A investigação criminal defensiva durante as apurações policiais
Autores
Resumo
Trata-se de uma reflexão acerca da legitimidade da investigação criminal promovida pela defesa, no curso das investigações preliminares policiais
Palavras-ChaveInvestigação criminal defensiva. Legitimidade. Apurações policiais
Abstract
This is a reflection on the legitimacy of criminal investigations conducted by the defense during the course of police preliminary investigations.
KeywordsDefensive criminal investigation. Legitimacy. Police investigations.
1. INTRODUÇÃO
O intento deste estudo é analisar os aspectos correlacionados à investigação criminal defensiva durante o curso das investigações policiais, realizada pela defesa, com a finalidade de buscar levantar elementos e meios de prova que sejam favoráveis à plena defesa do investigado.
Para os que levantam e defendem a tese da investigação criminal defensiva, tal modalidade, apartada das estruturas estatais, teria por fundamento a imparcialidade que deve existir no sistema jurídico processual penal, além de basear-se no processo penal acusatório, sistema este adotado na atual conjuntura do ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, ligada aos conceitos de contraditório e ampla defesa, tal método de investigação buscaria uma paridade de armas entre a acusação e o investigado, ao permitir a obtenção dos meios de prova importantes para a defesa.
Assim, serviria para efetivar a busca da verdade real, assegurando ao imputado, desde o início da persecução penal, a possibilidade de contra-argumentar a acusação que lhe foi feita, podendo, inclusive, evitar a própria instauração da ação penal.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. ASPECTOS RELACIONADOS À INVESTIGAÇÃO CRIMINAL (DEFENSIVA)
A persecução penal, de titularidade do Estado, enquanto atividade estatal de proteção penal, abrange dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal.
Do ponto de vista técnico e jurídico, a investigação criminal seria um procedimento formado por atos administrativos que visam a elucidar um fato delitivo. Para muitos, a investigação criminal pode ser definida como a atividade estatal de persecução criminal destinada a preparar a ação penal, que apresenta caráter preparatório e informativo, pois o seu objetivo é levar ao órgão encarregado da ação penal os elementos necessários para a dedução da pretensão punitiva em juízo.
Ao contrário do aduzido por vários, a investigação criminal não teria a finalidade de buscar comprovar a infração penal. Assim, sua essência não seria a de ratificar a tese acusatória, mas a de cercar-se de elementos informativos para se verificar a robustez da imputação, evitando processos criminais desnecessários.
Nesse sentido, a investigação criminal é prévia ao processo penal em si, possuindo o objetivo de fundamentar a instauração da ação penal ou, em caso de imputações infundadas, evitar o recebimento da peça acusatória, estando fundamentada nos pilares da instrumentalidade e da autonomia.
E essa concepção instrumental, para parte da doutrina que assim a concebe, proporcionaria duas funções basilares da investigação criminal, que seriam a função de preparação e a de preservação.
A função preservadora busca evitar uma instauração sem elementos de justa causa da ação penal. Já a preparatória busca resguardar e conservar os meios de prova essenciais para o futuro deslinde processual.
Também cabe destacar que a investigação criminal é marcada pela autonomia, existindo de forma independente do próprio processo. Assim, existiriam casos em que a imputação penal seria descabida e caberia o arquivamento da investigação, sem mesmo haver o início da relação jurídica processual.
Em espécie, a instrução preliminar deve se estruturar possibilitando não apenas a comprovação de culpabilidade do imputado, mas também a possibilidade de afastar a sua eventual imputação, não havendo propriamente uma acusação de forma específica.
Assim, não há ou deveria haver uma acusação embutida dentro da fase investigatória. Nas palavras de Aury Lopes Jr, “a investigação é que permitirá a transição entre a mera possibilidade (notícia-crime) para uma situação de verossimilitude (imputação/indiciamento) e posterior probabilidade (indícios racionais), necessária para adoção de medidas cautelares e para receber a ação penal” [1].
Nesta seara, deduz-se que a investigação criminal é uma fase de cognição sumária, ou seja, a atividade instrutória está limitada à obtenção dos elementos indispensáveis para a comprovação do cometimento de delito [2].
Em determinada situação, os elementos de convicção podem ser obtidos por um particular, como por exemplo o defensor do imputado, do ofendido ou de qualquer outra parte, fora dos autos de um procedimento administrativo conduzido por autoridade pública. A isso se denomina investigação privada.
Por conseguinte, a investigação privada defensiva deve obedecer às limitações impostas a todo tipo de investigação privada, principalmente devido à falta de poder de polícia, como se verificará adiante.
No que diz respeito à força probante, os atos de investigação não se confundem com atos de prova, porque não observam as garantias fundamentais da publicidade, do contraditório e da ampla defesa. Logo, não podem ser utilizados para amparar a sentença. Ou seja, os elementos informativos de provas são colhidos na fase investigatória, sem a participação dialética das partes. Prestam-se para a fundamentação das medidas cautelares, bem como para a estruturação de uma acusação.
As provas, por sua vez, têm o seu regime jurídico ligado ao contraditório judicial. São aquelas produzidas com a participação do acusador e do acusado e mediante a direta e a constante supervisão do julgador.
2.2. CONTEXTO HISTÓRICO
No curso da história, a investigação criminal assumiu várias formas, com diferentes cargas de poderes e deveres para o imputado, mas sempre com o propósito comum de obter dados sobre a materialidade e a autoria de eventual prática delitiva, amoldando-se de acordo com o sistema processual penal existente (inquisitório, acusatório ou misto), que, por sua vez, se estruturou conforme o modelo estatal vigente ao contexto da época.
Apesar de ser consolidada em outros países, como a Itália, no Brasil só começou a ganhar certo destaque em 2018, com o Provimento 188/2018, pelo Conselho Federal da OAB.
É importante que se diga que o Conselho Federal da OAB não criou uma prerrogativa para a advocacia por meio do provimento que regulamenta a investigação defensiva, pois, nos limites legais, a advocacia é livre para diligenciar ou operar conforme seja melhor para a defesa do acusado.
2.3. CONCEITO E BASE NORMATIVA
Em seu Artigo 1º, o Provimento nº 188/2018 do CFOAB define a investigação defensiva como o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para tutela de direito de seu constituinte.
Sendo uma espécie do gênero “investigação preliminar”, a investigação defensiva é um importante instrumento da defesa na prevenção de erros jurisdicionais e que pode evitar também que inocentes figurem injustamente na qualidade de investigados, minimizando, dessa forma, as indesejadas injustiças, uma vez que se amplia, com essa prática, o campo de análise em qualquer uma das fases da persecução criminal.
Esta modalidade vem sendo cada vez mais discutida pela doutrina jurídica nacional e estrangeira, por ser vista como forma de compensar o movimento em favor da atribuição de poderes investigatórios ao Ministério Público.
Nesse sentido, nas lições de Antonio Scarance Fernandes: “A prática evidenciou que o Ministério Público, quando encarregado de dirigir ou supervisionar a investigação, foca sua atenção na obtenção de elementos que possam sustentar a sua futura acusação o que acaba prejudicando a pessoa suspeita, tendo em vista o risco de desaparecerem informes importantes para a sua defesa e demonstração de sua inocência”.
Do mesmo modo, José Barcelos de Souza ressalta a necessidade de se atribuir poderes investigatórios ao imputado para contrabalançar a investigação ministerial. Nesse sentido: “o que muito pesa, porém, em favor de uma regulamentação já, entre nós, de direitos investigatórios da defesa, é o fato de que aqui o Ministério Público tem investigado, mas, para acusar, sem qualquer comprometimento, por força de lei, com os interesses da defesa, e por isso mesmo completamente à revelia dela, à qual não é garantida sequer a faculdade de requerer diligências, diferentemente do que ocorre no inquérito policial.
Assim, como forma de assegurar isonomia entre as partes na persecução penal e o direito de defesa do imputado, a investigação defensiva deve ser admitida tanto nos ordenamentos que adotam a investigação ministerial quanto a policial.
De acordo com o referido Provimento, cabe destacar, também, que poderá o advogado, na condução da investigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, determinar a elaboração de laudos e exames periciais, e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição.
Além disso, na realização da investigação defensiva, o advogado poderá valer-se de colaboradores, como detetives particulares, peritos, técnicos e auxiliares de trabalhos de campo.
Durante a realização da investigação, o advogado deve preservar o sigilo das informações colhidas, a dignidade, privacidade, intimidade e demais direitos e garantias individuais das pessoas envolvidas.
Por sua vez, o advogado e outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade competente os fatos investigados. E eventual comunicação e publicidade do resultado da investigação exigirão expressa autorização do constituinte.
Por fim, estabelece o regramento da OAB que as atividades descritas neste referido Provimento são privativas da advocacia, compreendendo-se como ato legítimo de exercício profissional, não podendo receber qualquer tipo de censura ou impedimento pelas autoridades.
Pelo exposto, pois, é que a partir de um regramento realizada pela OAB se estruturou um modelo de investigação defensiva, mas que ainda precisa ser reconhecido de maneira mais ampla e pelos órgãos persecutórios penais.
2.4. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA APLICADA NO CURSO DAS INVESTIGAÇÕES POLICIAIS
Nos aspectos práticos, tal método pode auxiliar para esclarecer os fatos e é um relevante instrumento na defesa do investigado, do acusado ou do recorrente, no momento em que se confrontam os elementos probatórios do processo com a verdade real, não servindo-se somente de instrumentos outros. Assim, cabe notar que, em determinadas situações, a narração de um pressuposto fato tido por ilícito pode levar à situação em que, ao final, descubra-se acerca do fechamento da ausência de responsabilidade criminal do imputado.
De acordo com Francisco da Costa Oliveira, podem ser citados alguns benefícios da investigação defensiva, a saber: a) maior profundidade na investigação das circunstâncias favoráveis ao imputado; b) descondicionamento das investigações, normalmente dirigidas no sentido acusatório; c) intervenção direta na fixação preliminar do objeto do processo e d) maior antecipação das questões fáticas e jurídicas convenientes à defesa.
Ocorre que, na investigação defensiva, é o representante do imputado que conduz o norte da atuação investigatória, com ampla separação em relação aos entes públicos, de forma a levantar elementos informativos lícitos em favor do acusado.
De outro lado, no inquérito policial, o defensor não possui o mesmo espaço, uma vez que a direção das investigações cabe à Autoridade Policial, sob a fiscalização do Ministério Público e da Autoridade Judiciária[3].
Assim, é cabível a a atuação do acusado no âmbito do inquérito policial, em atenção ao direito de defesa, mas não se trata de defesa ampla e geral, mas sim limitada ao resguardo dos interesses mais relevantes do suspeito.
Na seara da investigação defensiva, a qual segue um rumo de forma segregada da investigação pública, cabe ao defensor traçar a estratégia investigatória, sem qualquer tipo de subordinação às autoridades públicas, devendo apenas respeitar os critérios constitucionais e legais de obtenção de prova, para evitar questionamentos acerca da sua licitude e do seu valor. Assim, ao passo que na pública o defensor é um partícipe do procedimento, na privada assume o causídico um papel relevante.
Do contexto apresentado, extraem-se os requisitos essenciais da investigação defensiva, quais sejam a) prática de atos de investigação pelo defensor do imputado, com ou sem o apoio de auxiliares técnicos; b) em qualquer momento da persecução penal; c) fora dos autos da investigação pública e como contraponto a esta; e d) com o objetivo de reunir elementos de convicção lícitos e relevantes para a defesa do imputado.
Cabe ressaltar, contudo, que por a investigação criminal defensiva uma espécie de investigação privada, ela não goza de imperatividade. Fato: o defensor não tem poderes coercitivos no exercício de suas atividades investigatórias e, por isso, depende do consentimento do titular do direito para obter determinada informação.
Aqui um questionamento oportuno: “como o ordenamento jurídico brasileiro tem enfrentado a temática da investigação defensiva no curso das investigações policiais?”.
Atualmente, o inquérito policial está regulado nos artigos 4º a 23 do CPP. Importante observar que tais normas surgiram em pleno regime ditatorial, no qual se defendia a eficiência da persecução criminal a todo o custo e o imputado era tratado como mero objeto da investigação.
Pelo exposto, toda a sistemática legal do inquérito policial, como se examinará adiante, deve ser interpretada em harmonia com a Constituição de 1988, de inspiração liberal e garantista. Em regra, o ordenamento jurídico brasileiro prevê o inquérito policial como principal modelo investigatório de fatos potencialmente criminosos. Sinteticamente, é possível definir o inquérito policial como “atuação investigatória da Polícia Judiciária, com a finalidade de apurar a materialidade da infração penal cometida e respectiva autoria”.
De forma mais direta, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo conceituou o inquérito policial como “procedimento cautelar, de natureza administrativa, quanto à forma, e judiciária, quanto à finalidade, por meio do qual se ultima investigação acerca da materialidade e autoria de fato supostamente criminoso”.
De início, entende-se que o inquérito policial é procedimento – e não processo – por não haver contraditoriedade perfeita na sequência dos atos. Ademais, é procedimento formal, pois devem ser observadas algumas regras na realização de cada ato e existe uma ordem para início (portaria ou auto de flagrante da Autoridade Policial, requisição do Juiz ou do Ministério Público, ou requerimento do ofendido ou de seu representante), desenvolvendo-se com as demais diligências que se fizerem necessárias e encerrando-se com um relatório final.
Em segundo lugar, o inquérito policial é procedimento cautelar pré-processual, pois serve para a captação e preservação de meios de prova da materialidade e da autoria delitiva, a serviço de eventual ação penal e é preliminar ao processo, embasando a sua instauração ou impedindo acusações descabidas.
José Frederico Marques destaca a cautelaridade do inquérito policial, na medida em que “a investigação não passa do exercício do poder cautelar que o Estado exerce, através da polícia, na luta contra o crime, para preparar a ação penal e impedir que se percam os elementos de convicção sobre o delito cometido”.
Em terceiro lugar, sob uma ótica formal, o inquérito policial é procedimento administrativo, porque dirigido pela Polícia Judiciária, ente estatal integrante da Administração Pública, vinculado ao Poder Executivo, que pratica atos de caráter administrativo.
Em sua tese, André Machado ressalta que “o inquérito policial começa com mero juízo de possibilidade a respeito da imputação constante da notícia de crime. Para o início da persecução penal, não é preciso que o crime se apresente na integridade de seus elementos constitutivos. Desde que uma conduta comissiva ou omissiva possa enquadrar-se em tipo abstrato descrito na lei penal, torna-se ela relevante para a atividade persecutória do Estado. Basta, por isso, à autoridade policial a notícia de um fato típico, para que inicie as investigações em que se corporifica o momento inicial da persecutio criminis”.
Logo, o inquérito policial, enquanto espécie de investigação criminal, deve se pautar por uma cognição sumária dos fatos aduzidos na notícia de crime, com a finalidade de atestar a “fumaça de cometimento do delito”.
Assim, o inquérito policial deve averiguar a provável ocorrência do fato criminoso e sua autoria, em virtude da sua própria natureza de instrução prévia e não definitiva.
Cabe também destacar aspectos relacionados à imposição probatória desse método investigativo, como se verá abaixo.
O inquérito policial, como visto, destina-se a colher elementos de convicção acerca de uma prática delitiva, que servem para fundamentar as decisões interlocutórias proferidas nessa fase, bem como justificar eventual ação penal ou arquivamento do feito.
De toda sorte, cabe destacar o peso probatório desse método investigativo, o qual, como um procedimento preliminar, buscaria atribuir informações ao dominus litis para forma a sua justa causa penal. De igual modo, parte da doutrina defende que, num caso concreto, o magistrado poderia se utilizar de elementos colhidos na fase investigatória inicial para dar robustez ao convencimento já formado.
Fato é que, tal entendimento, não obstante seja contraditório e destoe da própria natureza jurídica do inquérito policial, acabou sendo absorvido pelos Tribunais pátrios. Segundo o posicionamento jurisprudencial majoritário, é possível a utilização dos dados oriundos do inquérito policial para embasar a condenação, desde que não sejam os únicos elementos de prova a formar o convencimento judicial (Machado).
Por outro lado, defende-se que alguns eventuais vícios presentes na instrução criminal do inquérito não poderiam contaminar o processo penal, visto que que naquele ainda não estaria formado o enlace o contraditório.
Entretanto, tal raciocínio não deve prevalecer, visto que tais argumentos são contraargumentativos. Se os elementos probatórios decorrentes do inquérito policial são aproveitados na ação penal, ele deixa de ser apenas informativo e as irregularidades porventura existentes na fase preliminar maculam também o processo.
A Lei n.º 11.690, de 09/06/08 alterou a redação do artigo 155 do CPP e proibiu a formação do convencimento judicial apenas com os dados oriundos da investigação, excetuadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. A contrario sensu, permitiu-se a utilização dos atos de investigação na fase judicial, se não consistirem nos únicos elementos de convicção da Autoridade Judiciária. Tanto que a nova lei não previu a exclusão física do inquérito policial dos autos do processo.
Assim, a modificação legislativa mostrou-se contraproducente e, o que é pior, contrária às garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, pois permitiu o aproveitamento dos atos de investigação no processo.
Visto todo esse contexto é que a investigação criminal defensiva surge para buscar garantir o equilíbrio entre as partes em um processo penal acusatório, ao atuar ainda na etapa de investigação preliminar policial.
É que o sistema acusatório deve velar por algumas regras e princípios, tais como: a) a repartição de poderes processuais, b) a ativação da causa pelas partes; c) a independência e a imparcialidade do Juiz; d) a liberdade de defesa e igualdade de posição entre as partes; e) o contraditório; f) a publicidade e oralidade do procedimento; g) presunção de inocência; h) e a livre apresentação de provas pelas partes.
No ponto que mais de perto interessa ao tema da investigação defensiva, passa-se ao exame dos princípios da igualdade, do contraditório e da ampla defesa, corolários do devido processo legal em um sistema processual penal de partes.
No âmbito processual penal, o princípio da igualdade garante, de um lado, o tratamento paritário aos que se encontram em posição jurídica idêntica no processo e, de outro, as mesmas oportunidades para as partes comprovarem os seus argumentos.
A igualdade justifica e dá valor ao processo criminal e seu procedimento. Apenas com o cumprimento desse postulado é que se pode alcançar a verdade e, por conseguinte, realizar a Justiça penal.
Tal princípio relaciona-se com o contraditório, na medida em que “coloca as duas partes em posição de similitude perante o Estado e, no processo, perante o juiz. Não se confunde com o contraditório, nem o abrange. Apenas se relacionam, pois ao se garantir a ambos os contendores o contraditório também se assegura tratamento igualitário”. Tanto que é possível existir contraditório onde há desigualdade.
O contraditório, por sua vez, e antes de relevante garantia processual, constitui um dos elementos essenciais da definição de processo.
De fato, se na sua acepção lógico-filosófica o contraditório é entendido como o contraste entre posições assertivas opostas, dirigidas a se elidirem reciprocamente, no esquema processual essa contraposição só adquire sentido quando destinada à persuasão de um terceiro imparcial, ainda que não necessariamente inerte ou passivo; assim, embora se desenvolva entre dois polos dialéticos, o contraditório processual implica uma relação triádica, que constitui afinal a essência da ideia de processo.
Em suma, dá-se destaque à função social do contraditório, que serve como fator legitimador da decisão a ser tomada. Vale dizer: a possibilidade de influenciar o resultado do processo é que leva as partes a aceitarem uma solução futura incerta.
É um super princípio que encontra base constitucional, sendo postulado no artigo 5º, LV, da CF, e abrange dois aspectos: ciência e participação.
O primeiro refere-se à necessidade de se comunicar previamente as partes da realização de um ato processual. O segundo diz respeito à faculdade das partes de participar ativamente dos atos processuais, com o objetivo de influenciar o convencimento do julgador.
Assim, pode-se conceituar o contraditório como o direito de cada uma das partes de ser informado e de participar dos atos processuais, em contraposição aos argumentos sustentados pela outra parte. Ou seja, a ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los.
Por seu turno, a ampla defesa se define como direito do acusado à tutela jurídica de sua liberdade. Cuida-se, portanto, de contrariedade à acusação, sua repulsa ou antítese.
Cabe ainda destacar que a ampla defesa se divide em defesa técnica e autodefesa. A primeira consiste na assistência jurídica ao imputado por defensor de sua confiança, sendo considerada indisponível, pois essencial para garantir a igualdade, o contraditório e a imparcialidade do Juízo.
Já a autodefesa é a resistência pessoal do imputado à acusação que lhe foi dirigida e, ao contrário da defesa técnica, é renunciável. Contudo, o Magistrado tem o dever de facultar ao imputado o exercício desse direito.
Vicente Greco Filho sintetiza os meios inerentes à ampla defesa: a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e rebatê-la; d) ter defesa técnica; e e) poder recorrer da decisão desfavorável.
Antes da promulgação da Constituição da República de 1988, prevalecia o entendimento de que era inadmissível o contraditório e o direito de defesa no inquérito policial, por ser procedimento inquisitório.
Com a edição do atual texto político, incrementou-se a discussão a respeito da incidência do contraditório e da ampla defesa na fase investigatória, devido à confusa redação do artigo 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
O que se entende neste trabalho é que o direito de defesa, em seus dois aspectos de defesa técnica e autodefesa, também incidiria na fase investigatória, encontrando respaldo não só no texto constitucional, mas também no artigo 14 do CPP, que permite a requisição de diligências pelo indiciado.
É que tem o indiciado interesse em evitar uma acusação equivocada e, sobretudo, um decreto de prisão, que pode fundamentar-se em peças do inquérito.
Em realidade, por conta da própria finalidade do inquérito policial, é inviável a existência do contraditório nessa fase. É que o sucesso de alguns atos de investigação depende do sigilo e da surpresa na sua realização, o que é incompatível com o citado princípio constitucional.
Por tais razões, os dados obtidos na persecução prévia devem prestar apenas para embasar as decisões interlocutórias exaradas nessa fase e o juízo sobre a viabilidade da acusação. Tais elementos não podem influenciar o julgamento do caso pela Autoridade Judiciária, razão pela qual, repise-se, o inquérito policial deve ser excluído dos autos do processo criminal.
Deduz-se, do acima exposto, que um modelo processual penal acusatório deve se nortear pelos direitos fundamentais de igualdade e de defesa, os quais incidem em todo o rito persecutório, mesmo na fase preliminar. A investigação defensiva decorre de tais direitos e, mais do que disso, serve para garantir a sua efetiva aplicação.
Nessa ótica, é possível vislumbrar a investigação defensiva como garantia fundamental do imputado, inerente a um processo de partes, na medida em que constitui instrumento para a concretização dos direitos constitucionais de igualdade e de defesa.
O direito de defesa, que se desdobra nos direito à prova e à investigação, preceitua a possibilidade de reagir aos atos da parte contrária com os meios de prova admitidos em Direito.
Assim, por meio da investigação defensiva, faculta-se ao imputado exercer ativamente o seu direito de defesa, desde a fase preliminar, recolhendo os dados indispensáveis à comprovação de seus argumentos e que podem evitar o advento de ação penal.
Diante disso, um verdadeiro e justo processo penal acusatório deve assegurar que acusação e defesa tenham oportunidades equânimes para sustentar as suas teses, inclusive durante a instrução preliminar. Até porque, nesta fase, já existe imputação em sentido amplo e, por conseguinte, o inegável interesse do imputado em demonstrar a sua inocência.
Logo, se um ordenamento jurídico prevê procedimento investigatório público, de cunho nitidamente acusatório, é imprescindível que admita também a investigação autônoma do crime pela defesa.
Nesse sentido, a partir do estudo dos aspectos substanciais e procedimentais relacionados à investigação defensiva, sugere-se de lege ferenda a incorporação deste instituto ao processo penal brasileiro.
Como se viu, a investigação defensiva decorre do princípio da isonomia e do direito de defesa, inerentes ao sistema jurídico acusatório, pois permite ao imputado, em igualdade de condições com a acusação, buscar elementos de prova de descargo.
É que, em regra, o inquérito policial deveria ser instrumento para a isenta apuração dos fatos relatados na notícia de crime, pois é dirigido pela Polícia Judiciária, órgão pretensamente imparcial e desvinculado das pretensões de ambas as partes na persecução penal.
Ocorre, entretanto, que o inquérito policial sempre foi voltado, a partir de uma perspectiva histórica e mesmo cultural, muito mais voltado à formação do entendimento e da justa causa acusatória do que como elementos de defesa.
Em virtude desse viés acusatório que sempre esteve presente nesse procedimento, é de se colocar, para seus defensores, que a legislação processual penal pátria precisa implementar e prever normativamente a investigação defensiva.
2.5. PARALELO COM O MINISTÉRIO PÚBLICO
Pela teoria dos poderes implícitos, o Ministério Público tem reconhecida sua legitimidade para realizar investigações criminais, em conformidade com entendimento pacífico do STF, dado que é dele a titularidade da ação penal pública. Nesse sentido, a instituição pode realizar apurações na fase pré-processual sem se limitar aos trabalhos realizados pela polícia civil.
Embora sempre tenha havido uma certa resistência de outras instituições em conceber a investigação privada, tem surgido algumas vozes reconhecendo a necessidade de se discutir a temática, de forma técnica e ponderada.
Na visão do Promotor de Justiça Marcus V. A. de Oliveira[4], é “justamente em decorrência dessa intervenção mais proativa do Ministério Público na investigação criminal, que gerou uma nova demanda para a advocacia – privada ou pública, no caso da Defensoria Pública -, tornou-se mais frequente na doutrina e na jurisprudência nacionais a discussão sobre o papel da defesa na fase pré-processual. Com isso, chegou-se ao ponto de pensar mais a sério sobre a chamada investigação criminal defensiva e de perceber-se maior interesse da advocacia sobre esse segmento de atuação profissional”.
A investigação criminal defensiva, pois, não se confunde com a participação do investigação no procedimento investigatório desenvolvido pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público.
Nessa toada, apesar de ambos se caracterizarem como manifestação do direito de defesa, ao participar do inquérito policial, o advogado está delimitado aos rumos dados à investigação pela autoridade policial; de outra banda, na investigação defensiva, que se desenvolve de maneira independente do inquérito policial – e acrescentamos, também da investigação direta do Ministério Público – incumbe ao defensor delimitar a estratégia investigatória, não estando vinculado às autoridades públicas, devendo apenas observar os limites constitucionais e legais na identificação de fontes de prova[5].
Apesar de reconhecer a investigação criminal defensiva, DE OLIVERIA defende que o Provimento nº 188/2018 da CFOAB, outrora apresentado nesta obra, apresenta vício de inconstitucionalidade formal, na medida em que não caberia à instituição OAB, uma autarquia sui generis, o poder de legislar sobre quaisquer assuntos que inovem na ordem jurídica.
Defende assim, pois, o surgimento de uma regulamentação “legislativa” para disciplinar a matéria, que também é do interesse da Defensoria Pública.
Devendo ser aceita como uma atividade lícita, tal modalidade não deve ser encarada como a limitada participação do investigado na investigação oficial, seja o inquérito policial ou mesmo o PIC.
Em suma, “deve-se sempre ter em mente que o fim último de qualquer investigação criminal é a melhor apuração dos fatos, com vistas ao resguardo do direito da coletividade à segurança pública, mas também das liberdades fundamentais da vítima e do investigado. Por isso, deve-se orientar e incentivar os membros do Ministério Público a lidar com a investigação criminal defensiva, o que pressupõe a realização de cursos de capacitação em suas escolas superiores” (DE OLIVEIRA).
3. CONCLUSÃO
Por todos os fundamentos trazidos ao longo deste trabalho, observa-se que a investigação criminal defensiva já passou do tempo de ser efetiva e concretamente implementada via ordem legislativa robusta.
De fato, o imputado tem o direito fundamental de defesa, do qual se extraem os direitos à prova e à investigação. O direito de defesa é essencial para garantir a regularidade da própria persecução penal.
Renato Brasileiro aponta alguns objetivos da investigação criminal defensiva, a saber: a) comprovação do álibi ou de ouras razões demonstrativas da inocência do imputado; b) desresponsabilização do imputado em virtude da ação de terceiros; c) exploração de fatos que revelam a ocorrência de causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade; d) eliminação de possíveis erros de raciocínio a quem possam induzir determinados fatos; e) revelação da vulnerabilidade técnica ou material de determinadas diligências realizadas na investigação pública; f) exame do local e a reconstituição do crime para demonstrar a impropriedade das teses acusatórias; g) identificação e localização de possíveis peritos e testemunhas.
O próprio artigo 396-A do CPP estipula que o conteúdo da resposta do imputado deve compreender de forma ampliada tudo o que o mesmo puder trazer em sua defesa, podendo “argüir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário”.
Nesse sentido é que se denota a relevância desta defesa preliminar para o imputado, pois é seria esse o passo do processo adequado para que o imputado possa trazer aos autos as informações e os elementos que entenda aptos a inviabilizar o recebimento da peça acusatória. A finalidade, portanto, é de se prevenir que eventuais imputações desprovidas de justa causa ou infundadas prossigam produzindo efeitos jurídicos.
Por todo o exposto no trabalho, defende-se a linha de que se tornou condição importante a estipulação legislativa de que a investigação defensiva seja previsto em nosso ordenamento, permitindo ao imputado buscar reunir informações que possam servir para embasar sua defesa, partindo do início da persecução penal, qual seja ainda a fase do inquérito policial.
REFERÊNCIAS
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SOUZA, José Barcelos de. “Poderes da defesa na investigação e investigação pela defesa”, notas referentes à palestra proferida no “IV Jornadas Brasileiras de Direito Processual Penal”, realizado no município do Guarujá/SP, nos dias 06 a 09 de novembro de 2004, p. 02. Disponível na internet: “www.iamg.org.br”.
[1] LOPES Jr., Aury, Sistemas de investigação preliminar no Processo Penal, p. 41.
[2]https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-27082009-114835/publico/Andre_Augusto_Mendes_Machado_Dissertacao.pdf. Acesso em 18/09/23
[3] MACHADO, André Augusto Mendes.
[4] DE OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim. Ministério Público e investigação criminal defensiva: desafios e algumas propostas. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 76, Abr./Jun. 2020
[5] DE OLIVEIRA, Marcus Vinicius Amorim.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
CHAVES, Bruno Haddad Souza. A investigação criminal defensiva durante as apurações policiais. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, Educação, Literatura, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2023, n. 1, aprovado e publicado em 10/11/2023. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-investigacao-criminal-defensiva-durante-as-apuracoes-policiais/. Acesso em: 24/04/2025.