O Papel do Sono na Memória
Autores
Resumo
O presente trabalho vem abordar o papel do sono na memória. Recentemente a comunidade científica tem demonstrado bastante interesse em relação ao sono e os aspectos relacionados ao mesmo. Tal interesse tem sido fomentado pelo desenvolvimento de novas técnicas de pesquisa que permitem novas abordagens no estudo do sono. Soma-se a isso a constatação do provável fato de que alguns dos processos neurobiológicos que ocorrem no sono são necessários para a manutenção da saúde física e cognitiva do ser humano. O principal objetivo deste trabalho é demonstrar a importância do sono para uma boa manutenção ativa da memória. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros atuais, entre 2015 a 2025, e mais relevantes sobre o tema. Conclui-se que o estímulo emocional intensifica a consolidação das memórias, sendo que já está sendo testada a hipótese seletiva de consolidação da memória humana efetiva do sono, que parece estar presente apenas na sequência do sono no fim da noite, demonstrando que essas memórias persistem por vários anos.
Palavras-ChaveSono; Memória; Saúde Física; Hipótese seletiva
Abstract
This paper addresses the role of sleep in memory. Recently, the scientific community has shown considerable interest in sleep and its related aspects. This interest has been fueled by the development of new research techniques that allow for new approaches to the study of sleep. Added to this is the finding that some of the neurobiological processes that occur during sleep are necessary for maintaining the physical and cognitive health of human beings. The main objective of this paper is to demonstrate the importance of sleep for good active memory maintenance. The methodology adopted will be a bibliographic analysis of literature, with emphasis on current books, published between 2015 and 2025, and the most relevant on the subject. It is concluded that emotional stimulation intensifies memory consolidation, and the selective hypothesis of effective human memory consolidation during sleep is already being tested, which seems to be present only in the sleep sequence at the end of the night, demonstrating that these memories persist for several years.
KeywordsSleep; Memory; Physical Health; Selective hypothesis
1 INTRODUÇÃO
O sono é um estado regular, recorrente, reversível com facilidade, que se caracteriza por quietude e grande aumento do limiar de resposta a estímulos externos, se comparado ao estado de vigília (De Oliveira et al, 2024). Nos últimos anos, um acúmulo de estudos, utilizando métodos complexos e distintos, tem procurado investigar um possível papel do sono em diversos parâmetros cognitivos. Em virtude da relevância do tema, de sua complexidade e de sua importância para a saúde do ser humano, tornou-se imprescindível a utilização das evidências oriundas de inúmeros estudos sobre a relação do sono com a cognição e a emoção humanas.
A comunidade científica tem demonstrado bastante interesse em relação ao sono e aspectos relacionados ao mesmo. Tal interesse tem sido fomentado pelo desenvolvimento de novas técnicas de pesquisa que permitem novas abordagens no estudo do sono. Soma-se a isso a constatação do provável fato de que alguns dos processos neurobiológicos que ocorrem no sono são necessários para a manutenção da saúde física e cognitiva do ser humano. Assim, hoje é possível estudar, mediante as diversas técnicas, aspectos neuroanatômicos, neurofisiológicos e neuroquímicos relacionados a alterações clínicas do sono, bem como aquelas alterações do sono induzidas experimentalmente. Esse interesse é de grande importância para a melhoria das ferramentas de investigação dos mecanismos inerentes ao sono (Cammarota et al, 2023).
O principal objetivo deste trabalho é demonstrar a importância do sono para uma boa manutenção ativa da memória. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros atuais, entre 2015 a 2025, e mais relevantes sobre o tema.
O presente trabalho aborda também os processos de associação, integração e criatividade, que vão além da consolidação da memória, apontando possíveis implicações do sono nesse tema. Finalmente, aborda possíveis relações entre sono e emoção, onde será avaliada a regulação emocional e o processamento de informação emocional.
2 NEUROBIOLOGIA DO SONO
O sono está associado com uma variedade de alterações fisiológicas, incluindo respiração, função cardíaca, tônus muscular, temperatura, secreção hormonal e pressão sanguínea (Dalgalarrondo, 2020).
O sono é um estado regular, recorrente e facilmente reversível do organismo, caracterizado por uma relativa quietude e grande elevação no limiar de resposta a estímulos externos (Lent, 2020). Postula-se que diversos processos neurobiológicos que ocorrem no sono são necessários para a manutenção de alguns aspectos da saúde física e cognitiva. O entendimento mais recente é de que o ciclo sono-vigília apresenta regulação complexa e multideterminada, sendo regulada por dois processos. O processo circadiano é regulado pelos núcleos hipotalâmicos supraquiasmáticos, enquanto o processo homeostático é regulado por núcleos colinérgicos.
Algumas evidências sugerem que tanto a privação como a restrição de sono, parece afetar vários processos biológicos em humanos, incluindo metabolismo energético, função do sistema imunológico, desempenho cognitivo e motor, humor e regulação do apetite (Cammarota et al, 2023). O acompanhamento do sono é de grande importância clínica, pois sua alteração e/ou perturbação é, frequentemente, um sintoma precoce de doença mental iminente
A vigília e os vários estágios do sono são determinados por padrões característicos no eletroencefalograma (EEG). O estado de vigília é caracterizado por baixa amplitude de sincronização de oscilações no EEG na faixa de 20 a 60 Hz. O ritmo eletroencefalográfico mais proeminente no estado da vigília relaxada é o ritmo alfa, registrado na região occiptal quando os olhos estão fechados. O ritmo alfa consiste de atividade rítmica de 8 a 12 Hz. Esse ritmo desaparece quando os olhos se abrem ou durante o processamento visual, mesmo com os olhos fechados. Os ritmos de freqüência alfa caracterizam as regiões corticais sensoriais durante estados de relativa inatividade (DATTA, 2009). A transição da vigília ao sono, normalmente o estágio 1 do sono NREM, está indicada pelo aparecimento no EEG de atividade teta mais lenta, de 5 a 7 Hz, geralmente de baixa voltagem. O indivíduo não está consciente nesse ponto, mas pode ser acordado facilmente. O estágio 1 do sono geralmente constitui apenas cerca de 5 a 7% do tempo total de sono (Pôrto, 2022).
O sono humano caracteriza-se por estados fisiológicos distintos que oscilam em ciclos de 90 minutos ao longo da noite, sendo classicamente dividido, em sono NREM (Non Rapid Eye Movement) e sono REM (Rapid Eye Movement). Esses ciclos se repetem quatro ou cinco vezes durante o sono. O sono NREM é formado pelos estágios 1 a 4, de acordo com os padrões observados durante o registro do eletroencefalograma (EEG), correspondendo nesta ordem para o aumento da profundidade do sono. Se comparadas ao estado de vigília, a maioria das funções fisiológicas (digestão, excreção, respiração, circulação sanguínea), encontra-se acentuadamente reduzida durante o sono NREM. Já o sono REM é um tipo qualitativamente diverso de sono, caracterizado por ativação de diferentes estruturas cerebrais evidenciados por estudos de neuroimagem e níveis de atividade fisiológica comparáveis à vigília (Dalgalarrondo, 2020).
Uma vez iniciado o estado de sono com os estágios do sono NREM, acontece o primeiro episódio de sono REM noturno, sendo que este ciclo NREM-REM prevalece grande parte estável no decorrer da noite, e essa alternância NREM-REM dura, cada um, aproximadamente 90 minutos. No início da noite, os estágios 3 e 4 do sono NREM predominam, enquanto que o estágio 2 do sono NREM e o sono REM apresentam maior duração na segunda metade da noite (Lent, 2020).
Segundo Cammarota et al (2023), os estágios do sono NREM se diferenciam pelas seguintes características: (1) O estágio 1, considerado o estágio de sono mais leve, é caracterizado por atividade regular de baixa voltagem, de 3 a 7 ciclos por segundo; (2) Estágio 2, um padrão que mostra freqüentes traçados fusiformes de 12 a 14 ciclos por segundo (fusos de sono e ondas baixas, trifásicas, conhecidas como complexos K; (3) Estagio 3, logo depois as ondas desta atividade de alta voltagem de 0,5 a 2,5 ciclos por segundo aparecem e ocupam menos de 50% do traçado; (4) Estágio 4, as ondas delta ocupam mais de 50% do registro. É comum nomear os estágios 3 e 4 do sono como sono delta ou sono de ondas lentas (SWS – Slow Wave Sleep), por causa de sua aparência característica no registro do EEG.
Estudos de imagem cerebral demonstram padrões diferentes na anatomia funcional associada com sono NREM e REM. Durante o sono NREM SWS, as regiões do tronco cerebral rostral, os núcleos do tálamo, gânglios basais, hipotálamo, córtex pré-frontal, e regiões do lobo temporal medial, parecem sofrer redução da atividade. Porém, durante o sono REM, há elevações nas atividades nas regiões: tegmento pontino, núcleos talâmicos, córtex occipital, córtex pré-frontais mediobasais, e grupos límbicos associados, incluindo a amígdala, hipocampo e o córtex cingulado anterior. Mas percebe-se que o córtex pré-frontal dorso lateral, do cíngulo e córtex parietal aparecem menos ativos durante o sono REM (Dalgalarrondo, 2020).
Conforme Pôrto (2022), evidências pregressas demonstram que durante o estado de vigília, os níveis cerebrais de acetilcolina (Ach), norepinefrina (NE), serotonina (5-HT), dopamina (DA), histamina (HA) e glutamato (Glut) estão em seus níveis mais elevados. Durante o sono de ondas lentas SWS os níveis de Glut e Ach apresentam queda, e permanecem em seu nível mais baixo até o final do SWS (DATTA, 2009). Durante o sono REM, a Ach chega a cerca de 65% dos seus níveis mais altos de vigília, e o Glut corresponde ao seu nível mais alto durante a vigília. A NE, 5-HT, DA, e os níveis de HA em todas as partes do cérebro sofrem um declínio durante o SWS e, lentamente caem para seus níveis mais baixos durante a SWS. Durante o sono REM, NE, 5-HT, e HA permanecem em seus níveis mais baixos.
Durante a vigília, os níveis de GABA (ácido gama-aminobutírico) estão em seus menores níveis. Em contrapartida os níveis de GABA em estruturas subcorticais e áreas corticais do prosencéfalo aumentam lentamente durante o SWS e, em seguida, atingem seu mais alto nível no decorrer do SWS. Durante o sono REM, o nível de GABA em quase todas as partes do cérebro, com exceção de algumas áreas específicas do tronco cerebral, quase cai ao nível mais baixo (Kaplan, 2022).
2.1 Neurobiologia das Emoções
O ritmo circadiano e o controle homeostático são os maiores determinantes do ciclo sono-vigília. O processo circadiano envolve um relógio biológico interno representado por um grupo distinto de neurônios, que se localiza no núcleo supraquiasmático do hipotálamo e tem como função sincronizar o sono com o período luminoso e consolidar o ciclo sono-vigília. O processo homeostático depende da duração da vigília prévia e da qualidade e duração dos episódios de sono. Este mecanismo controla o acúmulo de sono e a sua recuperação, ou seja, aumenta a propensão ao sono quando ele está reduzido ou ausente e diminui a propensão em resposta ao excesso de sono. Estudos demonstram que o substrato de tal processo homeostático se dá através do acúmulo de adenosina intracelular em núcleos colinérgicos cerebrais (Dalgalarrondo, 2020).
O termo emoção corresponde ao francês emouvoir, que significa comover, emocionar; e está ligado a uma idéia de movimento. Emoção em geral representa um estado afetivo súbito, de curta duração e grande intensidade, que se acompanha de alterações corporais, relacionadas a uma hiperatividade autonômica (Lent, 2020, p.140).
A emoção é uma experiência subjetiva acompanhada de manifestações fisiológicas e comportamentais. Já o termo afeto pode ser usado para designar genericamente os elementos da afetividade, incluindo emoções, sentimentos e humor; mas, outras vezes, é empregado como sinônimo de emoção. E o humor representa a soma ou síntese dos afetos presentes na consciência em um dado momento. Constitui o estado afetivo basal e fundamental, que se caracteriza por ser difuso, isto é, não relacionado a um objeto específico, e por ser em geral persistente e não-reativo. O humor oscila entre os pólos da alegria, da tristeza e da irritabilidade, assim como entre a calma e a ansiedade (Kaplan, 2022).
As emoções podem ser divididas, de acordo com sua utilidade entre aquelas para a sobrevivência do indivíduo, a sobrevivência da espécie e a comunicação social. Elas podem ainda ser classificadas, segundo vários autores, em emoções positivas, negativas e neutras. As positivas são aquelas prazerosas e que tendem a ser repetidas; as negativas são desagradáveis e tendem a ser eliminadas. O elemento comum entre elas é o reforço, ou seja, um estímulo positivo (prazeroso) ou negativo (desagradável) que resulta na motivação por prolongar ou interromper a experiência emocional (Medeiros et al, 2022). Dessa maneira, distinguem-se dos estímulos neutros, pois estes não suscitam reforço. O hipotálamo, a área paraolfatoria, o epitálamo, o núcleo anterior do tálamo, porções dos núcleos da base, o hipocampo, amígdala, o córtex orbitofrontal, o giro subcaloso, o giro cingulado, o giro para-hipocampal e o úncus são as principais estruturas cerebrais envolvidas no processo das emoções, e constituem o sistema límbico. O hemisfério direito é o dominante para a emoção. Assim, o processamento emocional envolve um complexo sistema formado por estruturas corticais e subcorticais.
Pôrto (2022) relata que, a estimulação do hipotálamo, em animais, produz efeitos autonômicos, endócrinos e músculo-esqueléticos semelhantes aos observados nos estados emocionais. Parece ter a função de integrar as respostas autonômicas, endócrinas e músculo-esqueléticas, a partir das informações que recebe do córtex orbitofrontal, da amígdala e de partes da formação reticular. O hipotálamo também controla a síntese e a liberação para a corrente sanguínea de hormônios, através de projeções para a hipófise anterior. Além de atuar no controle dos sistemas nervoso autônomo e do sistema hormonal, o hipotálamo participa de uma série de comportamentos emocionais, através de projeções para o tronco cerebral, onde se encontram estruturas que controlam diversos músculos envolvidos na expressão facial das emoções.
A amígdala é provavelmente o centro da ansiedade e do medo, os quais são biologicamente indistinguíveis. Faz conexão com o hipotálamo, o qual medeia às respostas periféricas autonômicas desencadeadas por ela. O córtex orbitofrontal possui eferências para a amígdala e outras áreas límbicas primárias. Ele pode inibir uma resposta de medo condicionado, através de sua conexão com a amígdala. O córtex orbitofrontal reage a estímulos mais complexos que a amígdala e está relacionado à tomada de decisões (Kaplan, 2022).
Cognição é o ato ou processo de conhecer, que melhor envolve atenção, percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem; a palavra tem origem nos escritos de Platão e Aristóteles (Lent, 2020). A função mais estudada nos dias atuais é a memória; e também é a função onde foram identificadas importantes alterações em decorrência do sono. Por esse motivo vamos nos ater a descrição do processo da memória.
2.2 Neurobiologia da Memória
A memória é a capacidade de armazenar informações que possam ser recuperadas e utilizadas posteriormente. Difere da aprendizagem, pois esta é apenas o processo de aquisição das informações que vão ser armazenadas. A capacidade de memorizar está relacionada intimamente com o nível de consciência, com a atenção e com o interesse afetivo (Medeiros et al, 2022).
O processo mnemônico pode ser dividido em algumas etapas. O primeiro deles é a aquisição ou codificação (aprendizagem), seguindo-se a retenção (ou conservação, ou armazenamento) durante tempos variáveis. A retenção por tempos curtos pode ser transformada em retenção de longa duração pelo processo da consolidação da memória. Em ambos os casos, entretanto, pode haver evocação ou recuperação (lembrança) ou esquecimento das informações memorizadas (Kaplan, 2022).
A codificação é a etapa referente à aquisição de novas informações; depende da preservação do nível da consciência, da atenção, da sensopercepção e da capacidade de apreensão. São codificadas com maior facilidade as informações que despertam o nosso interesse e possuem uma maior conotação emocional, as que podem ser associadas às informações já aprendidas e as que envolvem mais de um canal sensorial ao mesmo tempo, como por exemplo audição e visão. Alguns estudos demonstraram que o hipocampo e outras estruturas têmporo-mediais, como o cótex entorrinal, o subículo e o córtex para-hipocampal (o complexo hipocampal), são fundamentais para o processo de codificação (Pôrto, 2022).
A retenção ou conservação é a etapa que se refere à manutenção, em estado de latência, das informações que foram codificadas. Algumas regiões cerebrais, especificamente, o hipocampo e o tálamo, ao lado do lobo frontal, estão relacionados à memória de conservação. Já a etapa de evocação corresponde ao retorno, espontâneo ou voluntário, à consciência das informações armazenadas. Fatores afetivos podem influenciar a evocação. É esquecido com maior facilidade o que é desagradável ou angustia. No processo de evocação, o hipocampo e o tálamo, ao lado do lobo frontal, parecem estar envolvidos. A evocação, assim como a percepção, não são cópias fiéis do mundo externo, então nunca é idêntica à imagem perceptiva fixada. Cada vez que evocamos estamos reconstruindo, sempre com alterações, a imagem armazenada (Medeiros et al, 2022).
São vários também os tipos e subtipos de memória. Levando em conta o tempo de retenção, pode-se considerar a memória sensorial, de curto prazo e de longo prazo. A duração da memória sensorial é menos de um segundo, permanece ativa apenas o tempo necessário para se dar a percepção. Possui uma capacidade muitíssimo limitada, é mais uma função da atenção do que da memória. A memória de curto prazo possui a capacidade de armazenamento limitada, e dura segundos a minutos (Pôrto, 2022).
Segundo De Oliveira et al (2024), a memória de trabalho corresponde a um componente de curto prazo da memória explícita, que se refere ao armazenamento temporário de informações para a realização de tarefas cognitivas. Diversas informações são mantidas ativas simultaneamente, para que possam ser integradas e manipuladas. A memória de trabalho é de extrema importância tanto para a fixação como para evocação; é necessária também para atividades cognitivas como a compreensão, o raciocínio, a tomada de decisões e o planejamento da ação.
Chama-se de consolidação o processo que converte as memórias de curto prazo em memórias de longo prazo. A memória de longo prazo representa o armazenamento permanente de informações. Informações que foram fixadas há alguns minutos poderão ser evocadas por anos ou até por toda a vida (Lessa et al, 2020).
Já quanto à natureza, as memórias de longo prazo podem ser subdivididas em implícita ou não declarativa; explícita ou declarativa. A primeira é a memória dos hábitos, procedimentos e regras, de representação perceptual, a aprendizagem associativa e a não associativa, todas as formas de memória que não precisam ser descritas com palavras para serem evocadas (Medeiros et al, 2022). A memória implícita está relacionada ao corpo estriado e ao globo pálido (gânglios da base); o condicionamento clássico, à amígdala (respostas emocionais) e ao cerebelo (respostas motoras); à aprendizagem não-associativa, às vias reflexas; à pré ativação, ao neocórtex (centros perceptivos “pré-semânticos” no córtex sensorial posterior); e à memória emocional, à amígdala (que ativa o sistema nervoso autônomo).
Em contraposição, a memória explícita costuma ser descrita com palavras ou outros símbolos, e consiste em um subtipo chamado episódico (a memória dos fatos que ocorrem ao longo do tempo) e um subtipo chamado semântico (a memória dos conceitos atemporais). A neuroanatomia da memória explícita está relacionada ao hipocampo e demais estruturas do complexo hipocampal, e ainda ao diencéfalo, ao giro do cíngulo e às regiões ventromediais e dorsolaterais do córtex pré-frontal (isso é válido para a memória episódica). Já a memória semântica não está restrita a uma única região, mas sim em várias áreas do neocórtex ao mesmo tempo, córtex pré frontal e, talvez, também o cerebelo (Ribeiro, 2023).
Pode-se considerar que as informações transitórias e duradouras são armazenadas em diversas áreas corticais, de acordo com a sua função: memórias motoras no córtex motor, memórias visuais no córtex visual, e assim por diante. Dessas regiões elas podem ser mobilizadas como memória operacional pelas áreas pré-frontais, em ligação com áreas do córtex parietal e occipitotemporal. Além disso, as memórias explícitas podem ser consolidadas pelo hipocampo e áreas corticais adjacentes do lobo temporal medial, em conexão com núcleos do tálamo e do hipotálamo. Finalmente, o processo de consolidação é fortemente influenciado por sistemas moduladores, sobretudo aqueles envolvidos com o processamento emocional, como o complexo amigdaloide do lobo temporal (Cheniax, 2022).
2.3 Sono e Consolidação da Memória
Denomina-se de consolidação o processo que converte as memórias de curto prazo em memórias de longo prazo (Lessa et al, 2020). Durante anos, estudiosos quiseram evidenciar o papel do sono na consolidação da memória. Nos primeiros estudos acerca do tema foi observado que a força de uma memória tem melhor conservação após períodos de sono, comparando com períodos equivalentes de vigília.
Descobertas recentes revelam o forte efeito benéfico do sono na consolidação da memória declarativa. Estudos relatam uma melhora na tarefa de associação de palavras seguidas do sono. Os autores ainda atribuíram no estudo essa melhora de desempenho à noite de sono rica em sono SWS que antecede a tarefa de associação. Mais recentemente, pesquisadores demonstraram ainda que além das classicamente definidas ondas delta lentas (0,5 – 4 Hz), a muito lenta oscilação cortical (< 1 Hz) parece exercer papel importante para a consolidação de memórias declarativas. Outros estudos demonstraram ainda que a aprendizagem foi inicialmente associada à atividade do hipocampo, ou seja, durante o sono pós-tarefa, houve uma reativação do hipocampo, especificamente durante SWS (Ribeiro, 2023). Os autores também detectaram que a quantidade de reativação no hipocampo no período de SWS foi proporcional à quantidade de melhora de tarefas no dia seguinte, sugerindo que essa reativação é associada com a melhoria da memória.
Tão importante quanto a consolidação da memória em redes pré existentes de conhecimento estão a associação e integração. Na realidade, o objetivo final do processamento da memória dependente do sono pode não ser o reforço de memórias individuais isoladamente, mas a sua integração em um esquema comum, e por este reforço, a facilitação do desenvolvimento de conceitos universais, um processo que faz a base de conhecimento generalizado e até mesmo criativo. Estudos pregressos demonstraram a influência positiva do sono na integração de novas memórias declarativas em esquemas pré-existentes, com outros estudos replicando este achado de um papel positivo do sono na integração de novas informações (Cheniax, 2022).
De acordo com De Oliveira et al (2024), o reforço e a consolidação noturna de itens de memórias individuais pode não ser o objetivo final do processamento da memória dependente do sono, especialmente quando se considera que memórias não emocionais decaem ao longo do tempo. É interessante especular se o sono serve para facilitar os objetivos complementares para a memória declarativa, que abrangem cursos de tempo diferentes. A primeira pode ser um processo inicial de consolidação individual (episódica) das memórias que são novas, que podem ocorrer relativamente a curto prazo. Durante um tempo de percurso mais longo, porém, e utilizando itens de memória consolidada antes de sua atenuação, o sono pode começar o processo de extração (de significado) e abstração (a construção de laços associativos com informações já existentes), criando assim mais redes semânticas adaptáveis.
Evidências substanciais sugerem que o sono desempenha um papel no processamento da memória que vai muito além da consolidação e fortalecimento das memórias individuais, ao contrário, visa assimilar inteligentemente e generalizar os detalhes “desligados”. Ao fazê-lo, o sono pode oferecer a capacidade de construir e testar esquemas comuns de informação de conhecimento, fornecendo para as previsões e estatísticas cada vez mais precisas sobre o mundo e permitindo a descoberta de novos, mesmo criativos, insights de solução no dia seguinte (Barros e De Sousa, 2022).
Irritabilidade e instabilidade afetiva são comumente associadas com a privação do sono além dos bem estabelecidos déficits atencionais secundários à privação do sono. Até hoje, somente um estudo investigou se a falta de sono modula a reatividade emocional do cérebro humano. Esse estudo, investigou a partir de uma sessão de varredura do fMRI, indivíduos privados de sono (cerca de 35h de perda total de sono) e não privados, que foram expostos a estímulos afetivos que envolviam apresentação de slides com imagens emocionalmente neutras, negativas e aversivas. Ambos os grupos manifestaram ativação significativa da amígdala em relação a imagens emocionalmente negativas, porém o grupo privado de sono apresentou 60% maior reatividade da amígdala em ralação ao grupo controle. Além disso, houve um triplo aumento da amígdala em relação a resposta aos estímulos aversivos no grupo privado de sono. E ainda, uma significativa perda da conectividade funcional identificada entre a amígdala e o córtex pré-frontal medial (mPFC) no mesmo grupo; região conhecida por ter fortes projeções inibitórias e, portanto, impacto modulatório na amígdala (Cheniax, 2022).
No entanto, uma maior conectividade de forma significativa no grupo com restrição foi observada entre a amígdala e o centro autonômico de ativação do locus coeruleos. Com a privação de sono, houve uma amplificação da reação límbica pela amígdala em resposta a estímulos negativos. Esse aumento da atividade límbica está associado com a perda da conectividade funcional com o mPFC na condição de privação do sono. Assim, observou-se que a restrição do sono resultou em amplificação da atividade límbica representada por um aumento da reatividade da amígdala em resposta a estímulos negativos. Mais ainda, no contexto de privação do sono, essa hiperatividade amigdaliana associou-se com diminuição da conectividade com o mPFC com possíveis implicações na inibição modulatória dessas estruturas. Curiosamente, esse mesmo modelo de disfunção anatômica tem sido observado em algumas disfunções psiquiátricas que cursam frequentemente com alterações do sono (Lessa et al, 2020), levantando questionamento sobre uma possível relação causal entre esses fatores.
2.4 A hipótese do processamento da memória emocional do sono REM
As evidências do papel do sono REM no fortalecimento de memórias emocionais levaram pesquisadores a sugerir um possível envolvimento desse fenômeno na iniciação e manutenção de transtornos do humor. Tal hipótese deriva do fato de que, assim como observa-se reforço na codificação e consolidação de memórias emocionais, também observa-se uma redução, ao longo do tempo, do tônus afetivo associado à evocação dessas experiências. Assim, a razão pela qual as experiências afetivas parecem estar codificadas e consolidadas mais do que as memórias neutras é devido às reações neuroquímicas suscitadas na época da experiência, criando aquilo que chamamos de uma “memória emocional” (Barros e De Sousa, 2022).
Por exemplo, estudos de neuroimagem têm mostrado que a exposição inicial da aprendizagem de estímulos emocionais está associada com maior ativação substancialmente na amígdala e hipocampo, em relação aos estímulos neutros. Todavia, um desses estudos demonstrou que a (re) exposição ao estímulo emocional primordial após alguns meses resultou em diminuição significativa da ativação autonômica (——————–). Mais ainda, observou-se o mesmo padrão de atividade hipocampal para estímulos neutros e emocionais, mas não para a amígdala. Essas evidências dão suporte para o conceito de que a força da memória mantém-se longitudinalmente, enquanto a reatividade emocional associada à memória apresenta tendência de diminuição.
Esse modelo preconiza que o processo de dissociação das memórias emocionais ocorreria no período de sono. Assim, se há prejuízo ou alterações no sono, ocorreria prejuízo no processo de dissociação previamente mencionado. Isto é, haveria tendência de permanência ou perpetuação da magnitude da resposta autonômica primordialmente associada à experiência (Lessa et al, 2020).
Segundo essa hipótese, o aumento da atividade dentro das estruturas límbicas e paralímbicas (incluindo o hipocampo e amígdala) durante o sono REM poderia inicialmente oferecer a possibilidade de reativação de experiências afetivas adquiridas anteriormente. Em síntese, esse modelo propõe que as condições neuroanatômicas, neurofisiológicas (ondas teta) e neuroquímicas (redução monoaminérgica e predomínio colinérgico) do sono REM oferecem um meio biológico propício para uma potenciação neural equilibrada do núcleo de informações das experiências emocionais (a memória), bem como uma despotencialização da carga autonômica originalmente adquirida no momento da aprendizagem (a emoção), prevenindo um estado de ansiedade e evitação de longo prazo, com suas possíveis consequências psicopatológicas (Barros e De Sousa, 2022).
Esse modelo encontra relativo respaldo em estudos que demonstraram o efeito positivo do sono REM para o humor, bem como um efeito benéfico da presença de parâmetros relacionados ao sono REM na melhora clínica de pacientes deprimidos (De Oliveira et al, 2024).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um sono de boa qualidade influencia positivamente nas memórias processual e prospectiva, porém, com relação às memórias emocionais, há divergência quanto ao papel do sono na consolidação desse tipo de informação nova obtida. Dormir após um período de aprendizado também propicia uma melhora nas respostas aos testes executivos e cognitivos.
A ausência de recuperação episódica adequada em sonhos durante o sono REM, quando a comunicação hipocampo-neocortical é interrompida, mas a comunicação neocortical-neocortical é preservada, é consistente com a última posição. Se memórias de episódios totalmente consolidadas pudessem ser elaboradas no neocórtex, deveríamos esperar observar sua recuperação durante os sonhos REM – mas esse não parece ser o caso, pelo menos nos poucos estudos relatados até o momento. Um exame mais detalhado da natureza dos sonhos no sono REM e a presença, ou ausência, de memórias remotas nesses sonhos forneceriam pistas importantes neste debate em andamento sobre a natureza do armazenamento de memória no cérebro.
As contribuições que os circuitos hipocampais e neocorticais fazem para a memória episódica, para a consolidação da memória episódica e semântica e para o conteúdo dos sonhos, nossa proposta sugere algumas possibilidades intrigantes sobre a criatividade e a geração de novos pensamentos. Um estágio de consolidação provavelmente envolve a integração de informações com conhecimentos pré-existentes e a vinculação de conceitos distantes, mas relacionados. Sonhamos quando tomamos consciência desses traços ativados, que muitas vezes são imagens e sons fragmentados acoplados à atividade motora. Semelhante às memórias criadas sob estresse, esses fragmentos são imediatamente submetidos a um processo de suavização narrativa, e o resultado é tipicamente uma história muitas vezes confabulatória, bastante bizarra, mas possivelmente também criativa.
Observando o impacto negativo da privação de sono na memória e no aprendizado humano, como também, na deterioração da saúde, deve-se considerar como utilizar essas informações para promover saúde. Portanto, divulgação em massa do tema para que haja conscientização, pode ser eficaz para que abandonem hábitos que atrapalhem o sono.
Compreender o funcionamento do sono e seu papel no armazenamento da memória é de fundamental importância. É necessário, portanto, não apenas educar os profissionais de saúde sobre o tema, mas também iniciar um programa de educação continuada nas escolas e nos locais de trabalho, para que, desta forma, cada indivíduo, entendendo melhor esse ciclo circadiano, possa ser ativo na sua higiene pessoal do sono, e melhore assim sua qualidade de vida.
Não é apenas a quantidade de horas de sono que interferem nas atividades cotidianas, mas sim os hábitos realizados diariamente para melhorar a qualidade do sono. Uma vez que para adormecer não basta fechar os olhos, é necessário criar uma rotina, fazer todo um ritual. Essas melhorias terão consequências positivas na vida de cada um, uma vez que o indivíduo conseguirá ter um sono reparador, melhorando, principalmente, a neuroplasticidade, fundamental para a consolidação da memória.
Vale salientar que a pessoa até pode conseguir dormir em um ambiente inadequado, com muito barulho, luz acesa, durante o dia, com fome ou qualquer outra situação adversa. Mas, para isso acontecer, é necessário um gasto de energia muito maior do que o esperado. Dessa forma, o sono perde o seu papel de restabelecer as energias gastas durante o dia e de restabelecer o equilíbrio psicossomático, mantendo o organismo em um verdadeiro desequilíbrio.
Pode-se concluir, então, que para viver bem é necessário dormir bem. O sono faz parte do ciclo circadiano dos seres humanos – é uma necessidade natural, fisiológica. O corpo de todos os indivíduos pede por isso, alguns necessitam de mais horas de sono do que outros. Está bem estabelecido que quando se passa por um dia com maior carga de informações, torna-se necessário mais horas de sono durante a noite para o armazenamento desse novo aprendizado. Mas é essencial que ele ocorra de forma plena e profunda, para que assim sejam armazenadas todas as memórias necessárias à vida.
REFERÊNCIAS
BARROS, Júlia Pessanha; DE SOUSA, Carlos Eduardo Batista. Privação crônica do sono e desempenho escolar-acadêmico: uma revisão sistemática. Revista Neurociências, v.30, p.124, 2022.
CAMMAROTA M; et al. Neurociência da mente e do comportamento. ed.5. Editora Guanabara Koogan, 2023.
CHENIAUX, E. Manual de psicopatologia. ed.9. Editora Guanabara Koogan. Rio de Janeiro, 2022.
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. ed.7. Editora Artmed. Porto Alegre, 2020.
DE OLIVEIRA, Alessandro Vidal; et al. Impactos da qualidade do sono na saúde mental de estudantes de medicina: uma revisão sistemática. Revista Neurociências, v.32, p.1-18, 2024.
KAPLAN, Harold I. Compêndio de Psiquiatria: Ciências do comportamento e psiquiatria clínica. ed.14. Editora Artes Médicas. Porto Alegre, 2022.
LENT, R. Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociência. ed.5. Editora Atheneu. São Paulo, 2020.
LESSA, Ruan Teixeira; et al. A privação do sono e suas implicações na saúde humana: uma revisão sistemática da literatura. Revista Eletrônica Acervo Saúde, n.56, p.46, 2020.
MEDEIROS, A.L.D; et al. Hábitos do sono e desempenho em estudantes de medicina. Rev Saúde, n.16, p.49-54, 2022.
PÔRTO, W. G. Emoção e memória. ed.8. Editora Artes Médicas. São Paulo, 2022.
RIBEIRO, S. Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro. Rev Bras Psiquiatr, n.25, p.59-63, 2023.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
Nuss Del Quiqui, Micheline (ORCID 0009-0006-2087-4241) e Del Quiqui, Lucca. O Papel do Sono na Memória. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Sociais Aplicadas, Educação, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.15118652, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 01/04/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/o-papel-do-sono-na-memoria/. Acesso em: 24/04/2025.