A aplicação do princípio da insignificância no caso de contrabando de até mil maços de cigarros sob a ótica do STJ
Autores
Resumo
O presente estudo analisa a intervenção mínima do Direito Penal e os requisitos do princípio da insignificância. Trata, também, do entendimento inicial do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não era possível a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela aos delitos de contrabando. Posteriormente, aborda a mudança de entendimento para aplicar o princípio da insignificância nos casos de apreensão ínfima no delito de contrabando de cigarros à luz da razoabilidade, proporcionalidade e mínima ofensividade da conduta.
Palavras-ChaveDireito Penal. Delito de contrabando de cigarros. Princípio da insignificância.
Abstract
This study analyzes the minimal intervention of Criminal Law and the requirements of the principle of insignificance. It also addresses the initial understanding of the Superior Court of Justice that it was not possible to apply the principle of insignificance or bagatelle to smuggling offenses. Subsequently, it discusses the change in understanding to apply the principle of insignificance in cases of minimal seizure in the crime of cigarettes smuggling in light of reasonableness, proportionality, and minimal offensiveness of the conduct.
KeywordsCriminal Law. Crime of Cigarette Smuggling. Principle of Insignificance.
1. INTRODUÇÃO
O Superior Tribunal de Justiça possuía firme e sólido entendimento no sentido de que não era possível a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela aos delitos de contrabando.
A Corte da Cidadania sempre considerou – principalmente nos casos de contrabando de bens nocivos – as múltiplas ofensas do referido delito à saúde, à segurança e à moralidade pública. Na visão do STJ, a repressão ao crime de contrabando não envolveria uma mera tutela fiscal que permitisse a aplicação do indigitado princípio.
Ocorreu que, recentemente, em sede de recurso repetitivo, a Corte Superior revisou seu posicionamento para aplicar o princípio da insignificância no caso de condutas ínfimas de contrabando (apreensão de até mil cigarros), o que será objeto de análise deste estudo.
2. A INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O Direito penal se orienta primordialmente pelos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade. Segundo os mencionados princípios, o Direito Penal tem incidência quando a lesão ao bem jurídico tutelado seja realmente relevante e quando não há a possibilidade de reparação do dano pelos outros ramos do direito.
Os indigitados princípios estão ligados à ideia da intervenção mínima do Direito Penal. O preclaro doutrinador Cezar Roberto Bitencourt bem delineia a questão:
“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Assim, se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficiente medidas cíveis ou administrativas, são estas as que devem ser empregadas, e não as penais.” (BITENCOURT, 2015, p.54)
Nesse contexto, por conseguinte, o direito penal mínimo se atém à ofensividade do comportamento realizado pelo agente, de modo que somente nos casos em que houver lesão considerável e relevante ao bem jurídico tutelado se justificaria a intervenção do Direito Penal.
Com efeito, o princípio da insignificância é uma consequência direta dos mencionados princípios, uma vez que não haveria necessidade de intervenção do Direito Penal diante de um caso concreto, quando não houvesse relevante lesão e ofensa ao bem tutelado, além da possibilidade de reparação do dano por outro ramo do direito.
3. CONCEITO E REQUISITOS DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
No emblemático julgamento do Habeas Corpus 84.412/SP, no ano de 2004, o STF bem delineou o conceito do princípio da insignificância:
“O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.”
Nessa toada, o princípio da bagatela acaba por afastar a tipicidade material da conduta, que, no caso concreto, não gere abalo relevante e significativo a um bem juridicamente tutelado.
Não adianta, portanto, a conduta ter uma adequação formal ao tipo penal para ser penalizada (tipicidade formal). Deve, em verdade, ter relevante lesão ao bem jurídico tutelado (tipicidade material), sem a qual não haverá nenhuma sanção penal.
Ademais, ainda por ocasião do referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal consagrou os vetores que devem ser observados para reconhecer a incidência do princípio da insignificância. No julgamento do HC nº 84.412/SP, ficou definido que:
“Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.”
Nesse contexto, conforme apontado alhures, devem ser observados quatro requisitos, segundo o Supremo Tribunal Federal, para a incidência do princípio da insignificância, a saber: mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica.
4. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO CASO DE CONTRABANDO DE ATÉ MIL MAÇOS DE CIGARROS SEGUNDO O STJ
O Código penal, no art. 334-A, assim disciplina o delito de contrabando:
“Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem: I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando; II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente; III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação; IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira; V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira.”
Ao considerar o referido tipo penal, o STJ, via de regra, não permitia a incidência do princípio da insignificância no caso de contrabando, mormente no caso de contrabando de cigarros, uma vez que os danos causados pelo referido delito – mesmo na apreensão de pequenas quantidades de mercadoria – eram significativos à saúde, à segurança e à moralidade pública. Segundo a Corte da Cidadania, portanto, o referido tipo penal não tutela interesses meramente fiscais.
Por ocasião do julgamento do REsp 1744739/RS, de relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, da 5ª Turma, em 02/10/2018, ficou assentado que:
“Esta Corte Especial tem o entendimento consolidado no sentido de ser inaplicável o princípio da insignificância ao crime de contrabando. (AgRg no REsp 1744739/RS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 02/10/2018, DJe 11/10/2018) ”
Por sua vez, no julgamento do REsp 1717048/RS, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, da 6ª Turma, em 11/09/2018, o STJ bem ponderou que:
“O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a introdução clandestina de cigarros, em território nacional, em desconformidade com as normas de regência, configura o delito de contrabando, ao qual não se aplica o princípio da insignificância, por tutelar interesses que transbordam a mera elisão fiscal.” (AgRg no REsp 1717048/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 11/09/2018, DJe 24/09/2018)
Ademais, a Corte da Cidadania, ao julgar o REsp n. 2.025.469/SP, de relatoria do Ministro Antônio Saldanha Palheiro, da 6ª Turma, em 13/3/2023, considerou também que:
“Este Tribunal Superior firmou entendimento de que o crime de contrabando de cigarros não admite a aplicação do princípio da insignificância, ‘por menor que possa ter sido o resultado da lesão patrimonial (240 maços, na espécie – e-STJ fl. 226), pois a conduta atinge outros bens jurídicos, como a saúde, a segurança e a moralidade públicas.”(AgRg no REsp n. 2.025.469/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023)
Por conseguinte, o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça já havia, há muito, se firmado no sentido que de que o delito de contrabando – inclusive o de cigarros – não conceberia a aplicação do princípio da insignificância, uma vez que haveria ampla e grave ofensividade à saúde pública, à segurança e à moralidade.
Ocorre que, mais adiante, o STJ passou a adotar tese diametralmente oposta. Por ocasião do julgamento em sede de Recurso Repetitivo – Tema 1143, em 13/9/2023, a egrégia Corte Superior consignou que:
“O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.”
A propósito, o STJ também considerou que o contrabando de cigarros viola diretamente o direito à saúde pública e, por essa razão, em princípio, não mereceria a aplicação do princípio da bagatela.
Todavia, considerando o princípio da razoabilidade, caberia considerar a conduta como de bagatela quando houvesse uma apreensão íntima (até mil maços de cigarros), salvo reiteração delitiva. Confira-se:
“O crime de contrabando de cigarros tutela, entre outros bens jurídicos, a saúde pública, circunstância apta a não recomendar a aplicação do princípio da insignificância.
Obstar a aplicação do princípio da insignificância para todos os casos, notadamente para aqueles em que verificada a apreensão de quantidade de até 1.000 (mil) maços, é uma medida ineficaz à luz dos dados estatísticos apresentados, além do que não é razoável do ponto de vista de política criminal e de gestão de recursos dos entes estatais encarregados da persecução penal, razão pela qual se revela adequado admitir a incidência do princípio em comento para essa hipótese – apreensão de até 1.000 (mil) maços -, salvo reiteração da conduta, circunstância que, caso verificada, é apta a afastar a atipicidade material, ante a maior reprovabilidade da conduta e periculosidade social da ação.
[…]
Acolhida a seguinte tese: O princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar 1.000 (mil) maços, seja pela diminuta reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão ao contrabando de vulto, excetuada a hipótese de reiteração da conduta, circunstância apta a indicar maior reprovabilidade e periculosidade social da ação.” (REsp n. 1.977.652/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, julgado em 13/9/2023, DJe de 19/9/2023.)
5. CONCLUSÃO
Inicialmente, havia uma resistência por parte do STJ no reconhecimento do princípio da insignificância nos crimes de contrabando, incluindo o de cigarros. Isso porque a conduta geraria ampla e grave ofensividade à saúde pública, à segurança e à moralidade. A lesão da conduta, desse modo, não é meramente fiscal.
No entanto, em casos de condutas ínfimas (apreensão de até mil maços de cigarros), não seria razoável a intervenção do Direito penal à luz da proporcionalidade e da mínima ofensividade da conduta.
Com efeito, a Corte da Cidadania, por meio da Terceira Seção, em sede de recursos repetitivos, reconheceu que o princípio da insignificância ou da bagatela tem aplicabilidade nos casos que envolvam o crime de contrabando de cigarros. Todavia, para sua incidência, deve haver apreensão ínfima de até mil maços de cigarros – conduta que atenderia aos quatro vetores estatuídos pelo STF para aplicação do indigitado princípio.
Ficou ressalvada a situação em que o agente ostenta contumácia delitiva, que acaba por afastar um dos quatro vetores definidos pelo Excelso Pretório para aplicação do princípio da insignificância (reduzidíssimo grau de reprovabilidade da conduta).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto Bitencourt. Tradado de direito penal: parte geral. 1 – 21. Ed. Ver., ampl. E atual.- São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 84.412/SP, 2ª Turma, 19.11.2004.
BRASIL. Código penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 22/12/2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1744739/RS, Quinta Turma, 02/10/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1717048/RS, Sexta Turma, 11/09/2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 2025469/SP, Sexta Turma, 13/3/2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.977.652/SP, Terceira Seção, 13/9/2023.
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
NORONHA, Bruno Vilarins de.. A aplicação do princípio da insignificância no caso de contrabando de até mil maços de cigarros sob a ótica do STJ. Revista Di Fatto, Subcategoria Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, DOI 10.5281/zenodo.14547195, Joinville-SC, ano 2024, n. 3, aprovado e publicado em 23/12/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-aplicacao-do-principio-da-insignificancia-no-caso-de-contrabando-de-ate-mil-macos-de-cigarros-sob-a-otica-do-stj/. Acesso em: 24/04/2025.