Propriedade, Vizinhança e Conflitos Urbanos: Um Estudo sobre a Função Social no Direito Brasileiro

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

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Revisor: Eliézer Guedes de Oliveira Junior em 2025-01-21 14:05:14

16/01/2025

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Melanie Liesenberg

Curriculo do autor: Melanie Liesenberg Formação - Ensino médio no Colégio Visconde de Porto Seguro I, concluído em 2008; - Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conclusão em 27 de janeiro de 2016; - Conclusão do 1º Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” – Especialização em Direito Civil Patrimonial, da Escola Paulista da Magistratura, aprovado pelo Parecer n° 237/2018, do Conselho Estadual de Educação. Experiência profissional - Estágio na área de direito tributário no escritório Coimbra, Focaccia, Lebrão e Advogados, no período de julho de 2011 a novembro de 2011; - Estágio na 4ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional de Santo Amaro, no período de agosto de 2012 a junho de 2013; - Estágio nas áreas de direito do consumidor e trabalhista no escritório Tanaka, Oka e Izá Sociedade de Advogados, no período de fevereiro de 2014 a agosto de 2015; Escrevente - Efetivo exercício como Escrevente técnico judiciário no TJ-SP (24/10/2016 a ); Efetivo exercício como assistente técnico judiciário no TJSP ( até a presente data) Idiomas - Português: leitura/escrita/conversação/tradução – fluentes; - Inglês: leitura/escrita/conversação/tradução - avançadas; - Alemão: leitura/escrita/conversação/tradução – fluentes; Outras informações - Ensino fundamental e ensino médio cursados em currículo bilíngue (português e alemão); - Aprovada no Deutsches Sprachdiplom I e II; - Aprovada no XVII Exame da Ordem dos Advogados do Brasil;

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Resumo

O artigo explora o direito de propriedade, destacando sua previsão na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental que evoluiu de um conceito absoluto para um princípio que equilibra interesses coletivos e individuais. Essa transição é influenciada pela necessidade de coexistência pacífica e pela restrição imposta pelos direitos de vizinhança, promovendo uma sociedade justa e harmoniosa, herdada desde Roma Antiga. Na modernidade, a função social da propriedade ocupa um lugar central, refletindo valores de dignidade humana e justiça social. Esse princípio constitucional, um fruto do Pós-Positivismo, transforma a propriedade em uma função vinculada ao bem-estar coletivo e ambiental, conforme estipulado na Carta Magna brasileira. As restrições derivadas das necessidades sociais, incluindo o ordenamento urbano e a conservação ambiental, ajustam o exercício desses direitos aos requisitos constitucionais. A análise do direito de posse revela debates clássicos sobre sua natureza, culminando na sua classificação como um direito com implicações sociais substanciais. A posse deve manifestar-se de acordo com a função social, convergindo em orientações comunitárias para manter a socialidade e evitar conflitos. Finalmente, a doutrina da função social do direito destaca a relevância de adaptá-lo às mudanças sociais para garantir paz e justiça. O artigo concretiza a ideia de que a solução de conflitos deve basear-se em decisões realistas, convergindo em direção a uma sociedade menos desigual e mais democrática, promovendo o convívio equilibrado nos crescentes ambientes urbanos e condominiais. A pacificação social emerge como um objetivo primário, guiando a coletividade em direção a diálogos e convívios harmoniosos, resgatando e fortalecendo o pacto social.

Palavras-Chave

Direito de propriedade. Posse. Constituição Federal. Função social. Direitos fundamentais. Vizinhança. Justiça social. Dignidade humana. Urbanização. Pós-Positivismo. Posse. Direito Civil. Sustentabilidade ambiental. Conflitos urbanos. Harmonia social. Desenvolvimento sustentável.

Abstract

The article explores property rights, focusing on their provision in the 1988 Federal Constitution as a fundamental right that evolved from an absolute concept to a principle balancing collective and individual interests. This transition is guided by the need for peaceful coexistence and the restrictions imposed by neighborhood rights, promoting a just and harmonious society, rooted in Ancient Rome. In modernity, the social function of property takes a central role, reflecting values of human dignity and social justice. This constitutional principle, a product of Post-Positivism, turns property into a function tied to collective and environmental welfare, as stipulated in Brazil's Magna Carta. Restrictions derived from social needs, including urban planning and environmental conservation, align the exercise of these rights with constitutional mandates. The analysis of possession rights reveals classic debates on their nature, culminating in their classification as a right with substantial social implications. Possession must manifest according to its social function, converging in community-oriented guidelines to maintain sociality and prevent conflicts. Finally, the doctrine of the social function of law highlights the importance of adapting to social changes to ensure peace and justice. The article solidifies the idea that conflict resolution should be based on realistic decisions, driving towards a less unequal and more democratic society, promoting balanced coexistence in growing urban and condominium environments. Social pacification emerges as a primary goal, guiding the community towards dialogues and harmonious living, rescuing and strengthening the social contract.

Keywords

Property rights. Possession. Federal Constitution. Social function. Fundamental rights. Neighborhood. Social justice. Human dignity. Urbanization. Post-Positivism. Possession. Civil law. Environmental sustainability. Urban conflicts. Social harmony. Sustainable development.

1. Introdução.

 O direito de propriedade está previsto no caput[1] e no inciso XXII[2] do artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Dentre os direitos fundamentais assegurados pela Magna Carta, o da propriedade se encontra em destaque.

Historicamente, a propriedade nasce como um conceito absoluto, tendo sido dessa forma prevista nas primeiras Constituições, que positivavam o direito de propriedade como um direito natural do ser humano. Atualmente, entretanto, como princípio constitucional, o direito de propriedade deve ser ponderado, tendo em vista a existência de outros direitos do mesmo quilate que com ele podem, casuisticamente, confrontar.  Dentre as restrições ao exercício do direito de propriedade, as regras que constituem o direito de vizinhança encontram relevo, na medida em que têm como objetivo evitar conflitos de interesses entre proprietários vizinhos.

Apesar da atualidade da necessidade de positivação de regras e princípios visando à disciplina de situações provenientes da vizinhança, como base para a construção de paz social e de uma sociedade justa, referidas situações remontam à Roma Antiga, conforme prenota Ulderico Pires dos Santos:

“De notar-se que o princípio não é novo. Desde o período de Augusto, que precedeu a vinda de Cristo e o remate da República Romana, prevaleceu o ius gentium, comum a todos os povos do Mediterrâneo, sobrevindo o comum et aequum e a boa-fé. De lá pra cá, após a construção do direito magistratural e sempre sob a influência do ius gentium a preocupação com o respeito alheio foi num crescendo contínuo, tendo como ponto de partida o ius civile. Posteriormente surgiu o direito clássico, que foi até Diocleciano, sendo o direito magistratural substituído pela cognitio extra ordinem, encampada pelo Imperador, mas a preocupação sempre foi a mesma.” [3]

O uso da propriedade constitui um terreno fértil para a manifestação de conflitos humanos. Hodiernamente, a verticalização das cidades e aglomeramentos acarretam situações de vizinhança que exigem maior regramento a respeito dos direitos de vizinhança, na medida em que a realidade de proximidade física altera radicalmente o relacionamento entre os indivíduos residentes de centros urbanos, especialmente entre vizinhos residentes de condomínios edilícios.

2. Função social da propriedade. 

Com a formação do Estado Constitucional de Direito, cuja consolidação ocorreu ao longo das últimas décadas do século XX, as Constituições, que antes se limitavam a prescrever os fundamentos da organização do Estado e do Poder, passaram a prever também valores especialmente relativos à dignidade da pessoa humana. A Constituição passa a ter forte conteúdo axiológico, prevendo valores como os de justiça social, moralidade e equidade.

Como marco filosófico, que surge após o fim da segunda guerra mundial, o Pós-Positivismo reconhece a centralidade dos direitos fundamentais, reaproximando o Direito da Ética e reconhecendo a centralidade dos direitos fundamentais. A Constituição passou a ocupar lugar central no ordenamento jurídico e, como um dos aspectos decorrentes da constitucionalização do Direito, surge a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que impõe a aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares.

Nesta ótica, despontou o denominado Direito Civil Constitucionalizado. A partir de então, o grande centro das preocupações, inclusive no que atine às relações entre os particulares, deixou de ser a propriedade, passando a constituir a dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil[4], parâmetro basilar do Direito Civil. A respeito do Direito Civil Constitucional, explica Gustavo Tepedino:

“Diante da promulgação do Código, deve-se construí-lo interpretativamente, com paixão e criatividade, no sentido de buscar a sua máxima eficácia social, harmonizando-o com o sistema normativo civil-constitucional. Um novo tempo não se realiza com a produção de leis novas, desconhecendo-se a identidade cultural da sociedade. É preciso que se ofereça aos profissionais do Direito, com esforço e inteligência, a interpretação mais compatível com a Constituição da República, com os valores da sociedade, com a experiência do Direito vivo, forjado, em grande parte, pelos magistrados. Assim será possível verificar criticamente os aspectos que poderiam estar melhor redigidos, ou que poderiam estar regulados de outra maneira, procurando, de todo modo, esgotar as possibilidades hermenêuticas de lege lata.”[5]

Nesse contexto, se insere a análise a respeito da função social da propriedade. No ordenamento jurídico brasileiro, a função social da propriedade foi pela primeira vez positivada pela Constituição Federal de 1934, a qual garantia, em seu artigo 113, que “é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar”.

A Constituição Federal de 1988 consagra os direitos humanos, que são direitos fundamentais, e, no caput do artigo 5° e seus incisos XXII e XXIII, dispõe:

 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”.

 A propriedade pode ser definida como o direito subjetivo que assegura o monopólio da exploração de um bem e de fazer valer esta faculdade contra todos que eventualmente queiram ao direito de propriedade se opor. De acordo com Orlando Gomes, a propriedade é “a soma de todos os direitos possíveis que pertencem ao proprietário sobre sua coisa, quais são os da posse, uso, gozo e livre disposição.” [6]

Entretanto, por constituir o direito de propriedade o mais amplo dos direitos subjetivos patrimoniais do homem, ele sofre restrições ao seu exercício, impostas não só pelo interesse coletivo, como previsto em âmbito constitucional, mas também na esfera do interesse individual, sendo que, dentre as restrições individuais, destacam-se as determinadas pelas relações de vizinhança, que também asseguram o cumprimento da função social da propriedade. Nesse sentido, afirma Orlando Gomes:

 “A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar uma função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.” [7]

De tal modo, a proteção da propriedade e o princípio da função social exigem aplicação harmônica. A propriedade deve ser exercida de tal forma que se torne possível a coexistência social, pois, caso contrário, as propriedades se esvaziariam na colisão de seus desdobramentos. Dessa forma, o direito de propriedade e o exercício da posse devem vigorar sob a ótica da função social. Em última análise, pode-se afirmar que a propriedade sem função social é o mesmo que exercício abusivo de direito. Pelo exposto, temos que a função social representa um elemento inseparável da estrutura do direito de propriedade. E é por isso, com o fundamento na função social da propriedade, que a intervenção estatal na esfera dominial privada se legitima.

A Carta Magna estende a função social da propriedade, para dela consagrar outras expressões e, dentre elas, se destaca a função socioambiental da propriedade, inserida, no ordenamento, de forma expressa, no artigo 225[8] da Constituição Federal de 1988, como um dos princípios que devem ser observados para a devida valorização da propriedade, que deve, nesse contexto, atender à preservação do meio ambiente. Os parágrafos e incisos do artigo em comento preveem medidas de políticas públicas que devem ser adotadas pelo Estado, a fim de assegurar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, limitando o exercício da propriedade, para que a função socioambiental da propriedade seja devidamente atendida, assegurando a sadia qualidade de vida do povo.

Ainda, para o fim de garantir a função social da propriedade, a Constituição Federal de 1988 estabelece ao longo de seu art. 182, parágrafos e incisos, políticas urbanas públicas, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das cidades e garantir o bem-estar de seus habitantes, cuja competência administrativa cabe aos Municípios, sendo que o art. 182, §2°[9] da Constituição Federal de 1988 expressamente estabelece que, para que a propriedade urbana cumpra a sua função social, ela deverá atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Dentre as diversas passagens constitucionais que trazem aspectos da função social da propriedade, destacam-se, ainda, os artigos 170, III[10] da Constituição Federal de 1988, bem como o artigo 186, I, II e III[11] e o artigo 184[12]  do Texto Maior de 1988, que estabelecem, respectivamente, que a ordem econômica deve observar a função social da propriedade e que a propriedade rural deve cumprir os requisitos constitucionais, a fim de que atenda à função social da propriedade, sob pena de desapropriação para fins de reforma agrária. A respeito da ênfase constitucional sobre a função social da propriedade, discorre Flávio Tartuce:

“Sendo assim, devem os estudiosos da matéria estar atentos a essa preocupação constitucional, no sentido de atender aos interesses dos indivíduos e, sobretudo, da coletividade, na persecução prática da efetivação do direito de propriedade. As questões relativas aos direitos reais devem ser encaradas sob o prisma da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988), da solidariedade social (art. 3.º, I, da CF/1988) e da isonomia ou igualdade lato sensu (art. 5.º, caput, da CF/1988). A tríade dignidade-solidariedade-igualdade deve ter um papel principal no estudo dos institutos privados, como se verá dos próximos capítulos deste livro.”[13]

Conclui-se que a Constituição Federal de 1988 procura garantir o exercício e a interpretação da propriedade, seja ela urbana ou rural, em conformidade com a sua função social, buscando, assim, fazer com que a propriedade possa atender aos interesses das pessoas que compõem a sociedade, além de apenas os interesses do proprietário, sob o prisma do solidarismo constitucional, estampado pelo artigo 3°, I da Magna Carta de 1988.[14]

 3. Posse: conceito e função social. 

A posse classicamente gera discussões acirradas na doutrina e na jurisprudência. Sobre as dificuldades emergentes no estudo da posse, assevera Roberto de Ruggiero:

“Não há matéria que se ache mais cheia de dificuldades do que esta, no que se refere à sua origem histórica, ao fundamento racional da sua proteção, à sua terminologia histórica, ao fundamento racional da sua proteção, à sua terminologia, à sua estrutura teórica, aos elementos que a integram, ao seu objeto, aos seus efeitos, aos modos de adquiri-la e de perdê-la.”[15]

No que atine ao conceito e à natureza jurídica da posse, nasce a indagação se a posse é um fato ou um direito. Do ponto de vista clássico, há duas grandes correntes. A primeira afirma que a posse é mero fato e a segunda que a posse é direito.

A doutrina que classifica a posse como um direito conceitua a posse como um domínio fático que a pessoa exerce sobre a sua coisa, afirmando, assim, que a posse constitui um direito, com natureza jurídica especial. Maria Helena Diniz, por seu turno, defende ser a posse um direito real, na medida em que se mostra como desdobramento do direito de propriedade. Orlando Gomes, defendendo constituir a posse um direito arrazoa:

“Ensina Ihering que a posse é um direito. A essa conclusão chega, coerentemente, em face do famoso conceito de direito, formulado no Espírito do Direito Romano. Para ele, direito é o interesse juridicamente protegido. Admitida essa definição, não pode haver dúvida de que a posse seja um direito. Nela se reúnem dois elementos – substancial e formal – que se exigem para a existência de um direito. O interesse substancial consiste no interesse. (…) A esse elemento substancial, o Direito acrescenta, na posse, um elemento formal: a proteção jurídica.”[16]

Por sua vez, a doutrina que classifica a posse como fato defende que a posse é uma situação de fato, tendo em vista que o possuidor, independentemente de exercer o domínio sobre a coisa, exerce sobre ela poderes.

 Em que pesem os diversos entendimentos a respeito da posse, o conceito jurídico de posse, no ordenamento brasileiro, é encontrado no art. 1.196 do Código Civil[17], que prescreve que possuidor é todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Adotou, pois, o ordenamento brasileiro a teoria objetiva, defendida por Rudolf von Ihering.

As duas principais teorias que buscam classificar a posse são a objetivista de Rudolf von Ihering e a subjetivista de Friedrich Carl von Savigny. Este sustenta que a posse é um direito e um fato, concomitantemente. Aduz que, se considerada em si mesma, é um fato, mas, que, se considerada nos efeitos que dela surgem, é um direito. Ihering conceitua a posse como conduta de dono, mas, quanto à natureza, sustenta ser um direito subjetivo, na medida em que é um interesse juridicamente protegido.  Sobre a teoria subjetiva, ensina Flávio Tartuce:

“Primeiramente, para a teoria subjetivista ou subjetiva, cujo principal defensor foi Friedrich Carl von Savigny, a posse pode ser conceituada como o poder direto ou imediato que a pessoa tem de dispor fisicamente de um bem com a intenção de tê-lo para si e de defendê-lo contra a intervenção ou agressão de quem quer que seja. A posse, para essa corrente, possui dois elementos. O primeiro seria o corpus, elemento material da posse, constituído pelo poder físico ou de disponibilidade sobre a coisa. O segundo elemento seria o subjetivo, o animus domini, a intenção de ter a coisa para si, de exercer sobre ela o direito de propriedade.”[18]

Destarte, conforme a teoria subjetiva da posse, para que o sujeito seja possuidor, devem estar presentes o corpus e o animus, cumulativamente, considerando que o corpus está relacionado ao poder de fato sobre a coisa, e o animus, elemento anímico, é caracterizado pela intenção de ser dono. Dessa forma, a posse é um poder direto ou imediato que a pessoa tem de dispor fisicamente de um bem, com a intenção de tê-lo para si e defendê-lo contra a interversão ou agressão de quem quer que seja.

Já, para a teoria objetiva, a posse traduz uma situação em que o sujeito atua como se o proprietário fosse imprimindo destinação econômica à coisa.  Carlos Roberto Gonçalves leciona a teoria objetiva da posse:

“A teoria de RUDOLF VON IHERING é por ele próprio denominada de objetiva porque não empresta à intenção, ao animus, a importância que lhe confere a teoria subjetiva. Considera-o como já incluído no corpus e dá ênfase, na posse, ao seu caráter de exteriorização da propriedade. Para que a posse exista, basta o elemento objetivo, pois ela se releva na maneira como proprietário age em face da coisa.”[19]

Portanto, para a teoria objetiva da posse, apenas o corpus é suficiente para a configuração da posse, considerando que o corpus, para esta teoria, não significa contato físico com a coisa, mas conduta de dono, que se revela na forma como o proprietário age com a coisa, com base em sua função econômica. Assim, é possuidor aquele que se comporta como dono.  Ainda, diferencia-se da teoria subjetiva, na medida em que o elemento psíquico do possuidor está situado unicamente na vontade de agir como o proprietário age de forma habitual.

Quanto à função social da posse, esta, assim como a propriedade, deve ser interpretada à luz da Constituição Federal, partindo-se da premissa de que a função social da posse decorre da função social da propriedade, tendo em vista que a função social da posse não se encontra disciplinada expressamente pelo ordenamento jurídico brasileiro. Sobre a presença da função social da posse de forma implícita no ordenamento, esclarece Ana Rita Vieira Albuquerque:

“Os valores fundamentais e os objetivos do Estado Brasileiro previstos na Constituição de 1988 visam sobretudo elevar o conceito de cidadania, através da valorização da pessoa humana. Evidentemente que tais valores projetam-se para todos os domínios jurídicos, inclusive para o direito privado, como vimos, e, consequentemente, informam o instituto da posse, evidenciando ainda mais o seu aspecto social imanente. Justamente em um sistema jurídico que tem por fim a pessoa humana, daí resultando a natureza teleológica dos argumentos sistemáticos, não se pode deixar de ter por incluída implicitamente, como princípio constitucional positivado, a função social da posse.”[20]

Apesar de estarem interligadas, a função social de propriedade e a função social da posse se distinguem, porquanto o instituto da posse é mais dinâmico, na medida em que busca satisfazer a necessidade de utilização da coisa segundo sua destinação econômico-social. Confrontando-se a função social da posse com a função social da propriedade, esta constitui limites ao exercício da propriedade, enquanto aquela se perfectibiliza por meio do atendimento da utilidade do bem, de acordo com sua expressão natural de necessidade. Desta maneira, a função social da posse não significa uma limitação ao direito de posse, mas a exteriorização do conteúdo imanente da posse.

Neste sentido, o Enunciado nº 492, aprovado pela V Jornada de Direito Civil, de 2011, descreve a função social da posse, com a seguinte redação: “A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela”. Assim sendo, para se alcançar a finalidade social da posse, esta precisa satisfazer as necessidades básicas de uma sociedade.

6. Conclusão.

Uma das principais funções do direito é a resolução de conflitos. Desde os primórdios da humanidade emergem conflitos de interesses do indivíduo com os interesses dos demais. O direito tem como objetivo garantir a sobrevivência dentro de um contexto permanente de conflitos, que sempre se mostraram inerentes ao homem. Assim, o direito se direciona de acordo com os interesses impostos pela sociedade, tornando-se dinâmico e acarretando constante mutação dos significados dos institutos jurídicos. Nesse viés, o direito, que também se apresenta como instrumento de dominação da sociedade, na medida em que a submete às normas de controle criadas para regular a convivência, pode buscar ir além, para ser utilizado como instrumento de mudança social.

As transformações sociais, políticas e econômicas, que sempre se mostraram consistentes na sociedade, exigem mudanças nos paradigmas legais, a fim de que efetivamente ocorra a busca da paz e justiça sociais. Injustiças sociais se mostraram presentes em todas as fases da história, devendo o legislador buscar evitar o descompasso entre o direito e os fenômenos sociais.  A relação existente entre o direito e as urgências sociais consiste na adequação da norma jurídica às necessidades advindas da evolução da sociedade. Nesse sentido, ensina Antônio Luis Machado Neto que “norma social que é, o direito não surge à toa na sociedade, mas para satisfazer as imprescindíveis urgências da vida. Ele é fruto das necessidades sociais e existe para satisfazê-las, evitando, assim, a desorganização.”[21]

De tal modo, as matrizes filosóficas do direito procuram manter o equilíbrio social, que a cada momento histórico se transmuda. Nesse contexto, surge a doutrina da função social, que é inerente a todo o direito subjetivo. Ao direito subjetivo, que se caracteriza como o poder conferido pelo ordenamento jurídico ao indivíduo para a satisfação de um interesse próprio, foi dada a noção de que apenas é dotado de legitimidade, se a persecução do interesse individual se der em conformidade com os anseios sociais. Portanto, a propriedade, como direito subjetivo que é e que historicamente se mostrou como instituto de conformação nitidamente individualista em contraposição aos ditames do interesse coletivo, passa a ser aplicada e interpretada sob a mesma ótica.

A doutrina da função social da propriedade se baseia na ideia de que a propriedade, que deixa de estar destinada apenas aos fins individuais do titular, assume um poder-função. Desse modo, o direito de propriedade deixa de ser absoluto, passando a ser um direito condicionado. Deve, pois, ser ponderado em face da existência de outros princípios igualmente importantes. Isso porque a função social da propriedade é mais que um princípio, constituindo verdadeiro instrumento da efetivação da dignidade da pessoa humana. Silvio de Salvo Venosa esclarece a importância da questão da propriedade atualmente:

“Sem dúvida, embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, moradia e o uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. Este novo século terá sem dúvida, como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade.”[22]

O objetivo precípuo do direito, tendo como um dos seus principais fundamentos o cumprimento da função social da propriedade, deve ser, então, a garantia da paz e do equilíbrio das relações sociais, de modo a se evitar conflitos e, assim, promover o desenvolvimento da sociedade com redução das desigualdades existentes. A solução de conflitos deve se basear na função social, por meio de decisões próximas da realidade, que não sejam artificiais, impostas e dissociadas da realidade e, em última instância, ineficazes.

Como estudado neste trabalho, dentre as restrições ao exercício do direito de propriedade, as regras que constituem o direito de vizinhança e as que regulam a convivência no contexto comunitário do condomínio edilício são de suma importância, posto que o crescimento demográfico, a densificação e a horizontalização das cidades são fontes para a intensificação de conflitos. Assim, as normas atinentes aos direitos de vizinhança e ao condomínio edilício buscam controlar conflitos, com a finalidade de alcançar a paz social. Exigem, também, interpretação e aplicação além de concepções individualistas, em prol da democratização da sociedade, de forma que se busque alcançar a paz social.

Sobre a importância atual da pacificação social, conclui-se a presente dissertação com importante ensinamento de Jean-Marie Muller:

“O que constitui a cidade política é um espaço público em que os homens, que se reconhecem iguais e semelhantes, dirigem-se livremente a palavra, a fim de tomar juntos as decisões que condicionam seu futuro comum. É este “querer viver juntos”, que leva os homens a criar uma sociedade, constituindo aliança uns com os outros (societas, em latim, significa aliança). Estabelecer uma sociedade significa, literalmente, criar uma associação. Esta se expressa através de uma constituição, isto é, um contrato social pelo qual os cidadãos decidem acerca do projeto político que pretendem realizar juntos.
(…)
A essência da ação política não consiste numa atuação de oposição uns contra os outros, e sim no agir uns com os outros. Evidentemente, a vida comum dos homens na mesma cidade pode a qualquer momento ser perturbada por conflitos provocados por indivíduos que não respeitam a aliança original. Esses conflitos precisam ser resolvidos para que se restabeleça a paz social, e os cidadãos possam retomar seu diálogo. “[23]

 


[1] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

[2] “XXII – é garantido o direito de propriedade;”

[3] SANTOS, Ulderico Pires dos. Direito de vizinhança: doutrina e jurisprudência. 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 5.

[4] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;”.

[5] TEPEDINO, Gustavo. Os direitos reais no novo Código Civil. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. t. II, p. 147.

[6] GOMES, Orlando. Direitos reais. 9ª ed., Brasil: Editora Forense, 1977, p. 15.

[7] GOMES, Orlando. A função social da propriedade. In: Anais do XII Congresso Nacional de Procuradores de Estado. Salvador: 1986, p. 109.

[8]Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

[9] “§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.”

[10]  “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III – função social da propriedade;”

[11]  “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

[12]Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”

[13] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas, v. 4. 9ª ed., Rio de Janeiro: Método, 2017, p. 29. Livro Eletrônico.

[14]  “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária.”

[15] RUGGIERO, Roberto de. Instituciones de derecho civil, v. 1. Tradução espanhola da 4ª ed., Madrid: Italiana, 1929, p.779.

[16] GOMES, Orlando. Direitos reais. 19ª ed. rev., atual. e aum. de acordo com o Código Civil de 2002. Atualizador: Luiz Edson Fachin. Coord. Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 41-42.

[17]Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”

[18] TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das coisas, v. 4. 9ª ed., Rio de Janeiro: Método, 2017, p. 33. Livro Eletrônico.

[19] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 5: direito das coisas. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 51.

[20] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua consequência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002, pp. 40 e 41.

[21] NETO, Antônio Luis Machado. Sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 412.

[22] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil – direitos reais. 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2009. p. 159.

[23] MULLER, Jean-Marie. O Princípio da não violência. 1ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 128 e 129.

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LIESENBERG, Melanie. Propriedade, Vizinhança e Conflitos Urbanos: Um Estudo sobre a Função Social no Direito Brasileiro. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14713691, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 21/01/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/propriedade-vizinhanca-e-conflitos-urbanos-um-estudo-sobre-a-funcao-social-no-direito-brasileiro/. Acesso em: 24/04/2025.