567).
Pacelli (2015, p. 333) complementa que a verdade real legitimava certos desvios, com as mais diversas práticas probatórias, ainda que não estivessem previstas legalmente e que eram explicadas com fulcro na busca pela verdade e pela gravidade inerente às questões penais.
Assim, através da verdade real, se fundamenta uma estrutura do poder judiciário que está em desacordo com os objetivos constitucionalmente trazidos pela República Federativa do Brasil. (KHAÇED JUNIOR, 2009, p. 124).
Desta feita, se almeja a verdade formal, que somente é alcançável com a observância das regras constitucionais e relacionadas aos fatos que sejam penalmente relevantes, ou seja, obtida mediante adoção das regras do sistema acusatório. Assim, o formalismo protege os indivíduos contra a imposição de verdades que, na realidade, são abusivas e arbitrárias. É certo dizer então que, no processo penal, apenas seria legítima a verdade formal. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 567-568).
Nessa esteira, contudo, é importante observar que a verdade processual, como nenhuma outra é absoluta e, por conseguinte, nem sempre irá condizer com a realidade fática, mas sim com uma verdade que está contida no processo. Por vezes, o que está nos autos nem sempre é verdadeiro, uma vez que testemunhas mentem, a confissão do acusado pode ser falsa, dentre outros. (RANGEL, 2016, p. 08)
2.5. PRINCÍPIOS
O Direito Processual Penal, com o advento da Constituição da República de 1988, passou a ter um fundo constitucional, devendo ser aplicado de modo a tutelar os direitos fundamentais. Uma maneira de contemplar esse ideal se dá a partir da aplicação e observância de princípios que funcionam como garantias ao indivíduo. (PACELLI, 2015, p. 35-36).
Portanto, necessário abordar alguns dos princípios de inestimável importância para o tema abordado no presente trabalho, como veremos a seguir.
2.5.1 Princípio da presunção de inocência
Nas palavras de Badaró (2008, p. 16): “A presunção de inocência assegura a todo e qualquer indivíduo um prévio estado de inocência, que somente pode ser afastado se houver prova plena do cometimento de um delito”.
A jurisdição é atividade necessária para obtenção da prova de que alguém praticou um crime e nenhum delito pode ser considerado como cometido, bem como ninguém pode ser considerado culpado nem submetido a uma pena até que, mediante um processo regular e com observância das premissas constitucionais, essa prova se produza. (FERRAJOLI, 2013, p. 505).
O princípio em comento tem guarida constitucional conforme o artigo 5º, LVII[4], da Constituição Federal e diz respeito ao fato de que todos são presumidamente inocentes até que sobrevenha trânsito em julgado da sentença penal condenatória. (NUCCI, 2015, p. 33-34).
Em que pese a Constituição Federal de 1988 não utilize a expressão “presunção de inocência”, também é denominado de presunção de não-culpabilidade, contudo, não se vislumbra qualquer diferença entre ambas as expressões, que se apresentam como variáveis de um conteúdo idêntico. (BADARÓ, 2008, p. 15-16).
Nucci (2015, p. 34) explica ainda que o princípio em comento tem relação com o princípio do in dubio pro reo, quer dizer, deve absolver o acusado sempre que pairarem dúvidas no caso em concreto.
O in dubio pro reo deve ser observado na fase de valoração das provas e, prevalecendo qualquer dúvida, deve ser imposta a absolvição, porquanto o papel de afastar a presunção da inocência ou da não culpabilidade compete à acusação. (Lima (LIMA, R., 2015, p. 45)
Assim, a presunção da inocência, princípio basal do processo penal, garante ao acusado um dever de tratamento na dimensão interna, quando se determina que o ônus da prova recaia sobre a acusação, a restrição das prisões cautelares e que a dúvida implique na absolvição do acusado; bem como na dimensão externa, ao se exigir uma proteção contra a estigmatização do réu enquanto perdurar o estado de inocência. (LOPES JUNIOR, 2013, p. 230).
Nesse esteio, Badaró (2008, p.16) conclui que “o princípio em comento é considerado um fundamento do processo acusatório que busque respeitar os direitos e a dignidade da pessoa humana”
Desta feita, o mencionado princípio, um dos mais importantes do ordenamento jurídico e constitucionalmente reconhecido, deve sempre ser evocado nos processos judiciais e aplicados nas hipóteses em que não houver nos autos provas seguras e suficientes para ensejar uma condenação.
2.5.2 Princípios da ampla defesa e contraditório
O princípio em comento também possui amparo constitucional no artigo 5º, LV, da Constituição Federal e aduz que às partes é conferido o direito mútuo de se manifestar processualmente sobre seus atos, com o fim de influenciar no convencimento do magistrado, o que inclui o direito de produzir prova, de ser cientificado dos atos processuais etc. (TÁVORA, 2013, p. 58).
O contraditório não se resume tão somente a uma mera participação das partes no processo, de modo que é necessário garantir a igualdade material mediante uma participação equânime e com meios reais de contrariar, pois apenas dessa forma se assegurará a plenitude do contraditório. (LIMA, R., 2015, p. 49)
Com o quanto alegado, concorda Nucci (2015, 37-38):
Quer dizer que toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem o adversário o direito de se manifestar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida entre a pretensão punitiva do Estado e o direito de liberdade e a manutenção do estado de inocência do acusado.
O princípio da ampla defesa encontra guarida no mesmo dispositivo constitucional mencionado acima, e consoante explica Nucci (2015, p. 35-36), ao réu deve ser conferido um tratamento diferenciado ante a sua hipossuficiência perante o Estado, através de todos os meios legítimos para se defender de maneira ampla e eficaz das imputações feitas contra si.
Pacelli (2015, p. 45) explica que a ampla defesa é realizada através da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e por qualquer meio que seja considerada uma prova legítima e hábil para comprovar a inocência do réu. A autodefesa inclui o interrogatório, que é dispensável, vez que é considerado um direito do réu. O mesmo não ocorre em relação a defesa técnica, na qual é obrigatória a participação de advogado ou defensor público em todos os atos do processo, não sendo, portanto, disponível. Por fim, a defesa efetiva diz respeito não a uma só mera participação, mas que ela seja eficaz, sob pena, inclusive, de nulidade.
2.5.3 Princípio da liberdade probatória
O referido princípio se apresenta como uma consequência da busca pela verdade processual, tendo em vista que se ao juiz é dada a tarefa de buscar a verdade, deve lhe ser conferido também a liberdade necessária para reconstruir o fato e apreciar sua veracidade, contudo, impende ressaltar que essa atuação sempre se deparará com limites presentes na lei. (RANGEL, 2016, p. 470)
A referida limitação pode se dar quanto ao momento da prova, que, em regra, podem ser produzidas em qualquer momento do processo, com suas devidas exceções, tais como o momento de apresentação do rol de testemunhas, sob pena de preclusão. (LIMA, R., 2015, p. 637)
a liberdade concernente ao tema da prova dispõe que sobre todos os fatos podem ser produzidas provas, desde que sejam relevantes para o deslinde da causa, podendo, inclusive, o magistrado indeferir as que são consideradas impertinentes ou protelatórias, consoante dispõe o próprio Código de Processo Penal. (LIMA, R., 2015, p. 638)
Já a liberdade quanto aos meios de prova significa dizer que, em regra, podem ser utilizados quaisquer meios de prova, independentemente de estarem previstos na legislação ou não, desde que sejam obtidas de maneira lícita e respeitando as normas constitucionais. (FEITOZA, 2008, p. 625).
2.5.4 Princípio da duração razoável do processo
A Constituição Federal prevê o princípio da duração razoável do processo em seu artigo 5º, inciso LXXVIII[5]. Lopes Junior (2004, p. 93) afirma que existe uma íntima relação entre o tempo e o processo: “o tempo é elemento constitutivo inafastável do nascimento, desenvolvimento e conclusão do processo, mas também na gravidade com que serão aplicadas as penas processuais, potencializadas pela (de) mora jurisdicional injustificada”
Nesse sentido, entende-se que o processo deve ser julgado de tal forma que, não demore em demasia a fim de não se configurar uma ausência de prestação jurisdicional do Estado, bem como deve durar o tempo necessário para que se resguarde os direitos e garantias fundamentais nele previstos. (DI GESU, 2014, p. 301).
Assim, consoante a mesma autora (2014, p. 302), a observância do princípio da duração razoável do processo juntamente com os demais princípios que acolham os direitos e garantias fundamentais estão interligados, dentre outras coisas, à qualidade da prova colhida no processo, sendo certo que, se em menor tempo elas forem colhidas, maior poderá conferir confiabilidade às mesmas.
Consoante passagem do tempo, a prova pode se desfazer, principalmente no que tange àquelas que provém da memória. Assim, o tempo pode se tornar inimigo da colheita de prova quando os vestígios tendem a desaparecer. (LOPES JUNIOR, 2004, p. 99)
Dispõem Avelar e Coutinho (2015) acerca da duração razoável do processo:
O exercício da persecução penal apenas se mostra legítimo quando são observadas as garantias fundamentais do investigado/acusado, moldadas a um procedimento temporalmente adequado, previamente determinado pelo legislador e quando as regras do jogo são efetivamente obedecidas.
Portanto, importante o equilíbrio entre a colheita de provas respeitando-se a duração razoável do processo, bem como a observância aos direitos e garantias fundamentais do acusado, tendo em vista que, somente assim, uma decisão judicial será pautada na legalidade.
3. CONCLUSÃO
Através do presente trabalho conclui-se que, no Processo Penal, provar é demonstrar, mediante apresentação dos meios necessários e legítimos, a existência ou não da “verdade” de um dado fato descrito na inicial para formar a convicção do órgão julgador.
Em que pese se busque um sistema acusatório, verifica-se que o Código de Processo Penal brasileiro ainda está contaminado em diversos dispositivos pelo processo inquisitivo de modo que, pode acabar por ferir direitos e garantias fundamentais do acusado e um processo penal eminentemente acusatório. Assim, o que se busca é, diante do cenário, realizar uma interpretação constitucional de tais dispositivos com o fito de preservar os princípios constitucionais inafastáveis do processo penal.
Não obstante o magistrado possua uma maior liberdade em seu convencimento, a teoria adotada do livre convencimentomotivado diz respeito a possibilidade de apreciação da prova sem qualquer hierarquia infundada e prefixada entre elas, e não a de agir de maneira arbitrária, de modo a, assim, garantir a observância dos preceitos constitucionais.
Destarte, embora seja impossível alcançar a verdade absoluta, cumpre ao magistrado buscar a verdade que mais se aproxima da realidade dos fatos a partir da reconstrução histórica, que somente será possível se extrair dos autos mediante observância dos princípios constitucionais e dos limites impostos pela norma jurídica.
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[1] Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas
[2] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[3] Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
[4] LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[5] A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
SILVA, Naiara Ribeiro Santos da. Teoria geral da prova e o sistema valorativo adotado no ordenamento Jurídico Brasileiro. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Contábeis, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2023, n. 1, aprovado e publicado em 10/11/2023. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/teoria-geral-da-prova-e-o-sistema-valorativo-adotado-no-ordenamento-juridico-brasileiro/. Acesso em: 24/04/2025.