A nova lei de licitações e contratações, o Ministério Público e o sistema multinível de controle das contratações públicas
Autores
Resumo
Este estudo analisa as mudanças trazidas pela nova Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021), que visam aprimorar as contratações públicas no Brasil, reforçando princípios administrativos e o controle de riscos. Além de regulamentar práticas administrativas já reconhecidas pela jurisprudência, a lei introduz novos mecanismos de controle preventivo. No entanto, mesmo com essas inovações, persistem atos irregulares e ilícitos em processos licitatórios. O trabalho destaca o papel do Ministério Público no controle externo, exercendo a fiscalização sobre agentes públicos e privados e protegendo o patrimônio público e os direitos fundamentais.
Palavras-ChaveLei de Licitações e Contratos. Controle Externo e Interno. Ministério Público e Proteção ao Erário
Abstract
This study examines the changes introduced by the new Public Procurement and Contract Law (Law 14.133/2021), aimed at improving public procurement in Brazil by reinforcing administrative principles and risk control. In addition to codifying recognized administrative practices, the law introduces new preventive control mechanisms. However, despite these innovations, irregular and illegal acts in procurement processes persist. This paper highlights the role of the Public Prosecutor’s Office in external oversight, enforcing accountability over public and private agents and protecting public assets and fundamental rights.
KeywordsPublic Procurement and Contract Law. Internal and External Oversight. Public Prosecutor's Office and Asset Protection
1. INTRODUÇÃO
A nova lei geral de licitações e contratos (Lei Federal 14.133/2021) promoveu significativas alterações no âmbito das contratações públicas, aperfeiçoando, em grande medida, o complexo procedimento administrativo licitatório, a fim de concretizar os princípios implícitos e explícitos da Administração Pública, e de garantir a seleção da proposta mais vantajosa para o ente público licitante. Nesta toada, incrementou ainda o sistema de controle preventivo e de gestão de riscos das contratações públicas, inovando em determinados aspectos, ao positivar práticas administrativas e entendimentos jurisprudenciais dos tribunais superiores.
A edição do novo diploma de contratações públicas, contudo, não pôs termo aos atos irregulares, ilícitos e fraudulentos praticados pelos agentes públicos e privados envolvidos no certame. Para tanto, o Ministério Público permanece como guardião do erário e dos direitos fundamentais no âmbito de suas atribuições constitucionais, legais e institucionais, ao exercer o controle externo dos atos administrativos praticados tanto pelos agentes públicos do ente contratante quanto dos licitantes e contratados, à luz do sistema multinível de responsabilização do agente público do ordenamento jurídico brasileiro.
O presente trabalho científico tem por finalidade identificar, sistematizar e simplificar as ferramentas jurídicas de controle interno e externo exercido sobre agentes públicos e privados envolvidos nas contratações públicas, com destaque para a atuação do Ministério Público, enquanto importante instituição de garantia dos direitos fundamentais e de defesa do Estado Democrático Socioambiental de Direito, inaugurando pela Constituição Federal de 1988.
2. DO CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS: FUNDAMENTOS E ESPÉCIES
É consabido que, com a Constituição Federal de 1988, se aperfeiçoa um regime jurídico-administrativo, com destaque para o firme estabelecimento de direitos e deveres a agentes públicos e a particulares, com espeque em princípios implícitos e nos princípios expressos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, do consagrado art.37, do texto constitucional, a seguir transcrito:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
Nessa toada, o controle dos atos administrativos é corolário dos princípios republicano e democrático, a partir da ideia de que o Estado é instrumento do povo (real titular do poder político e do patrimônio público) na proteção e realização dos interesses públicos primários. É, ainda, consectário do Estado Democrático Socioambiental de Direito, sob o fundamento de que o Estado não atua livremente, submetendo-se à disciplina normativa previamente debatida e editada pelos representantes do povo, devidamente eleitos para atuação nas Casas legislativas.
A este respeito, ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro que:
O controle constitui poder-dever dos órgãos a que a lei atribui essa função, precisamente pela sua finalidade corretiva; ele não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilidade de quem se omitiu. Ele abrange a fiscalização e a correção dos atos ilegais e, em certa medida, dos inconvenientes ou inoportunos. Com base nesses elementos, pode-se definir o controle da Administração Pública como o poder de fiscalização e correção que sobre ela exercem os órgãos dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, com o objetivo de garantir a conformidade de sua atuação com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico. [1]
Nesse sentido, entende-se, em apertada síntese, por controle da administração, o conjunto de instrumentos jurídicos de fiscalização e revisão da atuação dos agentes e órgãos públicos, pela própria Administração Pública, pelos Poderes Legislativo e Judiciário, pelo Ministério Público e pelos cidadãos.
As ferramentas de controle poderão ser internas, externas e popular, sendo as internas aquelas realizadas pela própria administração no zelo da legalidade de seus atos, corrigindo os atos que conflitarem com a lei. Existirão, para tanto, órgãos especialmente designados para o controle interno, como controladorias e corregedorias, por exemplo. Quanto ao controle externo, este é exercido por órgão que não integra o mesmo Poder do qual emanou o ato controlado. Expressamente, a Constituição Federal de 1988 afirma, no art. 71, caput, que “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União”, e estabelece, no art. 49, V, do texto constitucional, que cabe ao Congresso Nacional “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.
Ressalta-se ainda que o controle externo também é exercido pelo Poder Judiciário, quando no exercício da função jurisdicional e pelo Ministério Público, como assim expõe a eminente jurista Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Atualmente, uma instituição que desempenha importante papel no controle da Administração Pública é o Ministério Público, em decorrência das funções que lhe foram atribuídas pelo artigo 129 da Constituição. Além da tradicional função de denunciar autoridades públicas por crimes no exercício de suas funções, ainda atua como autor na ação civil pública, seja para defesa de interesses difusos e coletivos, seja para repressão à improbidade administrativa. Ainda tem legitimidade para ajuizar ações de responsabilização contra pessoas jurídicas que causam dano à Administração Pública, com fundamento no artigo 19 da Lei anticorrupção. Embora outras entidades disponham de legitimidade ativa para a propositura dessas ações, a independência do Ministério Público e os instrumentos que lhe foram outorgados pelo referido dispositivo constitucional (competência para realizar o inquérito civil, expedir notificações, requisitar informações e documentos, requisitar diligências investigatórias) fazem dele o órgão mais bem estruturado e mais apto para o controle da Administração Pública. [2]
A licitação, enquanto procedimento administrativo que se destina a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, é composto por diversos atos administrativos coordenados, e guarda igualmente observância aos princípios implícitos e expressos do regime constitucional jurídico-administrativo, razão pela qual não está imune ao controle interno e externo exercido pelos agentes competentes, notadamente o Ministério Público, tal como será posteriormente pormenorizado ao longo deste trabalho.
3. MINISTÉRIO PÚBLICO: FUNDAMENTO, ATRIBUIÇÕES E RESOLUTIVIDADE
O Ministério Público é uma instituição essencial à função da justiça e independente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário, tendo a Constituição Federal de 1988 elenca como atribuição ministerial a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme inteligência do art. 127: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
Da exegese do comando constitucional, extrai-se que o Ministério Público é uma garantia constitucional fundamental de acesso à Justiça tanto da sociedade, no plano da tutela coletiva, amplamente considerada (ex: proteção do meio ambiente, do consumidor, da segurança pública, da moralidade administrativa e do patrimônio público, entre outros), quanto do indivíduo, no plano dos direitos ou interesses individuais indisponíveis (ex:direito à vida, à liberdade e à saúde, inter alia). Dito de outro modo, concebe-se o Parquet não somente como mero fiscal da lei(fiscal da ordem jurídica), mas como garantidor dos direitos fundamentais, que participa de forma ativa das decisões governamentais, em especial diante da omissão total ou parcial estatal na promoção de políticas públicas.
Em sequência, o legislador constituinte apresenta um rol exemplificativo[3] de funções institucionais ministeriais, evidenciado, entre outros, pelos poderes investigatório cível e criminal, requisitório, notificatório, de promoção privativa da ação penal pública e promoção concorrente da ação civil pública; de sorte a concluir que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou dois modelos de atuação do Ministério Público: atuação judicial e extrajudicial, visando este à resolução consensual dos conflitos.
A respeito do Ministério Público, ensinam Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade que[4]
Algumas vezes, a Constituição ou a lei atribuem ao Parquet a promoção da ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos específicos.
[…]
Outras vezes, o ordenamento jurídico incumbe ao Ministério Público a tutela de direitos transindividuais não específicos, valendo-se de fórmulas abertas para atribuir-lhe, genericamente, a proteção de qualquer espécie de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo. E o que se verifica, por exemplo, na LACP, que, apesar de enumerar algumas espécies de direitos difusos e coletivos passíveis de defesa via ação civil pública (p. ex., meio ambiente, ordem urbanística, direitos dos consumidores), autoriza a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” (art. 1.º, IV). Em função de tais fórmulas abertas, não se exige do Ministério Público pertinência temática, ou seja, não se pode afirmar que só lhe compete defender direito difuso, coletivo, ou individual homogêneo relacionado a um determinado tema (p. ex., somente interesse relacionado ao meio ambiente, ou ao consumidor, ou ao patrimônio público). Ele está autorizado à defesa de direitos transindividuais de qualquer temática. Essa é uma das razões pelas quais o MP transformou-se no autor da esmagadora maioria das ações civis públicas em nosso país.
Nesse sentido, exsurge ainda o conceito de Ministério Público resolutivo, como decorrência da necessidade de racionalização da atuação da instituição, para fins de atender, de forma eficaz, ao comando constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. O Ministério Público resolutivo é um conceito comparativo e obtido por contraste, pois pressupõe uma relação com o Ministério Público demandista, sendo dois perfis de necessária convivência e diálogo recíproco. Para o perfil resolutivo ministerial, o Poder Judiciário, assume a última ratio, visto que a composição prévia e extrajudicial dos conflitos ou de eventuais violações à lei pelo Ministério Público se insere no plano de ação resolutiva como a prima ratio, evitando assim a propositura de demandas judiciais em relação às quais a resolução extrajudicial é a mais indicada.
No bojo da atuação resolutiva, recomenda-se a realização periódica de audiências e de consultas públicas, a instauração de procedimento de investigação (procedimento preparatório ou inquérito civil) tanto para coleta das informações como para alicerce de medidas sanadoras de ilegalidades e de responsabilização, ou até mesmo para evitar persecuções arbitrárias e substrato fático, e, uma vez, constatadas as irregularidades, prima-se pela expedição de Recomendação, pela celebração de Termo de Ajustamento de Conduta e de Acordos de não persecução cível, com a priorização da atuação em tutela coletiva em detrimento da individual, quando conveniente. No âmbito criminal, a resolutividade prima pela priorização dos institutos da “Justiça Penal Negociada”: transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal (ANPPA), respectivamente, previstos nos arts. 76 e 89 da Lei nº 9099/95 e no Código de Processo Penal, art. 28-A.
É importante ressaltar, nesse passo, que existe ainda um movimento de racionalização da atuação ministerial seja na qualidade fiscal da lei seja na qualidade de garantidor dos direitos fundamentais. Não se constitui uma tentativa de se furtar da tarefa constitucional dirigida ao órgão ministerial, ao contrário, pretende-se direcionar a atividade finalística aos verdadeiros contornos constitucionais, fortalecendo a instituição e permitindo uma atuação mais condizente com a sua função social.
Como consabido, o art. 178 do Código de Processo Civil editado em 2015 traz as hipóteses em que haverá intervenção obrigatória do Ministério Público, ressaltando que a presença da Fazenda Pública em juízo não configura, por si só, caso de atuação do Parquet.
Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:
I – interesse público ou social;
II – interesse de incapaz;
III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.
Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público.
Quanto à atuação do Ministério Público diante de demandas judicial que lhe são postas, na qualidade de fiscal da lei:
Deve o Ministério Público, então, zelar apenas pelo interesse público que se apresenta como mais relevante, porque relevantes são suas incumbências constitucionais. Assim, se ao Parquet incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, apenas o interesse público qualificado deve merecer sua fiscalização no processo civil, sob pena de um perigoso desvirtuamento da missão constitucional da Instituição, que parece ser a de autêntica alavanca, procurando sempre a efetiva aplicação da lei para propiciar o fortalecimento do Estado de Direito e a pacificação social.[5]
Dito isto, expostos as principais atribuições, o fundamento e as tendências do Ministério Público brasileiro, passa-se a analisar os aspectos gerais das contratações públicas e da recente lei federal n.º 14.133/2021.
4. ASPECTOS GERAIS DA LICITAÇÃO E DA LEI FEDERAL N.º 14.133/2021
Em sequência, convém pontuar que a licitação é o procedimento administrativo obrigatório que se destina a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, para fins de contratação de obras, serviços, compras e alienações, em igualdade de condições a todos os concorrentes. Para tanto, traz-se à colação a regra geral insculpida no art. 37, XXI, da Lei Fundamental, que estabelece a obrigatoriedade de licitar, para assegurar os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, fixados no caput do artigo:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (g.n.)
A renomada jurista Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresente o seguinte conceito de licitação:
Aproveitando, parcialmente, conceito de José Roberto Dromi (1975:92), pode-se definir a licitação como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a todos os interessados, que se sujeitem às condições fixadas no instrumento convocatório, a possibilidade de formularem propostas dentre as quais selecionará e aceitará a mais conveniente para a celebração de contrato. Ao falar-se em procedimento administrativo, está-se fazendo referência a uma série de atos preparatórios do ato final objetivado pela Administração.[6]
Convém consignar que a Nova Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei Federal 14.133/2021), foi editada com base no art. 22, XXVII, da CF/88, isto é, na competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos, transcrito abaixo:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
A licitação, como instituto do Direito Administrativo e com previsão constitucional, deriva dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, nos termos do art. 5.º, caput, do art. 37, caput, e seu inciso XXI, da Constituição Federal, e tem por finalidade assegurar o legítimo interesse público nas contratações, de modo a evitar quaisquer excessos e desvios de poder, potencialmente prejudiciais ao erário. Nesse esteio, o art. 5º da Lei Federal nº 14.133/2021, com vistas a complementar o arcabouço principiológico constitucional, elenca ao total dezessete princípios setoriais das licitações e contratações administrativas, in verbis:
Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei no 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Percebe-se que o dispositivo apresenta os princípios gerais do Direito Administrativo elencados pelo art. 37, da CF/88, como os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência. Inova, porém, ao trazer expressamente princípios que antes eram implícitos em nosso ordenamento jurídico, mas amplamente reconhecido pela prática administrativa de contratações e pela jurisprudência, a saber: princípios do interesse público, da probidade administrativa, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade e da economicidade.
Além da função de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, faz-se mister ainda mencionar a função regulatória da licitação, a qual corresponde à ideia de que a licitação pode ser utilizada como instrumento de intervenção estatal indireta na economia, para regular mercados em favor da concretização de outros interesses públicos, como o incentivo à inovação, ao desenvolvimento nacional sustentável, à redução das desigualdades de gêneros e à promoção de ações afirmativas em prol de grupo vulneráveis, como a população carcerária e as pessoas com deficiência. Com a Lei nº 14.133/2021, é possível notar um avanço na função regulatória das contratações públicas[7]. Nesse sentido, o art. 11 da Nova Lei Geral de Licitações e Contratos positivou novos objetivos do processo licitatório, a fim de corroborar a função regulatória do processo licitatório. Vejamos:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Em princípio, a teor dos referidos comandos constitucionais genéricos de “licitação e contratação” e de “obras, serviços, compras e alienações”, toda e qualquer forma de contratação administrativa deve se submeter à Lei Federal nº 14.133/2021. Seguindo a linha traçada pela Constituição Federal, a Lei de Licitações estabelece logo no art.2º a delimitação da normal geral:
Art. 2º Esta Lei aplica-se a:
I – alienação e concessão de direito real de uso de bens;
II – compra, inclusive por encomenda;
III – locação;
IV – concessão e permissão de uso de bens públicos;
V – prestação de serviços, inclusive os técnico-profissionais especializados;
VI – obras e serviços de arquitetura e engenharia;
VII – contratações de tecnologia da informação e de comunicação.
Por outro lado, a própria lei Federal nº 14.133/2021 traz um rol de exclusões de sua aplicação[8].
Na qualidade de procedimento administrativo, a licitação é composta por diversas etapas. A doutrina administrativista sempre defendeu a existência de duas grandes fases na licitação: (i) interna, dentro do órgão ou entidade licitante, indo até a publicação do instrumento convocatório; (ii) externa, iniciando-se com a publicação do ato de convocação dos licitantes e terminando com a adjudicação e homologação do certame. Foi somente com a Lei Federal nº 14.133/2021 que o legislador consignou expressamente das duas fases, a “fase preparatória”, correspondente à doutrinariamente conhecida fase interna, após a qual segue um conjunto de outras fases que podemos chamar de “competitiva”, fase externa da licitação, em rol do art. 17[9], divulgação do edital de licitação; apresentação de propostas e lances, quando for o caso; julgamento; habilitação; recursal; e homologação.
4.1. DO CONTROLE INTERNO DA LICITAÇÃO E DA CONTRATAÇÃO
O controle interno exercido pela Administração Pública reexamina a legalidade e o mérito dos atos administrativos por ela mesma editados, anulando-os quando ilegais – ou convalidando-os- e revogando-os se inoportunos e inconvenientes, decorrendo da hierarquia administrativa (por subordinação) ou da tutela administrativa (por vinculação).
A Nova Lei Geral de Licitações (Lei Federal nº 14.133/2021) cria capítulo específico para tratar das formas de controle preventivo e de gestão de riscos das contratações públicas, pelo sistema de controle interno da Administração Pública, dividindo-as em três linhas de defesa:
Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:
I – primeira linha de defesa, integrada por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades que atuam na estrutura de governança do órgão ou entidade;
II – segunda linha de defesa, integrada pelas unidades de assessoramento jurídico e de controle interno do próprio órgão ou entidade;
III – terceira linha de defesa, integrada pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas.
(…)
§ 3º Os integrantes das linhas de defesa a que se referem os incisos I, II e III do caput deste artigo observarão o seguinte:
I – quando constatarem simples impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento e para a mitigação de riscos de sua nova ocorrência, preferencialmente com o aperfeiçoamento dos controles preventivos e com a capacitação dos agentes públicos responsáveis;
II – quando constatarem irregularidade que configure dano à Administração, sem prejuízo das medidas previstas no inciso I deste § 3º, adotarão as providências necessárias para a apuração das infrações administrativas, observadas a segregação de funções e a necessidade de individualização das condutas, bem como remeterão ao Ministério Público competente cópias dos documentos cabíveis para a apuração dos ilícitos de sua competência.
Art. 170. Os órgãos de controle adotarão, na fiscalização dos atos previstos nesta Lei, critérios de oportunidade, materialidade, relevância e risco e considerarão as razões apresentadas pelos órgãos e entidades responsáveis e os resultados obtidos com a contratação, observado o disposto no § 3º do art. 169 desta Lei.
Da simples leitura dos incisos do dispositivo acima, o legislador infraconstitucional instituiu o modelo tripartite de controle interno das contratações públicas, amplamente reconhecido pela prática administrativa e pela doutrina administrativista, envolvendo, de maneira cooperativa e sistemática, os agentes responsáveis pelo processo de licitação (1ª linha), as unidades de supervisão e de controles internos setoriais (2ª linha) e o órgão de auditoria ou controle interno da Administração Pública (3ª linha).
Os órgãos de controle deverão avaliar os atos praticados no âmbito da licitação e/ou da execução do contrato com base nos critérios de oportunidade, materialidade, relevância e de risco, e adotarão as medidas necessárias não só à apuração das ilegalidades, mas também ao saneamento da irregularidade, admitindo-se, por oportuno, a suspensão cautelar do processo licitatório. Acrescenta ainda que, em caso de constatação de dano à Administração, remeter-se-á ao Ministério Público cópias dos documentos para a apuração de ilícitos de sua atribuição.
Como consabido, o art. 115 da Nova Lei Geral de Licitações traz regra genérica e intuitiva acerca da responsabilidade das partes contratantes:
Art. 115. O contrato deverá ser executado fielmente pelas partes, de acordo com as cláusulas avençadas e as normas desta Lei, e cada parte responderá pelas consequências de sua inexecução total ou parcial.
Em caso de infração administrativa por parte do licitante ou do contratado (pessoa física ou jurídica, ou consórcio de pessoas jurídicas)[10], as quais ensejam a aplicação de sanções, o art. 155 da Lei nº 14.133/21 elenca um rol de infrações que podem ser agrupadas da seguinte forma: aquelas que incidem durante a execução do contrato (incisos I a III do art. 155); aquelas que dificultam a superação da fase documental do certame público (incisos IV a VIII do art. 155) e; aquelas que incide em hipóteses de conduta desidiosa e/ou fraudulenta na execução (incisos IX a XII do art. 155).
Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações:
I – dar causa à inexecução parcial do contrato;
II – dar causa à inexecução parcial do contrato que cause grave dano à Administração, ao funcionamento dos serviços públicos ou ao interesse coletivo;
III – dar causa à inexecução total do contrato;
IV – deixar de entregar a documentação exigida para o certame;
V – não manter a proposta, salvo em decorrência de fato superveniente devidamente justificado;
VI – não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta;
VII – ensejar o retardamento da execução ou da entrega do objeto da licitação sem motivo justificado;
VIII – apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato;
IX – fraudar a licitação ou praticar ato fraudulento na execução do contrato;
X – comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude de qualquer natureza;
XI – praticar atos ilícitos com vistas a frustrar os objetivos da licitação;
XII – praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.
Art. 156. Serão aplicadas ao responsável pelas infrações administrativas previstas nesta Lei as seguintes sanções:
I – advertência;
II – multa;
III – impedimento de licitar e contratar;
IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.
[…]
§ 9º A aplicação das sanções previstas no caput deste artigo não exclui, em hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à Administração Pública.
Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.
Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.
Saliente-se que a aplicação das sanções administrativas previstas no art. 156 (advertência, multa, impedimento de licitar e contratar e de declaração de idoneidade) não exclui, em hipótese alguma, a obrigação de reparação integral do dano causado à Administração Pública, podendo os seus efeitos serem estendidos para administradores, sócios com poderes de administração, à pessoa jurídica sucessora ou a empresa coligada ou controladora.
4.2. RESPONSABILIDADE DOS AGENTES PÚBLICOS DO ENTE LICITANTE E CONTRATANTE
Enquanto longa manus do Estado, a noção de agente público é bastante ampla, abrangendo toda e qualquer pessoa que atue em nome do estado, independentemente de com ele estabelecer vínculo jurídico específico, mesmo que sem remuneração e de forma transitória, sendo essa a concepção firmada no § 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. A Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal no 8.429/92) também encampa esse conceito amplo de agente público, prescrevendo se tratar de “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função (…)”, assim como a Nova Lei Geral de Licitações (art. 6º, inciso V, da Lei nº 14.133/21), que considera como agente público o “indivíduo que, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública;”. E, por fim, no mesmo sentido, o Código Penal, cujo art. 327 estabelece que “considera-se funcionário público, para efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública”. [11]
Nos termos do art. 121 da Lei Federal nº 8.112/90, o servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições. No âmbito administrativo disciplinar, segundo a lei em comento, a responsabilidade do servidor pode decorrer de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiros, sendo passível de sujeição às sanções administrativas, como advertência, suspensão, demissão, destituição ou cassação de aposentadoria, conforme a gravidade do ato e o regime jurídico do agente público.
Por sua vez, a responsabilidade civil dos agentes públicos nas licitações públicas encontra supedâneo no art. 37, § 6º, da CF/88, que estabelece que:
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Depreende-se do dispositivo constitucional que o §6º do art. 37 da CF/88, além de estabelecer, com base na teoria do risco administrativo, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público pelos danos causados por seus agentes quando atuarem nessa qualidade, independentemente de culpa ou dolo, estabelece o dever de o Estado, após a reparação do dano, cobrar do agente causador do dano os valores despendidos, desde que comprovado o dolo ou culpa na sua atuação, o que a doutrina denomina “Direito de regresso”.
Importante destacar que as responsabilidades civil, penal e administrativa são relativamente independentes entre si e poderão ser cumuladas. Diz-se “relativamente independentes” porque, excepcionalmente, haverá interferência entre as diferentes esferas de responsabilidade no caso de absolvição criminal pela negativa do fato ou da autoria, devendo, então, ser afastada a responsabilidade nas esferas administrativa e civil (art. 126, da Lei Federal nº 8.112/90). A contrario sensu, a absolvição criminal por insuficiência de provas ou por qualquer outra razão não interfere nas demais esferas.
Entretanto, a responsabilidade do servidor público não se limita às esferas civil, penal e administrativa. Isto porque vige no ordenamento jurídico nacional um sistema multinível de responsabilização do agente público, que se diferenciará pelo órgão julgador, pelo ato imputado (atos ilícitos, atos culposos e atos dolosos), pelo elemento subjetivo da conduta (culpa, dolo, fraude), pela natureza da responsabilidade (subjetiva, objetiva, por omissão), e pela norma jurídica violada.
Nessa linha, dispõe Fernanda Marinela:
Importante registrar que as irregularidades praticadas no âmbito das licitações e contratos irão ensejar responsabilidades diversas, quais sejam: responsabilidade administrativa prevista nas próprias leis de licitações, responsabilidade administrativa funcional, responsabilidade civil por dano ao erário, responsabilidade criminal, responsabilidade por atos de improbidade administrativa. Além destas, poderão ainda responder perante os Tribunais de Contas. São responsabilizados não somente os agentes públicos, mas, também, a depender das condutas, as pessoas jurídicas e seus representantes, conforme iremos tecer breves comentários a seguir[12].
Dito isto, a responsabilização do agente público pode envolver a (i) responsabilidade administrativa prevista nas próprias leis de licitações, a (ii) responsabilidade administrativa funcional, (iii) a responsabilidade civil por dano ao erário, (iv) a responsabilidade criminal, (v) a responsabilidade por atos de improbidade administrativa, a (vi) responsabilidade perante os Tribunais de Contas, e a (vii) responsabilidade por ilicitude político-administrativa (crime de reponsabilidade).
5. DO CONROLE EXTERNO DA LICITAÇÃO E DA CONTRATAÇÃO PROMOVIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Por força das disposições do poder constituinte originário, o Ministério Público se revela guardião do erário e dos direitos fundamentais no âmbito de suas atribuições constitucionais, legais e institucionais, ao exercer o controle externo dos atos administrativos praticados tanto pelos agentes públicos do ente contratante quanto dos licitantes e contratados, à luz do sistema multinível de responsabilização do agente público do ordenamento jurídico brasileiro.
Desta feita, especialmente em caso de omissão total ou parcial dos agentes de controle interno da Administração Pública, exsurge o poder-dever do ente ministerial de apurar as responsabilidades legais de agentes públicos e particulares (pessoa física e pessoa jurídica) envolvidos em violação às normas jurídicas do processo licitatório, e de promover a sua responsabilização na esfera judicial. Para tanto, discorre-se a seguir acerca dos principais diplomas infraconstitucionais que conferem legitimidade ao Ministério Público para instaurar processos judiciais.
5.1. LEI ANTICORRUPÇÃO (LEI Nº 12.846/2013)
A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, se insere a um só tempo tanto na sistemática de controle interno quanto de controle externo das contratações públicas, este a cargo do Ministério Público.
Isto porque as pessoas jurídicas, que atuaram de forma fraudulenta na licitação, podem ser responsabilizadas, inclusive objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção, seja em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não, independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais, tais como seus dirigentes, administradoras ou qualquer pessoa autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
Não por outra razão o art. 155, inciso XII, da Nova Lei Geral de Licitações previu que praticar atos previstos na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) no curso da execução de contrato firmado entre o Poder Público e o particular enseja igualmente a aplicação de sanções (advertência, multa, impedimento de licitar e contratar e de declaração de idoneidade), que “serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos” na Lei Anticorrupção[13].
Para fins elucidativos, colaciona-se as hipóteses de atos lesivos previstas na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), no tocante às contratações públicas:
Art. 5º Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:
[…]
IV – no tocante a licitações e contratos:
a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;
b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;
c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;
d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;
e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;
f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou
g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;
Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções:
I – multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e
II – publicação extraordinária da decisão condenatória.
§ 1º As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações.
§ 2º A aplicação das sanções previstas neste artigo será precedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público.
§ 3º A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.
A Lei Anticorrupção reforça o papel do Ministério Público como agente de proteção do patrimônio público, por lhe atribuir a legitimidade concorrente de perquirir a responsabilização judicial de natureza cível da pessoa jurídica infratora e a legitimidade subsidiária de provocar em juízo a responsabilização administrativa, em caso de omissão das autoridades administrativas. Vejamos:
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:
I – perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
II – suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
III – dissolução compulsória da pessoa jurídica;
IV – proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
(…)
Art. 20. Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 6º, sem prejuízo daquelas previstas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa
Não se pode olvidar que, com as pessoas jurídicas, pode ser celebrado o acordo de leniência disciplinado no Capítulo V, do diploma em comento. Em razão da ausência de previsão legal acerca da legitimidade do Ministério Público para propor e celebrar o acordo de leniência, e de divergências doutrinárias e jurisprudenciais, a recomendação é que seja celebrado conjuntamente com a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública.
Por fim, o artigo 30 da Lei anticorrupção expressamente determina que:
Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I – ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e
II – atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.
5.2. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
A Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, representou uma das maiores conquistas no combate à corrupção e à má gestão dos recursos públicos, enquanto diploma regulamentador do comando constitucional pertinente. Na esteira da intenção do legislador constituinte, que estabeleceu, no art. 37, § 4º, da Constituição Federal de 1988, verdadeiros códigos de conduta à Administração Pública e aos seus agentes, previu-se, inclusive, pela primeira vez no texto constitucional, a possibilidade de responsabilização e aplicação de graves sanções pela prática de atos de improbidade administrativa, como a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública. Vejamos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(…)
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
É cediço que o ato de improbidade administrativa é um ato ilícito civil qualificado – “ilegalidade qualificada pela prática de corrupção” – e exige, para a sua consumação, um desvio de conduta do agente público, devidamente tipificado em lei, e que, no exercício indevido de suas funções, afaste-se dos padrões éticos e morais da sociedade, pretendendo (i) obter vantagens materiais indevidas e/ou (ii) gerar prejuízos ao patrimônio público e/ou (iii) ferir os princípios e preceitos básicos da administração pública, caracterizada esta hipótese, por uma das condutas previstas em rol exaustivo, do art. 11, da Lei de Improbidade Administrativa.
O direito à probidade administrativa é um direito público subjetivo pertencente à coletividade, vindicável pelo parquet através da propositura da Ação de Improbidade Administrativa em defesa do patrimônio público e social se encontra cabalmente sedimentada nos artigos 127, “caput”, e 129, inciso III, da Magna Carta, c/c art. 17 da Lei Federal n. 8.429/92, e vindicável também pela Fazenda Pública do ente lesado, após a Suprema Corte firmar que os entes públicos que tenham sofrido prejuízos em razão de atos de improbidade também estão autorizados a propor Ação de Improbidade Administrativa e a celebrar acordos de não persecução civil em relação a esses atos, declarando inválidos os dispositivos da Lei nº 14.230/2021, que conferiam ao Ministério Público a legitimidade exclusiva para a propositura das ações por improbidade e para a realização dos acordos de não persecução cível.[14]
No mesmo sentido, leciona Wallace Paiva Martins Júnior:
(…) o direito à moralidade administrativa é direito público subjetivo, cujo titular é a coletividade indivisivelmente considerada, que pode exigir seu cumprimento da Administração Pública. Para efeito da disciplina interna desta, a moralidade administrativa impõe aos seus agentes a sua observância, aparecendo como um dever inerente ao desempenho de qualquer função ou atividade pública. [15]
A Lei 14.230/2021 promoveu uma série de mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, de 2 de junho de 1992, que, em geral, flexibilizaram, o sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa[16].
Apesar da alteração da Lei de Improbidade Administrativa pela Lei 14.230/21, inserindo o art. 3º, § 2º, dispondo que as sanções da LIA não se aplicam à pessoa jurídica caso o ato de improbidade também seja sancionado como ato lesivo pela Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), é importante mencionar que ainda assim se aplica a Lei de Improbidade Administrativa. Tanto que a própria Lei de Improbidade Administrativa, em seu art. 12, § 3º, ao tratar das sanções, destaca que” na responsabilização da pessoa jurídica, deverão ser considerados os efeitos econômicos e sociais das sanções, de modo a viabilizar a manutenção de suas atividades“, e em seu art.12, § 7º, da LIA, dispõe que “As sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nesta Lei e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.”.
Considerando os posicionamentos mais recentes dos Tribunais superiores, pode-se concluir que os agentes políticos (prefeitos, vereadores, deputados federais e estaduais), com exceção do presidente da República, encontram-se sujeitos a duplo regime sancionatório, aplicando-se a Lei de Improbidade Administrativa em relação aos atos de improbidade e leis específicas relativamente aos crimes de responsabilidade, a exemplo daqueles previstos na Lei 1.079/1950 e no Decreto-Lei 201/1967, em virtude da autonomia das instâncias.[17]
A seu turno, faculta-se ao Ministério Público postular judicialmente a indisponibilidade dos bens e valores dos envolvidos, nos termos do art. 16, da Lei 8.429/92, e o afastamento dos agentes públicos, se a medida se mostrar necessária à instrução processual e/ou para evitar a iminente prática de novos ilícitos, com fulcro no art. 20, § 1º, da LIA. Pode-se como mencionado, nos casos em que se mostrarem cabíveis e autorizados pela norma, haver a proposta de acordo de não persecução cível extrajudicial (ANPC) aos envolvidos, nos termos do art. 17-A da Lei de Improbidade Administrativa.
As sanções civis previstas na Lei Federal n. 8.429/92 incluem: (i) ressarcimento integral do dano; (ii) perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; (iii) perda da função pública; (iv) suspensão dos direitos políticos; (v) pagamento de multa civil; (vi) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
Por fim, imperioso destacar que, ainda que a pretensão de aplicação das sanções decorrente da lei de improbidade administrativa esteja prescrita, a pretensão poderá cingir-se ao ressarcimento ao erário somente, desde que se comprove que o dolo ou culpa do agente público e a lesão ao erário, tudo com fundamento no art. 37, §5º, CF/88, já que se trata de pretensão imprescritível.
5.3. LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA (LEI N.º 7.347/85)
A legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para a propositura da Ação Civil Pública em defesa do patrimônio público e social, relacionada às contratações públicas, em face de agentes públicos, pessoas jurídicas públicas e privadas, e pessoas naturais se encontra cabalmente sedimentada pelas suas atribuições constitucionais (arts. 127, 129, III, da CF/88), legais (art.1º, IV, e 5º, I, da lei n.º 7.347/85; art.82, I, da lei n.º 8.078/1990) e institucionais (art. 25, IV, alínea “a”, da LONMP)[18]. A Ação Civil Pública poderá ainda ser precedida de Inquérito Civil, o qual se trata de procedimento preparatório para a colheita de dados que permitam a formação da convicção do representante do Ministério Público para o ajuizamento responsável da ação judicial.
Dentre as diversas funções institucionais do Parquet, o art. 129, III, da Constituição Federal, preconiza “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. O art. 25, inc, IV, alínea “a”, da Lei Orgânica n° 8.625/93 estabelece, por sua vez, que:
Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:
(…)
IV – Promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a) Para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos”.
Quanto à legitimidade passiva, embora a lei de Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/85) não tenha apresentado um rol taxativo para os sujeitos passivos como assim fez para os sujeitos ativos, a doutrina e a jurisprudência perfilham o entendimento a parte passiva serão o dos responsáveis pelos atos que originaram a ação, podendo ser pessoas físicas, jurídicas, de direito público ou privado.
Os arts. 1º, 3º e 11 da Lei de Ação Civil Pública consagram os objetos da ação, que se resumem aos direitos coletivos lato sensu. O termo “coletivo” é utilizado como gênero, abrangendo o dano moral que viola direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu, direitos individuais homogêneos. Vejamos:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
l – ao meio-ambiente;
ll – ao consumidor;
III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
V – por infração da ordem econômica;
VI – à ordem urbanística.
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.
VIII – ao patrimônio público e social.
Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados.
(…)
Art. 3º A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
(…)
Art. 11. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor.
É entendimento pacífico que na ação civil pública há tutela preventiva e tutela reparatória. A tutela preventiva visa evitar ou interromper a prática do ato ilícito, consequentemente, impede-se (ou pelo menos diminui-se) a ocorrência do dano, ao passo que a tutela ressarcitória/reparatória tem por finalidade reparar o dano que já se concretizou. A tutela ressarcitória divide-se em (a) específica, por meio da qual se busca o perfeito adimplemento da obrigação, ou seja, trata-se da reparação do dano in natura, por exemplo, ação judicial contra o corte de 50 árvores, com a tutela específica manda-se plantar 50 árvores; (b) genérica, que busca a reparação em pecúnia, quando não for possível a tutela específica, trata-se das perdas e danos (dano material), sendo imprescindível a prova efetiva do prejuízo patrimonial. Assim, caso se constate danos ao erário, em razão da conduta dolosa ou culposa, também podem ser cobrados os valores do prejuízo ao patrimônio público dos agentes e/ou particulares envolvidos.
É cediço que, para a caracterização dos danos materiais, exige-se a prova efetiva da diminuição patrimonial, ao contrário dos danos morais, que são presumidos pelo evento danoso e que se caracterizam pela simples violação de um direito geral de personalidade, sendo incluída na tutela ressarcitória genérica moral.
Ainda, a situação, conforme vasta jurisprudência, pode ensejar postulação de reparação por dano moral coletivo. Como consabido, o dano moral coletivo é categoria autônoma de dano e se caracteriza por lesão grave, injusta e intolerável a valores e a interesses fundamentais da sociedade, independentemente da comprovação de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral, e encontra fundamento no princípio fundamental da reparação integral, elencado nos seguintes dispositivos legais e constitucionais: art. 1º, III; art. 5º, V e X da Constituição Federal art. 6º, VI e VII, do CDC.
De mais a mais, convém pontuar que os danos sociais é uma nova espécie de dano reparável, que não se confunde com os danos materiais, morais e estéticos, e que decorre de comportamentos socialmente reprováveis, que diminuem o nível social de tranquilidade.
Quanto à destinação das indenizações, tratando-se de direitos individuais homogêneos, os destinatários são as vítimas ou os seus sucessores, ao passo que tratando-se de direitos difusos e coletivos, os valores são destinados ao fundo de reparação para os bens lesados, nos termos do art. 13, da LAC:
Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados
5.4. CÓDIGO PENAL (DECRETO-LEI Nº 2.848/1940)
Convém rememorar que o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública, tanto na forma incondicionada quanto na condicionada, e encontra fundamento no uso de suas atribuições constitucionais (art. 129, inciso I, da CF/88), legais (art. 24, art. 41 e art. 257, inciso I, todos do CPP), e institucionais (art.25, inciso III, da Lei 8.625/93), podendo ser precedida de Inquérito policial, Procedimento Investigativo Criminal (PIC), ou qualquer outro procedimento de natureza investigativa, que lhe permite apurar elementos de convicção de autoria e materialidade de infração penal.
A Lei nº 14.133/21 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – em seu art. 178, acrescentou ao Código Penal, entre os Crimes contra a Administração Pública, onze tipos penais – arts. 337-E a 337-P.
Embora a Lei no 14133/21, nos arts. 191 e 193, tenha estabelecido um regime de transição para aplicação da novel legislação, até o decurso do prazo de dois anos, a contar da publicação – a qual se deu em 01.04.2021, este dispositivo não abrange as alterações concernentes à tutela penal das licitações e dos contratos administrativos. Assim sendo, na data da publicação da nova lei, foram imediatamente revogados os arts. 89 a 108 da Lei no 8666/93, passando a viger, na mesma data, o Capítulo II-B do Código Penal (Dos crimes em Licitações e contratos Administrativos, inserido no Título XI dos Crimes contra a Administração Pública), modificando as redações dos tipos penais antigos e adequando as suas disposições.
Quanto aos novos tipos penais anteriormente previstos, tem-se, como regra, a incidência da continuidade normativo típica, agora revogadas pela Lei nº 14133/21. Embora tenha havido a revogação dos crimes da Lei no 8666/93, não significa que tenha ocorrido “abolitio criminis” (art. 2º, do CP), uma vez que não está atrelada ao simples fato de ter ocorrido a revogação de um dispositivo penal.
Fazendo a comparação dos tipos penais de ambas as leis (e seus preceitos secundários), percebe-se que a continuidade normativa típica veio acompanhada de um maior rigor punitivo, não retroagindo para alcançar fatos pretéritos. Portanto, para os fatos passados, as normas penais incriminadoras da Lei no 8666/93, serão ultrativas, ou seja, aplicáveis mesmo após suas revogações, pois são mais benéficas aos investigados/acusados (inclusive para fins de capitulação nas denúncias). Vale destacar que todos os crimes da Lei nº 8666/93 eram apenados com detenção, o que impedia o início do cumprimento da pena em regime fechado. Analisando os tipos penais inseridos pela nova Lei, apenas os arts. 337-I e 337-J continuam apenados com detenção. Nos demais, portanto, é admissível o regime inicial fechado na execução da pena.
Do rol de crimes, a Lei no 14133/21 tipificou uma nova conduta, trazida no tipo penal do art. 337-O, denominado pelo legislador de “Omissão grave de dado ou de informação pro projetista”. Esse tipo penal é de médio potencial ofensivo e tem como bem jurídico tutelado a administração pública no aspecto moral, correspondente à isonomia, moralidade, competitividade e regularidade do processo licitatório, bem como no aspecto material, correspondente à defesa do patrimônio público.
O rol de crimes constantes pela Nova Lei de Licitações – e que fazem parte do Código Penal Brasileiro – são: (i) Contratação direta ilegal; (ii) Frustração do caráter competitivo de licitação; (iii) Patrocínio de contratação indevida; (iv) Modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo; (v) Perturbação de processo licitatório; (vi) Violação de sigilo em licitação; (vii) Afastamento de licitante; (viii) Fraude em licitação ou contrato (ix) Contratação inidônea; (x) Impedimento indevido; e( xi) Omissão grave de dado ou de informação por projetista.
6. CONCLUSÃO
Como sabido, a edição do novo diploma de contratações públicas que inaugurou o modelo tripartite de controle interno das contratações públicas, envolvendo os agentes responsáveis pelo processo de licitação, as unidades de supervisão e de controles internos setoriais, e o órgão de auditoria ou controle interno da Administração Pública, não pôs termo aos atos irregulares, ilícitos e fraudulentos praticados pelos agentes privados e públicos envolvidos na esfera das contratações públicas.
Nesse sentido, a identificação, a sistematização e a simplificação dos ferramentais legais de responsabilização dos atos antijurídicos cometidos pelos agentes públicos e privados ganha importância para o combate às irregularidades nas contratações públicas, que são prejudiciais ao erário e à concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais. Assim, a responsabilização do agente público pode envolver individual ou em concurso a (i) responsabilidade administrativa prevista nas próprias leis de licitações, a (ii) responsabilidade administrativa funcional, (iii) a responsabilidade civil por dano ao erário, (iv) a responsabilidade criminal, (v) a responsabilidade por atos de improbidade administrativa, a (vi) responsabilidade perante os Tribunais de Contas, e a (vii) responsabilidade por ilicitude político-administrativa (crime de reponsabilidade).
O Ministério Público permanece como guardião do Estado Democrático Socioambiental de Direito, inaugurando pela Constituição Federal de 1988, e dos direitos fundamentais no âmbito de suas atribuições constitucionais, legais e institucionais, ao exercer o controle externo dos atos administrativos praticados pelo licitante ou contratante e pelos agentes públicos do ente licitante e contratante, com base especificamente na Lei Anticorrupção, Lei de Improbidade Administrativa, na Lei de Ação Civil Pública e no Código Penal, na medida em que vige no ordenamento jurídico brasileiro um sistema multinível de responsabilização do agente público e do agente privado, que se diferenciará pelo órgão julgador, pelo ato imputado (atos ilícitos, atos culposos e atos dolosos), pelo elemento subjetivo da conduta (culpa, dolo, fraude), pela natureza da responsabilidade (subjetiva, objetiva, por omissão), e pela norma jurídica violada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, Adriano, Interesses difusos e coletivos esquematizado. Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade – 6. ed. rev.• atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal Plenário. ADI 7042/DF e ADI 7043/DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Disponível em: 31/8/2022. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal Plenário. RE 976566. Repercussão Geral – Tema 576. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Disponível em: 13/6/2023. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Brasília: Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Brasília: Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm. Acesso em 18 de setembro de 2024.
BRASIL.Lei nº 14.133, DE 1º DE ABRIL DE 2021. Institui a Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Diário Oficial da União. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em 18 de setembro de 2024.
Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo/Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes, in FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo (Coord.). Ministério público: instituição e processo. 2a ed. São Paulo: Atlas, 1997
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 14ª ed. Saraiva Jur. São Paulo, 2020
MARTINS JÚNIOR. Wallace Paiva. Probidade administrativa. São Paulo : Saraiva, 2001
[1] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, fls.1626-1627
[2] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, fl.1627
[3] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;
IX – exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
[4] Andrade, Adriano, Interesses difusos e coletivos esquematizado I Adriano Andrade, Cleber Masson, Landolfo Andrade – 6. ed. rev .• atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016, fls.100-101
[5]GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes, in FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo (Coord.). Ministério público: instituição e processo. 2a ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 155
[6] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. – 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, fl.755
[7] Em geral, as modificações presentes na lei nº 8.666/93 se mantiveram ou mesmo ganharam mais espaço. O objetivo do “desenvolvimento nacional sustentável” se manteve , bem como as preferências de desempate e possibilidade de margens de preferência a empresas, produtos e serviços nacionais[6]. Outro exemplo que se manteve foi a dispensabilidade de licitação na contratação de associações de portadores de deficiência, instituições dedicadas à recuperação social de presidiários, e cooperativas de catadores de recicláveis[7]. Ainda no tocante à inclusão de grupos excluídos, a nova lei traz outros avanços. Enquanto a lei antiga previa que licitantes que cumprissem com reserva legal de vagas para portadores de deficiência ou reabilitados da Previdência Social teriam preferência para desempate, e poderiam obter margem de preferência prevista em edital[8], a nova lei passou a prever que tal critério seja pressuposto para a própria habilitação do licitante, ou seja, requisito de participação na licitação[9]. Além disso, a possibilidade de o edital prever que a mão-de-obra a ser empregada na execução do contrato conte com percentual mínimo de egressos do sistema prisional[10] não só se manteve na nova lei, como se expandiu também para mulheres vítimas de violência doméstica[11]. Já no âmbito da regulação ambiental, a nova lei inova ao trazer incentivos à preservação do meio-ambiente e promoção da sustentabilidade. Passa-se a prever a possibilidade de margem de preferência a bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis[12], critérios de desempate em favor de empresas que comprovem a prática da [13], nos termos da Política Nacional sobre a Mudança do Clima[14]. No mais, é ressaltada a importância do respeito a normas ambientais nas obras e serviços de engenharia, no que tange à disposição final dos resíduos, á mitigação por condicionantes e compensação ambiental, à redução no consumo de recursos naturais, à proteção ao patrimônio cultural e ao impacto de vizinhança nos termos da legislação urbanística. Estes são só alguns exemplos. Há outras inovações e avanços na Nova Lei de Licitações de fomento a práticas socialmente desejáveis. Verifica-se dispositivos sobre o desenvolvimento regional de estados e pequenos municípios, benefícios a pequenos empreendimentos como as MEs e EPPs, bem como a startups; e regulação concorrencial e anticorrupção. Disponível em < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/reg/funcao-regulatoria-de-fomento-das-contratacoes-publicas-na-nova-lei-de-licitacoes >. Acesso em 09 de setembro de 2024
[8] (i) As empresas estatais, que se submetem exclusivamente à Lei Federal no 13.303/2016 (art. 1º, § 1º), salvo, como visto, quanto às disposições penais, aos critérios de desempate na licitação e à modalidade do pregão; (ii) As contratações realizadas no âmbito de repartições públicas sediadas no exterior, que obedecerão às peculiaridades locais, apenas devendo observar os princípios básicos estabelecidos na Lei, na forma de regulamentação específica a ser editada por ministro de Estado (art. 1º, § 2º); (iii) licitações e contratações que envolvam recursos provenientes de empréstimo ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou de organismo financeiro de que o Brasil seja parte, que admitirão as condições decorrentes de acordos internacionais aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República, além das condições peculiares previstas em normas e procedimentos dessas agências oficiais e organismos financeiros(art. 1°, § 3°); (iv) Contratações relativas à gestão, direta e indireta, das reservas internacionais do País, inclusive as de serviços conexos ou acessórios a essa atividade, serão disciplinadas em ato normativo próprio do Banco Central do Brasil (art. 1º, § 5º); (v) Contratos que tenham por objeto operação de crédito, interno ou externo, e gestão de dívida pública, incluídas as contratações de agente financeiro e a concessão de garantia relacionadas a esses contratos; (vi) Contratações sujeitas a normas previstas em legislação própria.
[9] Art. 17. O processo de licitação observará as seguintes fases, em sequência:
I – preparatória;
II – de divulgação do edital de licitação;
III – de apresentação de propostas e lances, quando for o caso;
IV – de julgamento;
V – de habilitação;
VI – recursal;
VII – de homologação.
[10] Art. 6º Para os fins desta Lei, consideram-se:
VIII – contratado: pessoa física ou jurídica, ou consórcio de pessoas jurídicas, signatária de contrato com a Administração;
IX – licitante: pessoa física ou jurídica, ou consórcio de pessoas jurídicas, que participa ou manifesta a intenção de participar de processo licitatório, sendo-lhe equiparável, para os fins desta Lei, o fornecedor ou o prestador de serviço que, em atendimento à solicitação da Administração, oferece proposta;
[11] A expressão “funcionários públicos” não possui ressonância na Constituição Federal de 1988, encontrando-se em desuso em razão de sua equivocidade, sem conteúdo definido. Nada obstante, consta ainda de alguns diplomas normativos, como o mencionado dispositivo do Código Penal, enquanto sinônima de “agentes públicos”.
[12] MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 14ª ed. Saraiva Jur. São Paulo, 2020, fl.398
[13] Art. 159. Os atos previstos como infrações administrativas nesta Lei ou em outras leis de licitações e contratos da Administração Pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, observados o rito procedimental e a autoridade competente definidos na referida Lei.
[14]BRASIL. Supremo Tribunal Federal Plenário. ADI 7042/DF e ADI 7043/DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Disponível em: 31/8/2022. Acesso em 18 de setembro de 2024.
[15]MARTINS JÚNIOR. Wallace Paiva. Probidade administrativa. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 98.
[16]1)Necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação do ato de improbidade administrativa, exigindo – em todas as hipóteses – a presença do elemento subjetivo do tipo – dolo específico (“vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei”), conforme se verifica nas novas redações dos artigos 1º, §§ 1º e 2º; 9º, 10, 11; bem como na revogação do artigo 5º. 2) É importante destacar que nada obstante as alterações na Lei de Improbidade Administrativa encetarem para tipificação única para cada ato (art. 17, § 10- D), tem-se a possibilidade de ocorrência de várias condutas e, assim, várias tipificações. Ademais, há a possibilidade de tipificações subsidiárias.
[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal Plenário. RE 976566. Repercussão Geral – Tema 576. Rel. Min. Alexandre de Moraes, Disponível em: 13/6/2023. Acesso em 18 de setembro de 2024.
[18]LACP . Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I – o Ministério Público;
CF Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (…) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
CDC. Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: I – o Ministério Público,
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
VALENTE, Lucas Peixoto. A nova lei de licitações e contratações, o Ministério Público e o sistema multinível de controle das contratações públicas. Revista Di Fatto, Subcategoria Biologia, Ciência e Tecnologia de Alimentos, Ciências Humanas, Comunicação, Design, Direito, Escrita científica, Genética, Marketing, Nutrição, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 3, aprovado e publicado em 23/10/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/a-nova-lei-de-licitacoes-e-contratacoes-o-ministerio-publico-e-o-sistema-multinivel-de-controle-das-contratacoes-publicas/. Acesso em: 24/04/2025.