As medidas de segurança no campo administrativo-sancionatório e os perigos ao estado democrático de direito
Autores
Resumo
O presente artigo visa debater sobre como os desafios globais que se apresentaram no Século XXI, tal quais as intensas mudanças climáticas, o terrorismo global, o narcotráfico internacional, os crimes digitais e as crises de saúde globais, tais quais a pandemia do COVID-19, demonstraram a fragilidade do estado democrático de direito em estabelecer uma política de preservação dos direitos e garantias individuais face as medidas necessárias para superar tais adversidades. Dessa forma, os esforços são concentrados em apresentar um breve cenário sobre a utilização de medidas atípicas de pacificação e os riscos de um empoderamento de um estado policial em oposição ao regular estado democrático de direito.
Palavras-ChaveDIREITO ADMINISTRATIVO - DIREITO PENAL - GARANTIAS INDIVIDUAIS - DEVIDO PROCESSO LEGAL - POLICE STATE
Abstract
This article aims to discuss how the global challenges that have arisen in the 21st Century, such as intense climate change, global terrorism, international drug trafficking, digital crimes and global health crises, such as the COVID-19 pandemic , demonstrated the fragility of the democratic rule of law in establishing a policy of preserving individual rights and guarantees in the face of the measures necessary to overcome such adversities. In this way, efforts are concentrated on presenting a brief scenario on the use of atypical pacification measures and the risks of empowering a police state in opposition to the regular democratic rule of law.
KeywordsADMINISTRATIVE LAW - CRIMINAL LAW - INDIVIDUAL GUARANTEES - DUE LEGAL PROCESS - POLICE STATE
1. Introdução
O dinamismo da sociedade na era das informações e o fluxo constante de informações, pessoas e a diminuição das barreiras físicas criou uma nova teia de relações sociais, políticas, econômicas e de interação entre a sociedade e o meio-ambiente. O resultado dessa nova realidade é um cenário de incerteza sobre os limites da atuação estatal em seu papel de garantir a segurança da saúde e segurança pública, seja física, mental ou ambiental.
Os desafios globais que se apresentaram no Século XXI, tal quais as intensas mudanças climáticas, o terrorismo global, o narcotráfico internacional, os crimes digitais e as crises de saúde globais, tais quais a pandemia do COVID-19, demonstraram a fragilidade do estado democrático de direito em estabelecer uma política de preservação dos direitos e garantias individuais face as medidas necessárias para superar tais adversidades. Há uma linha tênue entre as medidas de segurança, tomadas no campo administrativo-executivo, e o desrespeito aos direitos fundamentais consubstanciados nos ordenamentos jurídicos da grande maioria dos países ocidentais. Os exemplos de arbitrariedades e abusos tomados em nome da coletividade, quando em uma análise mais profunda os interesses atendidos são de grupos políticos dominantes, se multiplicaram durante esse século, havendo um flerte cada vez mais intenso com o totalitarismo e um estado arbitrário. Um grande exemplo desse cenário é a denominada “guerra ao crime”, no qual se autoriza o uso de força e medidas gerais e irrestritas da força policial sobre a bandeira de garantir a segurança da coletividade, incorrendo em inúmeros casos de violação dos direitos humanos. (ZAFFARONI, 2007).
Destarte, o presente artigo está dedicado a uma breve análise e ponderação sobre os riscos da delegificação de assuntos de segurança, seja pública, ambiental ou de saúde, com a delegação desses assuntos ao campo administrativo e, estranhamente, ao judiciário, cada vez mais atuante como um órgão político, muitas vezes sendo preponderante o caráter político em detrimento do caráter jurisdicional desses órgãos, com a valorização dos vetores axiológicos dos julgadores e uma redução de uma atitude mais positivista.
2. Fundamentos teóricos da atuação intervencionista no estado democrático de direito.
As raízes que sustentam uma atuação intervencionista do Estado na coletividade e sociedade advêm, essencialmente, de uma leitura de que a finalidade justificadora da existência do Estado é o seu dever de garantir a segurança da sociedade, seja qual for a origem do risco a essa. O filósofo inglês, Thomas Hobbes, entendia que o principal dever do Estado e, consequentemente, a sua razão de existir, é assegurar o funcionamento saudável da sociedade, evitando, a qualquer custo – ênfase especial para o propósito do presente artigo no termo “a qualquer custo”- uma “guerra de todos contra todos”. Dessa forma, a sustentação do Estado é a renúncia do indivíduo ao Estado que se torna soberano para atuar visando a manutenção da ordem da sociedade, agindo em benefício da coletividade mesmo que, em situações específicas e necessárias, seja necessária a limitação dos direitos individuais. (HOBBES, 1988).
Carl Schmitt, teórico que rejeita o contratualismo, também adota um posicionamento que prestigia o poder estatal, apesar de sustentar esse posicionamento por bases diferentes dos contratualistas. Schmitt fundamenta a sua visão de estado em uma noção dualista entre “amizade e inimizade”, na qual o Estado, ou a política, se organiza como forma de organização de um grupo contra outro, dividindo-se entre amigos e inimigos. Dessa forma, segundo as próprias palavras do autor “Estado e soberania são os fundamentos das delimitações de guerra e inimizade que até agora foram alcançadas. ”
Schmitt defende que em razão da eterna controvérsia humana, o Estado deve atuar com o entendimento de que a política é a arte da oposição, sendo cabível e até mesmo indispensável a atuação interventiva, mesmo que em alguns casos isso signifique a criação de direitos e ordenamentos diferentes. Schmitt até mesmo cita diretamente outros autores que, assim como ele, reconhecem a suposta “problemática natureza humana”:
“Por mais diferentes que estes pensadores possam ser no que toca ao tipo, ao nível e ao significado histórico, eles concordam quanto à concepção problemática da natureza humana na mesma medida em que se mostram como pensadores especificamente políticos. É aqui suficiente nomear os nomes de Maquiavel, Hobbes, Bossuet, Fichte (logo que ele se esqueceu do seu idealismo humanitário, de Maistre, Donoso Cortés, H. Taine; também Hegel, que por certo também aqui, ocasionalmente, mostra a sua dupla face.” (SCHMITT, 2018)
Schmitt é especialmente importante para o debate sobre o presente tema, pois, ao analisar declarações e artigos publicados durante a pandemia do COVID-19 e nos meses posteriores ao 11 de setembro de 2001, uma expressão foi muito utilizada: ‘inimigo”. Uma opinião comum nos grandes veículos de imprensa é que a pandemia se apresentava como “um inimigo comum a todos os povos, capaz de unir todo o globo contra essa ameaça”. Considerando a leitura de Zaffaroni sobre Schmitt, percebemos os perigos de um Estado que detém inimigos, mesmo que esse inimigo seja um vírus. Zaffaroni lê que “Para Schmitt na guerra frente ao inimigo não existe nenhum limite imposto pela humanidade, porque esta não tem inimigos”. Assim sendo, toda e qualquer atuação da humanidade – por meio da figura de seu Soberano, o Estado – é válida se for para o fim de proteção do “eu” contra o inimigo, o que nesse caso se desdobra na possibilidade do Estado tomar medidas “contra legem”, por meio de um direito de exceção, visando garantir a segurança da coletividade em detrimento de minorias e indivíduos.
3. Delegificação, o regime jurídico administrativo e as consequências nos direitos e garantias fundamentais.
Qualquer discussão sobre o presente tema não pode evitar adentrar no denominado regime jurídico-administrativo. O regime jurídico-administrativo, adotado no Brasil, é composto de dois princípios fundamentais: A indisponibilidade do interesse público e a supremacia do interesse público sobre o privado.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que o princípio da supremacia do interesse público fundamenta quase todas as funções e atividades do Estado, alcançando não apenas os ramos de direito público, mas também os denominados ramos do direito privado. (DI PIETRO, 2020). Celso Antônio Bandeira de Mello, outro renomado autor do Direito Administrativo, define a supremacia do interesse público da seguinte forma:
“Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados.” (MELLO, 2015)
É imprescindível abordar a expressão “condição, até mesmo da sobrevivência e asseguramento deste último”. A supremacia do interesse da coletividade, ou interesse público, não serve, teoricamente ao menos, como apenas utilidade ao todo, mas também ao indivíduo. Para garantir cada indivíduo e sua segurança, deve ser garantida a coletividade por um todo. Logo, a segurança de cada indivíduo, dentro de uma lógica coletiva, justifica um regime jurídico que dá prerrogativas ao Estado para que realize a persecução do interesse coletivo. Não apenas o interesse da coletividade é superior, como também é indisponível, o Estado não pode deixar de perseguir o interesse público.
Para Hely Lopes Meirelles, o interesse público não pertence ao Estado, mas sim é o motivo pelo qual ele existe, garantir que esse seja atendido e, por isso, buscar o interesse público não é uma opção, mas um dever, é algo indisponível que deve ser perseguido pelo administrador público. (MEIRELLES, 2006). Raquel de Carvalho detalha a relação entre interesse público e sua indisponibilidade:
“Com base na premissa de que a Administração não titulariza os interesses públicos primários, é lugar comum afirmar a indisponibilidade de tais interesses pelo agente encarregado de, na sua gestão, protegê-los. Quem detém apenas poderes instrumentais à consecução de um dado fim não possui, em princípio, a prerrogativa de deles abrir mão, donde resulta a ideia de indisponibilidade do interesse público”
Sendo assim, a supremacia do interesse público torna esse indisponível, cabendo ao Estado atuar dentro daquilo previsto na lei para alncançá-lo. Dessa forma, é perceptível que como forma de contenção desse poder está a indisponibilidade do interesse público e, mais importante, a lei. A legalidade no direito administrativo é diferente daquele previsto no direito civil. Enquanto na esfera do direito privado, a legalidade funciona numa lógica de que é permitido tudo que não é proibido, no direito administrativo, o agente público somente pode fazer o que a lei diz que ele pode ou deve fazer. A lei, em um estado democrático de direito, não funciona como legitimador ou álibi do governante, mas sim como uma garantia dos indivíduos que são governados por leis votadas e aprovadas por seus representantes. Perceba que a lei, formada por um processo político completo, é importante para a manutenção do poder punitivo do Estado sobre controle. Porém, um perigo do atual estado securitário que atinge grande parte do mundo ocidental decorre justamente da força das medidas judiciais que configuram “saltos hermenêuticos carpados” e de decretos e outras ordens executivas decorrentes do processo cada vez mais comum de delegificação.
Canotilho afirma que a delegificação é um fenômeno jurídico que ocorre no cenário em que “uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamento” (CANOTILHO, 2017.) A principal justificativa para a delegificação seria a inaptude do legislativo para atuar em campos mais técnicos, levando assim algo que, normalmente, seria discutido no legislativo ao poder executivo, pois, o executivo detém corpos tecnicos de pessoal com qualificação nas mais diversas áreas, tal quais cientistas, médicos, sociólogos, dentre outros. Dessa forma, ao invés de convidar a sociedade civil e consultar especialistas, realizando um debate político próprio, a delegificação leva os assuntos técnicos para tecnocratas que tomarão essa decisão baseada apenas nos dados. O defeito nesse processo é claro: Retira-se temas importantes, principalmente aqueles que podem incorrer em reduções de direitos individuais ou limitações, da sociedade civil, os entregando a esses técnicos que indicarão medidas priorizando apenas segurança, saúde, meio-ambiente, mas descartando a liberdade, dignidade da pessoa humana, dentre outros, inclusive retirando a ponderação necessária entre diferentes direitos fundamentais. Como é fato notório no mundo jurídico, os direitos fundamentais não são absolutos e, quando em conflito, deve haver uma ponderação de forma a garantir a coexistência desses. Quando estiver em conflito o direito à segurança e o direito à liberdade, é razoável retirar tal tema do poder legislativo que garante uma maior participação da sociedade civil?
O autor italiano Giorgio Agamben é um dos que aponta para os perigos da utilização de medidas de segurança, sem uma lei estrita, como forma de garantir a coletividade gera um estado permanente de insegurança e medo, não apenas medo da situação de perigo que justifica essas medidas, mas medo de ser atingido e punido por essas medidas. (AGAMBEN, 2020). A pandemia, apesar de real e potencialmente destrutiva, levantou questões em relação aos limites do Estado para limitar as individualidades em prol da coletividade. Zaffaroni, por sua vez, aponta que a essência do tratamento diferenciado, um por meio da lei e outro por meio de medidas executivas ou leis mais frágeis e garantidoras, se dá em razão de sua condição de pessoa “inimiga”. Como o inimigo nesse caso é perigoso, não há necessidade de lhes dar um caráter de pessoa ou de direitos processuais ou garantias individuais. Porém, tal situação não atinge apenas aqueles que cometem delitos de forma contumaz, tal quais os membros de organizações de narcotráfico e grupos terroristas. Como Zaffaroni alertava sobre o direito penal do inimigo e o estado policial:
“Quanto mais habilitações o poder punitivo tiver nas legislações, maior será o campo de arbítrio seletivo das agências de criminalização secundária e menores poderão ser os controles e contenções do poder jurídico a seu respeito.(…) A introdução do inimigo no direito ordinário (não propriamente bélico ou de guerra) de um Estado de direito o destrói, porque obscurece os limites do direito penal invocando a guerra, e os do direito humanitário invocando a criminalidade.” (ZAFFARONI, 2007).
O direito, em um estado democrático, serve para, essencialmente, conter as tendências absolutistas do Estado. A criação, com a normalização posterior, de um direito em separado para os denominados inimigos, já consistia em uma brutal oposição aos princípios fundantes do estado democrático de direito, ainda mais grave é o processo de delegificação que concede ao âmbito executivo, e ao judiciário quanto em nome de ativismo judicial atua como se fosse poder executivo, a possibilidade de, em nome de razões de segurança, vigiar e punir, utilizando como arma as medidas executivas, decretos, portarias e outras ferramentas a disposição do executivo.
A justificativa de situação excepcional permitindo poderes excepcionais não leva em consideração – ou leva, mas de forma ardilosa finge que não – que por mais poder, todo regime político será naturalmente inclinado a inventar novas situações excepcionais, buscando assim transformar poderes temporários em permanentes. Otto Kirchheimer alertava que “todo regime político tem seus inimigos ou os vai criando com o tempo”. Cabe aos defensores do Estado Democrático de Direito combater o discurso demagogo e criar uma “linha na areia” para apontar os limites ao poder punitivo.
4. Conclusão
O senso comum mais básico e acessível indica que há grande risco em limitar ou intervir na esfera individual em privada pela bandeira da segurança, independentemente o que se pretende segurar. Em um primeiro momento, parece razoável determinações sanitárias obrigatórias, revistas generalizadas em bairros e vizinhanças com nível de criminalidade mais elevados ou a proibição de comportamentos outrora básicos e costumeiros sob a alegação do bem comum. Entretanto, como entende Zaffaroni “ a afirmação de que o direito interno serve para manter uma ordem jurídica também se torna dogmática quando é generalizada. ” Isto é, entender o Estado como algo que existe para manter a segurança é autorizar que o Estado se transforme em um estado policial permanente, que em nome da segurança diminui e sucateia os direitos mais básicos e fundamentais. Parto da premissa de que o verdadeiro propósito do Estado é garantir a dignidade da pessoa humana e sua liberdade. Portanto, é preciso encontrar um equilíbrio entre os direitos individuais e as medidas executivas visando a proteção da coletividade.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, G. ¿En qué punto estamos? La epidemia como política (T. D’Meza & R.Molina-Zavalía, Trads.). Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2020.
CANOTILLHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, São Paulo/SP, 2017.
DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores, São Paulo/SP, 2015.
HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Martin Claret, São Paulo/SP, 2014.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros Editores, São Paulo/SP, 2016.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Edições 70pt. Lisboa, Portugal, 2018.
ZAFFARONI, E. R. O inimigo no Direito Penal. Lumen Juris, Rio de Janeiro/RJ, 2007.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
BRITO, Fernando Vidal.. As medidas de segurança no campo administrativo-sancionatório e os perigos ao estado democrático de direito. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14644583, Joinville-SC, ano 2025, n. 4, aprovado e publicado em 14/01/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/as-medidas-de-seguranca-no-campo-administrativo-sancionatorio-e-os-perigos-ao-estado-democratico-de-direito/. Acesso em: 24/04/2025.