Gestão de Riscos nos Contratos Administrativos – Inovações da Lei nº 14.133/2021

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Biologia, Direito

Este artigo foi revisado e aprovado pela equipe editorial.

Aprovado em 17/09/2024

10/09/2024

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Sarah Dornelas Alencar

Curriculo do autor: Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Direito Público pela Faculdade Arnaldo Janssen.

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Resumo

O presente estudo foi motivado pela recente publicação Nova Lei de Licitações e Contratos (lei nº 14.133/2021), que altera a lógica anterior, que se valia basicamente da teoria das áleas para garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, passando a trazer uma possibilidade de alocação prévia de riscos. Investiga-se, assim, como se deu tal evolução, a partir da análise de previsões legislativas anteriores e comparando com a novel disposição, tecendo comentários sobre as consequências e formas de se interpretar o novo cenário normativo.

Palavras-Chave

contratos adminsitrativos. gestão de risco. lei nº 14.133/2021

Abstract

The present study was motivated by the recent publication of the New Law on Bidding and Contracts (Law No. 14.133/2021), which alters the previous logic that primarily relied on the theory of hazards to ensure the economic-financial balance of contracts, now introducing a possibility for the prior allocation of risks. This research investigates how such an evolution occurred by analyzing previous legislative provisions and comparing them with the new regulations, providing comments on the consequences and interpretations of the new normative scenario.

Keywords

Administrative contracts. Risk management. Law No. 14.133/2021

1. INTRODUÇÃO[1]

Em 10 de dezembro de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 4.253/2020, que teve como escopo renovar o tratamento das licitações e contratações públicas no ordenamento brasileiro.

Até então, tais matérias eram regidas pela Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93), pela Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e pela Lei do Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011).

Após vetos e sanções, o projeto de lei foi sancionado em 01 de abril de 2021, resultando na publicação da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021). Sua eficácia consta desde sua publicação, porém guardando simultânea aplicação com as anteriores leis pelo período de dois anos.

Entre as inovações trazidas pelo novo diploma geral das licitações, destaca-se no presente estudo a inclusão da matriz de risco como instrumento a ser adotados nos novos contratos administrativos advindo das licitações comuns, como forma de alcançar maior segurança jurídica, pela previsibilidade da distribuição de ônus entre os contratantes, além de pretender a economia de recursos públicos através de uma modelagem contratual mais robusta e com respostas adequadas aos eventos supervenientes à assinatura do ajuste.

Assim, o presente estudo foi motivado pela recente publicação Nova Lei de Licitações e Contratos (lei nº 14.133/2021), que altera a lógica anterior, que se valia basicamente da teoria das áleas para garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, passando a trazer uma possibilidade de alocação prévia de riscos. Observa-se, assim, lacuna nos estudos acadêmicos, vez que tal lei, por ser tão recente, ainda não foi objeto de pormenorizada análise, em especial quanto ao instrumento da matriz de riscos.

O estudo vertente justifica-se, ademais, pela existência de impactos concretos diretamente ligados à Administração Pública no exercício de suas funções, já que as alterações legislativas apresentam aos gestores públicos novas ferramentas para a elaboração de editais de licitação, bem como para a negociação junto aos parceiros privados, possibilitando o desenho de soluções contratuais diversas daquelas anteriormente adotadas.

1.1. Metodologia

A presente investigação foi feita por meio de uma metodologia de natureza jurídico-dogmática (GUSTIN; DIAS, 2013), visto tratar-se de relações normativas e estruturas interiores ao ordenamento.

Buscou-se o levantamento e a análise crítica de dados derivados de fontes diretas secundárias, como estudos doutrinários publicados sob a forma de monografias, capítulos e artigos científicos. Ainda, recorreu-se a análise de fontes diretas primárias, como leis, decretos e atos normativos. Propôs-se à realização de uma investigação teórica, com vista à análise de conteúdo.

2. GESTÃO DE RISCOS

2.1. Conceito e premissas

A estipulação de cláusulas contratuais capazes de prever eventos futuros que poderão influenciar no resultado de contratações, e que são capazes de contornar ou adaptar a contratação à novas realidades, é premissa essencial para o sucesso ou insucesso de projetos, sejam eles privados ou públicos.

Segundo Antônio Cocurullo (2002, p. 10), risco é a variação potencial dos resultados, estando presente em quase tudo o que se faz. O autor indica que risco não significa a possibilidade de perda – se tal risco for devidamente avaliado e administrado, respostas condizentes podem ser previstas e, quando colocadas a prova, podem gerar em somas positivas. Assim, enxerga-se o risco como a possibilidade de sucesso e não de fracasso (COCURULLO, 2002, p. 22).

Carlos de Oliveira Cruz e Joaquim Miranda Sacramento (2020, p. 153), citando Damodaran (2001), indicam que, em finanças, o risco consiste na probabilidade de o retorno real de um investimento ser diferente do retorno esperado, quer uma diferença positiva, ou seja, superior ao esperado, quer uma diferença negativa, ou seja, receber menos que o esperado. Risco é, assim, a combinação da probabilidade de um evento ocorrer e seu efeito.

Marcos Nóbrega (2010, p. 3) assinala existir confusão quanto ao entendimento do que seria risco e incerteza. Porém, o autor defende que, uma situação arriscada ocorreria quando as probabilidades do evento fossem conhecidas, ao passo que estaríamos diante de uma situação incerta se tivéssemos desconhecimento dessas probabilidades. Aponta o autor:

A caracterização do risco pode se dar em diferentes contextos. Em primeiro lugar, o risco pode ser considerado como uma oportunidade e nesse caso quanto maior o risco, maior será o potencial de retorno ou perdas. O risco pode ser também visto como um evento potencialmente negativo que afeta as metas e a performance econômica, sendo a melhor saída a redução da probabilidade do evento negativo (NÓBERGA, 2010, p. 3).

Compreender quais são os riscos inerentes à gestão contratual, avaliar da significância, a probabilidade de ocorrência, e como estes podem ser processados, de forma pré-definida, é tarefa do gestor público, em respeito às disposições legais.

A Instrução Normativa Conjunta CGU/MP nº 01/2016, que dispõe sobre controle internos, gestão de riscos e governança no âmbito do Poder Executivo Federal, tratou da gerência de riscos no interior a administração pública. Assim, tem como escopo processos de controle e fiscalização interna da Administração, e não das relações estabelecidas entre essa e os particulares por meio de contratos administrativos. Sua indicação, entretanto, se faz essencial em função dos conceitos trazidos:

VII – gerenciamento de riscos: processo para identificar, avaliar, administrar e controlar potenciais eventos ou situações, para fornecer razoável certeza quanto ao alcance dos objetivos da organização;

XIII – risco: possibilidade de ocorrência de um evento que venha a ter impacto no cumprimento dos objetivos. O risco é medido em termos de impacto e de probabilidade;

XIV – risco inerente: risco a que uma organização está exposta sem considerar quaisquer ações gerenciais que possam reduzir a probabilidade de sua ocorrência ou seu impacto;

XV – risco residual: risco a que uma organização está exposta após a implementação de ações gerenciais para o tratamento do risco; (BRASIL, 2016-a) (grifei)

Lindineide Oliveira Cardoso, Jamil Manasfi CruzJamil Manasfi Cruz e Paulo José Ribeiro Alves (2020, p. 02) explicam o processo organizado para identificar tais riscos e conduzi-los até um estágio onde estejam dentro de um limite aceitável. Em primeiro lugar, indicam que é necessário se estabelecer contexto em que estarão inseridos apontando os eventos internos e externo que dizem respeito à atividade de gestão contratual. Entre os eventos externos, diferenciam-se os eventos entre “oportunidades” (positivos) e “ameaças” (negativos) vindas do exterior da organização. Um exemplo indicado no texto como evento externo foi a pandemia de 2020/2021 causada pela Covid-19, sendo um claro evento exógeno aos contratantes e que trouxe diversos desafios para a execução contratual.

Já no contexto interno, são verificadas as forças e as fraquezas endógenas aos contratantes e à execução do contrato em si, o que pode servir de referência para identificação dos pontos de possíveis melhoras intraorgânicas.

Após a contextualização da gestão, Cardoso, Manasfi e Alves (2020, p. 02) indicam que a etapa seguinte seria a de identificação dos riscos. Os autores reforçam que para cada objetivo há uma enormidade de riscos que podem vir a dificultar a organização desse planejamento de gestão contratual – cada um desses riscos intrínsecos deve ser listado, pois na fase seguinte serão analisados e avaliados conforme sua capacidade de influenciar negativa ou positivamente os objetivos buscados, sendo, após, ranqueados para o necessário tratamento. Cada risco deverá ser analisado sob dois primas: o seu impacto sobre o objetivo e a probabilidade de sua ocorrência.

Nesse sentido, o gestor contratual deverá se valer da “Matriz de Impacto x Probabilidade”, que é a ferramenta por meio da qual se diferencia os riscos que serão aceitos sem nenhum tratamento daquelas que serão alvos de medidas mitigadoras, que forma a transformá-los em riscos aceitáveis – também chamados de “apetite a riscos da organização” (CARDOSO; CRUZ; ALVES, 2020, p. 02).

Com design da matriz, os riscos não são reduzidos a zero, mas organizados de uma forma que se estabelecem em um nível aceitável, de forma que o custo da medida mitigadora não pode ser alto a ponto de se tornar mais oneroso que o benefício esperado com a gestão contratual desenhada. Assim, a oportuna ponderação trazida por Cardoso, Manasfi e Alves se faz novamente importante:

Quanto mais comum e singelo o valor do bem ou serviço contratado, menor deve ser a mobilização da Administração Pública no tocante ao Gerenciamento dos Riscos. Dessa forma, o inverso se mostra igualmente verdadeiro: quanto maior a complexidade e o valor dos bens ou serviços contratados, maior a dedicação dos gestores públicos em gerir seus riscos, haja vista o impacto destes nos objetivos (CARDOSO; CRUZ; ALVES, 2020, p. 02)

Conforme avaliação de Thais Alves (2020, p. 3), nas contratações, riscos só podem ser transferidos de uma parte (contratante) para outra (contratado) ou compartilhados com base nas condições contratuais relevantes. Busca-se a gestão eficiente e eficaz durante todo o desenvolvimento contratual.

2.2. Áleas ordinárias e extraordinárias, equilíbrio econômico-financeiro e distribuição de riscos

O Direito Administrativo brasileiro clássico elege o dogma da “teoria das áleas” como parâmetro para o reequilíbrio dos ajustes (CASTRO et al, 2017, p. 1), que classifica as hipóteses ensejadoras do desequilíbrio como áleas ordinárias, extraordinárias e econômicas (riscos enfrentados pelo particular quando contrata com a Administração Pública).

Vale, nesse momento, pontuar a classificação e as indicações trazidas por Di Pietro (2019) quanto à cada uma dessas classificações. A primeira é a chamada “álea ordinária/empresarial”, que está presente em qualquer tipo de contrato, correspondendo ao risco que todo empresário corre em função a flutuação do mercado – por ser previsível, pela álea administrativa responde o particular. A segunda é a chamada “álea administrativa”, que pode ser compreendida em três modalidades diferentes:

  1. a) uma decorrente do poder de alteração unilateral do contrato administrativo, para atendimento do interesse público; por ela responde a Administração, incumbindo-lhe a obrigação de restabelecer o equilíbrio voluntariamente rompido;

  2. b) outra corresponde ao chamado fato do príncipe, que seria um ato de autoridade, não diretamente relacionado com o contrato, mas que repercute indiretamente sobre ele; nesse caso, a Administração também responde pelo restabelecimento do equilíbrio rompido;

  3. c) a terceira constitui o fato da Administração, entendido como “toda conduta ou comportamento desta que torne impossível, para o cocontratante particular, a execução do contrato” (Escola, 1977, v. I:434); ou, de forma mais completa, é “toda ação ou omissão do Poder Público que, incidindo direta e especificamente sobre o contrato, retarda, agrava ou impede a sua execução” (Hely Lopes Meirelles, 2003:233) (DI PIETRO, 2019, p. 597) (grifei).

A terceira forma de riscos é a chamada “álea econômica”, que depende de circunstâncias externos ao ajuste, independendo da vontade das partes contratantes, sendo consideradas imprevisíveis e inevitáveis. São áleas que causam desequilíbrios muito grandes no contrato, dando lugar à aplicação da teoria da imprevisão. Nesse cenário, a Administração Pública costuma responder pela recomposição do equilíbrio econômico-financeiro (DI PIETRO, 2019, p. 597).

A autora (2019, p. 597) ainda ensina que, no direito brasileiro, entende-se que tanto nas áleas administrativas quanto as áleas econômicas, o contratado tem direito à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, por força do art. 37, XXI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 2019).

A lógica da “teoria das áleas” foi adotada pela Lei nº 8.666/93 (CASTRO et al, 2017, p. 1). Este sistema atribui à Administração os riscos de caso fortuito, força maior, fato do príncipe, áleas econômicas extraordinárias e ordinárias de efeitos imprevisíveis, conforme disposto no art. 65 da lei.

Porém, segundo pontua Marçal Justin Filho (2003, p. 400), a diferenciação entre o que seria uma álea ordinária e uma extraordinária é uma tarefa complicada, já que não existe um critério objetivo para colocar em prática tal tarefa. Em verdade, o autor traz sérias críticas a tal metodologia, entendendo que tentativas nesse sentido tendem a ser circulares ou repetitivas: “afirma-se que álea ordinária é a normal e inerente a um empreendimento, diversamente da extraordinária. Essa fórmula não é apta a fornecer um critério exato para solucionar problemas práticos” (JUSTEN FILHO, 2003, p. 400).

Considerando essa concepção de insuficiência da doutrina das áleas ordinárias e extraordinárias, que é vaga e indeterminada quanto aos riscos suportados, percebe-se a propensão a problemas de ordem prática. Segundo ponderam Rodrigo Pironti Aguirre de Castro e Fernando Menegat (2017, p. 2), trata-se de cenário que contribui para a ineficiência na execução de contratos, abre margens para a prática de atos corruptivos e que celebra a judicialização de conflitos (reiteradamente convocando o Poder Judiciário para determinar se dado evento rende ensejo ou não ao reequilíbrio contratual).

Ainda, João Paulo S. R. da Silva (2010, p. 23), indica que imprecisas e confusas definições de “equilíbrio econômico-financeiro” e de “distribuição de riscos” contribuem para distorções na alocação de riscos em contratos administrativos. Citando Maurício Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado (2007), Silva aponta que equilíbrio econômico-financeiro corresponde a um instrumento comum em contratos de longa duração, cujo objetivo é exatamente lidar com as consequências que a passagem do tempo traz para a relação contratual. A distribuição de riscos, por sua vez, consiste em antecipar e alocar a cada uma das partes a responsabilidade de arcar com as consequências de eventual ocorrência do risco previsto (SILVA, 2010, p. 23).

Vale acrescentar que o equilíbrio econômico-financeiro, segundo o celebrado autor Marçal Justin Filho (2016-a, p. 363), é a relação entre encargos e vantagens assumidas pelas partes do contrato administrativo no momento da contratação e que deverá ser preservada durante toda sua execução. Assim, o equilíbrio abrange aspectos econômicos relevantes, compreendendo não apenas o montante de dinheiro devido ao particular contratado, mas também o prazo estimado par apagamento, sua periodicidade e abrangência, e qualquer outra vantagem que o contrato possa traduzir.

Quanto à distribuição de riscos, que consiste na definição dos riscos futuros que serão atribuídos a cada uma das partes, reporta-se à noção de “gestão de riscos”.

2.3. Gestão de riscos e matriz de riscos

Segundo Fernando Menegat e Gustavo Miranda (2019, p. 02), o conceito de “gestão de riscos” deve ser compreendido em uma dimensão macro, dizendo respeito à necessidade de as instituições se preocuparem com o autocontrole de suas atividades, de forma a evitar o cometimento de fraudes e ilegalidades. Assim, as empresas, entidades em fins lucrativos, órgãos e entidades da Administração Pública, por meio da gestão dos riscos, focam em mecanismos de controle interno da organização, com vista ao gerenciamento de riscos e crises. Nessa linha, afirmam que “a essa dimensão macro, denomina-se aqui compliance institucional”.

Ainda, indicam os autores (MENEGAT et al, 2019) que a gestão de risco tem ganhado destaque em algumas legislações administrativas mais recentes, como é o caso da Lei das Estatais (lei nº 13.303/2016) e da Lei Anticorrupção (lei nº 12.846/2013), ambas exigindo da Administração procedimentos internos de integridade, controle interno e outros mecanismos de compliance, com o objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos.

Por outro lado, o conceito de “matriz de riscos” é menos abrangente. Menegat e Miranda (2019, p. 03) explicam que tal expressão tem dimensão mais estrita, fazendo referência à cláusula contratualmente prevista com a finalidade de disciplinar a repartição de riscos entre as partes – contratante (Poder Público) e contratado (particular).

Assim, a matriz de riscos será o instrumento de gestão de riscos no caso concreto da contratação, devendo promover a alocação eficiente das possíveis intercorrências que poderão influenciar na execução do contrato, de modo a conferir o ônus de suportar efeitos ao agente melhor capacidade para geri-la.

Segundo pondera Thais Soares Alves (2019, p. 6), a adoção da matriz de riscos nos contratos administrativos poderá garantir maior racionalização e transparência para os procedimentos licitatórios, objetivando a minimização de transtornos durante o desenvolvimento do contrato e do próprio projeto ao qual este se relaciona.

Assim, as noções de riscos influenciam diretamente forma como será trabalhada a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo. É a lei que trará especificações de como deve o administrador público lidar com esses diferentes riscos.

2.4. Previsões legislativa relacionadas à gestão de riscos

Nesse contexto, a legislação brasileira trouxe algumas normas no sentido de exigir que os gestores públicos se ocupassem desses processos de verificação, previsão e manejo de riscos de forma prévia à concretização de contratações públicas. Porém tais exigência foram tímidas, tendo sido inicialmente previstas apenas em algumas leis especiais de contratos públicos.

No que diz respeito àquela que era a principal lei de regência das contratações públicas, a Lei nº 8.666/93, verifica-se que essa adotou, como já indicado, a teoria das áleas administrativas como meio de garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos firmados sob sua égide.

Nessa lógica, segundo Rodrigo Pironti Aguirre de Castro e Fernando Menegat (2017, p. 1), após assinatura do contrato, todo evento ocorrido deveria ser analisado concretamente, a fim de se perquirir se a ocorrência era previsível ou calculável pelo contratado (teoria da imprevisão) ou, doutro vértice, se a Administração Pública foi a responsável, direta ou indiretamente, pelo evento danoso (fato do príncipe, fato da administração e alteração unilateral do contrato).

Nessa mesma toada, a lei do pregão (Lei nº 10.520/2002) segue sistemática semelhante.

A lei que regulamenta as Parcerias Pública-Privadas (Lei nº 11.079/2004), apesar não se referir expressamente à “matriz de riscos” nos seus contratos especiais, traz previsões sobre a repartição de riscos objetivos entre as partes, conforme dispõe:

Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes:

[…]

VI – repartição objetiva de riscos entre as partes;

Art. 5º As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto no art. 23 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever:

[…]

III – a repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária (BRASIL, 2004).

Segundo indicam Castro e Menegat (2017, p. 5) foi a Lei de PPPs o diploma responsável por romper a lógica tradicional da teoria das áleas previstas na Lei nº 8.666/93. Isso porque a tal lei, ao contrário de seguir a lógica da locação aleatória e ex post de riscos contratuais, opta pela sua alocação específica e ex ante, já no momento da celebração do contrato.

Nesse sentindo, quando da assinatura de um contrato de parceria, haverá prévia, expressa e objetiva indicação de cada um dos riscos passíveis de incidir sobre a execução do contrato (risco de demanda, geológico, cambial, regulatório, etc) e de qual o parceiro (público ou privado) que será responsável por suportá-lo, buscando-se uma distribuição equitativa, de base racional, alocando a cada parceiro os riscos que pode mais eficientemente gerir (CASTO et al, 2017, p. 5).

Segundo indicam os autores (2017, p. 5), com a fixação da matriz de riscos, não mais se aguardará que a situação danosa ocorra para, só então, as partes definirem de quem é a obrigação de absolver o dano, bem como decidirem se será ou não necessário promover o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Em verdade, a lei de PPPs antecipa o debate e obriga a Administração Pública a, desde o momento da licitação, explicitar objetivamente todos os riscos que prevê incidirem sobre a atividade (sejam de natureza ordinária ou extraordinária), bem como indicar quem será responsável pela mitigação de cada um deles. Ressalta-se que tais informações deverão ser incluídas em cláusula própria, ou mesmo em anexo, do contrato a ser firmado, no que se tem denominado “matriz de riscos” (CASTO; MENEGAT, 2017, p. 5).

Nesse sentido, o advento da Lei de PPPs permitiu o surgimento de uma nova possibilidade de engenharia contratual dos riscos, ainda que em um universo limitado de contratos administrativos. Depois de sua edição, outras leis trouxeram previsões de instrumentos correspondentes.

A lei do RDC (lei nº 12.462/2011), alterada pela lei nº 13.190/2015, passou a trazer previsão de técnicas de manejo de riscos, estipulando, em seu art. 9º, §5º, que taxas de riscos compatíveis com o objeto da licitação e as continências atribuídas ao contrato serão levadas em consideração, caso o anteprojeto contemple uma matriz de alocação de riscos. Tal exigibilidade, porém, era limitada às contratações integradas nas licitações de obras e serviços de engenharia no âmbito de cabimento do RDC. Não será, portanto, cabível para as licitações em geral.

Por fim, há também previsão da matriz de riscos na Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) em toda e qualquer contratação realizada pelas empresas públicas ou sociedades de economia mista, conforme prevê o art. 69, inciso X: “são cláusulas necessárias nos contratos disciplinados por esta Lei: matriz de riscos” (BRASIL, 2016-b).

Diferentemente da Lei de Parcerias Público-Privadas, o Estatuto das Estatais tratou de definir um conceito para “matriz de riscos”, conforme se verifica no seu art. 42, inciso X, em que a classifica como sendo uma cláusula definidora de riscos e responsabilidade, caracterizadora do equilíbrio financeiro inicial do contrato, decorrente de eventos supervenientes à contratação. A lei prevê que a matriz trará, como requisitos mínimos, as seguintes informações:

  1. a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato, impactantes no equilíbrio econômico-financeiro da avença, e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo quando de sua ocorrência;

  2. b) estabelecimento preciso das frações do objeto em que haverá liberdade das contratadas para inovar em soluções metodológicas ou tecnológicas, em obrigações de resultado, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico da licitação;

  3. c) estabelecimento preciso das frações do objeto em que não haverá liberdade das contratadas para inovar em soluções metodológicas ou tecnológicas, em obrigações de meio, devendo haver obrigação de identidade entre a execução e a solução pré-definida no anteprojeto ou no projeto básico da licitação. (BRASIL, 2016-b)

A respeito do conceito trazido, Castro e Menegat (2017, p. 6), explicam que a lei alargou a concepção até então vigente a respeito das matrizes de risco nos contratos administrativos, à medida que exige não apenas a previsão e alocação dos eventuais riscos incidentes sobre o ajuste (art. 42, x, “a”), mas também a indicação dos elementos contratuais em que haverá liberdade de inovação da contratada para melhor se adequar à realidade dos bens/serviços licitados, seja em obrigações de meio ou e resultado (art. 42, x, “b” e “c”).

Vale ressaltar que a Lei de PPPs e a Lei das Estatais não são aplicáveis às contratações comuns da Administração Pública. Pelo princípio da especialidade, suas normas são aplicadas a um escopo reduzido de contratações, que ostentam características distintivas que demandam tratamento especial. As contratações comuns, até então, eram reguladas, a nível federal, pelas leis nº 8.666/1993 e nº 10.520/2002 e, em parte, pela lei nº 12.462/2011.

Os instrumentos acima citados eram as únicas previsões legais previstas no nosso ordenamento, a respeito da gestão de riscos no âmbito da Administração Pública até 2020. Porém, com a publicação da Nova Lei de Licitação e Contratos, tem-se inovações nessa seara.

3. INOVAÇÃO LEGISLATIVA

3.1. Vigência da nova lei de licitações

Conforme já se indicou, a Lei nº 14.133/2021, publicada em 1º de abril de 2021, irá regular as licitações e contratos administrativos de órgãos e entidades da Administração Pública, e funcionando como lei geral, será aplicada em todas as esferas da federação.

Inicialmente, importante ponderar que a lei, em seu art. 194, dispôs que sua entrada em vigor se daria no mesmo dia de sua publicação, ou seja, afastou o instituto da vacância, já estando apta a produzir efeitos. Assim, Joel de Menezes Nienbuhr ressalta que “ela pode ser aplicada pela Administração Pública imediatamente” (2021, p. 7).

Apesar disso, considerando as mais diversas modificações trazidas pelo novo diploma, o que implica a necessidade de adaptações e estudos por parte da Administração e dos particulares no que toca às suas respectivas atuações, o legislador previu a coexistência das regras anteriores com as novas regras durante um período de dois anos.

Durante esse prazo, que se estenderá até 31 de março de 2023, a Administração Pública poderá aplicar qualquer dos regimes antigos (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002 e Lei nº 12.462/2012) ou o regime novo (Lei nº 14.133/2021). Porém, não lhes é permitido combinar regimes, conforme dispõe a parte final do art. 191 da Lei nº 14.133/2021:

Art. 191 Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso (BRASIL, 2021).

Durante esse período de dois anos, feita a opção pelo gestor público pela utilização de um ou outro regime, essa opção será mantida até o fim do processo licitatório e terá repercussões na posterior contratação. Conforme ensina Nienbuhr (2021, p. 9), se a licitação é pelo regime antigo, o contrato, da mesma forma, é pelo regime antigo; e licitado pelo regime novo, o contrato segue o regime novo.

Assim, considerando que um contrato administrativo pode ser sucessivamente prorrogado, possivelmente contratos administrativos regidos pela legislação anterior ainda estarão em ordem por alguns anos (NIENBUHR, 2021, p. 9).

De qualquer forma, as novas regras já podem ser aplicadas e merecem atenção por parte dos gestores e dos particulares envolvidos em contratações administrativas. E um dos assuntos que sofreu consideráveis alterações foi exatamente a noção de alocação de riscos nos novos contratos e suas consequências, que será objeto de análise no próximo capítulo.

3.2. Matriz de risco na nova lei

A Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), no caput do art. 103, prevê que o contrato poderá identificar os riscos contratuais previstos e presumíveis e prever matriz de alocação de riscos, alocando-os entre contratante e contratado, mediante indicação daqueles a serem assumidos pelo setor público ou pelo setor privado ou daqueles a serem compartilhados.

Segundo explicam Alexandre Mattos de Freitas, Felipe Orsetti Prado, Pedro Leonardo Tonaco Alexandre, Miguel Frederico Félix Carmona (2021, p. 129), a figura da matriz de riscos foi prevista na lei nº 14.133/2021 como um instrumento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, visando estabelecer uma condição inicial de igualdade entre as partes.

Assim, a matriz de riscos aloca riscos e responsabilidades contratuais ao contratado e ao contratante, definindo desde já os ônus que cada um deverá suportar caso determinada situação prevista venha a se concretizar supervenientemente. Almeja-se garantir previsibilidade na execução contratual, no intuito de mitigar desequilíbrios contratuais, garantido maior segurança jurídica ao contratado e protegendo a Administração e o contrato de fatos incertos, porém previsíveis (FREITAS et al, p. 158).

Deve-se pontuar, entretanto, que tal alocação de riscos não pode se dar de forma genérica e nem mesmo exigir dos contratados obrigações impossíveis de cumprimento. Segundo bem coloca Marçal Justen Filho (2016-b, p. 391), uma matriz de riscos que se vale de termos residuais e genéricos que determinam que todos os fatos supervenientes serão atribuídos ao contratado podem gerar situações de onerosidade excessiva e impossibilidade gravíssima de execução contratual.

Castro e Menegat (2017, p. 6) alertam que não há nenhuma aproximação desse modelo de gestão com procedimentos de “mitigação de risco” burocrático-formais, como é o caso dos check-lists. Ao contrário, uma matriz de risco eficiente predispõe e orienta suas ações sempre em razão das metas a serem alcançadas e delas não se distancia.

Ainda, Marcos Barbosa Pinto (2006, p. 13) indica que a repartição de riscos busca minimizar tanto os custos diretos quanto os indiretos de uma contratação. O autor assinala que, independentemente de quem se apropria do acréscimo de riqueza gerado diretamente pela alocação de riscos, serão promovidos resultados benéficos para todos os contratantes, já que reduz os preços totais de um serviço. Ainda, em uma licitação que se desenvolve em um cenário de competição, é natural que esses ganhos sejam repartidos entre o Estado e o agente privado. Não obstante, mesmo que o particular venha a se apropriar de todo o ganho de eficiência, a população ainda assim se beneficia da alocação de riscos, já que recursos escassos serão poupados.

Pinto (2006, p. 13) pondera que a ideia de transferir todo e qualquer risco para o parceiro privado, como uma suposta solução para os problemas da Administração Pública, é, em verdade, um pensamento equivocado. Isso porque os riscos são custos, e o parceiro privado, para concordar em suportá-los, vai cobrar do Estado. Assim, propondo-se a gestão dos riscos no contrato de licitação, o ideal é que o Estado absorva todos aqueles riscos que que poderia suportar a um custo mais baixo, já que, se fosse transferi-los, estaria pagando mais caro por um serviço que não necessita, desperdiçando recursos públicos escassos. (PINTO, 2006, p. 13).

Nesse sentido, a Administração Pública e a sociedade têm muito a ganhar com a implementação da matriz de riscos nos contratos licitados, podendo se valer da nova figura da matriz de riscos. Esse instrumento foi incluso na nova lei de licitações, seguindo a estrutura da lei das estatais. Inclusive, a conceituação adotada assemelha-se, em quase sua integralidade, à previsão trazida na Lei de Estatais (Lei nº 13.303/2016). É o que se observa no art. 6º, XXVII, que define ser a matriz de risco uma cláusula contratual, na qual se define os riscos e responsabilidades entre as partes. A matriz ainda caracteriza o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação. Segundo a lei, a matriz conterá a listagem dos possíveis eventos futuros que possam causar impactos no equilíbrio econômico-financeiro do contrato, bem como a previsão de eventual necessidade de prolação de termos aditivos por ocasião de sua ocorrência.

Ainda, verifica-se que a nova lei de licitações também diferencia o tratamento conferido às obrigações de resultado daquele conferido às obrigações de meio em sede de matriz de riscos, assim como o fez a Lei de Estatais. Tal diferenciação se traduz na previsão de liberdade conferida aos contratados para inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas no contrato de obrigação de resultado, enquanto no contrato de obrigação de meio há previsão de estrita aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia.

Nesse cenário, a matriz de riscos relacionará fatores internos e externos previsíveis de cada contratação. No art. 22 da nova lei, têm-se a indicação de que a matriz de riscos poderá ser prevista no instrumento convocatório. Por outro lado, será obrigatória tal previsão no caso de contratação de obras e serviços de grande vulto, ou em que forem adotados os regimes de contratação integrada ou semi-integrada.

Tal previsão traduz lógica cristalina, visto que a criação de matrizes de risco deve atenção ao cada tipo de bem comprado ou serviço contratado, respeitando assim suas especificidades. A título de exemplo, um contrato de empreitada de um centro de atendimento à saúde relaciona-se a riscos diversos dos enfrentados em um contrato de pintura predial.

Como já explicitado, previsto determinado risco na matriz contratual, sua ocorrência exige que o agente por ele responsável arque com o ônus decorrente, sendo considerado mantido o equilíbrio, representando uma renúncia ao direito de requerer o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. O §5º do art. 103 da lei, por sua vez, traz exceções à tal renúncia no que se refere:

I – às alterações unilaterais determinadas pela Administração, nas hipóteses do inciso I do caput do art. 124 desta Lei;

II – ao aumento ou à redução, por legislação superveniente, dos tributos diretamente pagos pelo contratado em decorrência do contrato (BRASIL, 2021).

Ou seja, as exceções do inciso I dizem respeito às situações em que o contratante (Administração Pública) entende necessário fazer alterações contratuais qualitativas ou quantitativas no contrato, dentro dos limites percentuais previstos no art. 125 da mesma lei. E as exceções do inciso II, por sua vez, tratam do fato do príncipe relacionado ao aumento da carga tributária paga pelo contratado (particular) especificamente em função da atividade contratada.

Assim, essas duas hipóteses não poderão estar previstas na matriz de riscos, de forma que, ocorrendo alguma delas e sendo verificado desequilíbrio na econômico-financeiro, far-se-á necessária a revisão, seja ela bilateral (art. 124, I, “a” e “b”), seja bilateral (art. 124, II, “d”).

O art. 102, §3º ainda prevê que a alocação de riscos poderá trazer reflexos no custo estimado da contratação. Sobre esse ponto, importante ponderar que alocar riscos não é a mesma coisa que alocar valor, porque a alocação de riscos para uma parte não necessariamente significa reduzir o interesse da parte sobre o valor do projeto (NÓBERGA, 2010).

Como bem indicam Castro e Menegat (2017, p. 7), a alocação de riscos ao privado não deve ser excessiva a ponto de onerá-lo em demasia, obrigando-o a assumir e mitigar riscos que seriam mais bem absolvidos pelo Poder Público.

Logo, percebe-se que a inovação legislativa trazida pela Lei nº 14.133/2021, no que diz respeito à possibilidade de estruturação de uma matriz de risco para qualquer contrato administrativo proveniente do processo de licitação, representa o rompimento, pelo menos parcial, com a lógica das áleas administrativas como instrumentos de reestabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Assim, percebe-se que o legislador, ao editar a lei nº 14.133/2021, opta pela lógica instituída originalmente pela Lei das PPPs e refinada pela lei nº 13.303/2016, no sentido de indicar aos gestores públicos a necessidade/obrigação de alocar prévia, objetiva e eficientemente todos os riscos contratuais possíveis de antecipação.

Ressalta-se, a previsão de uma matriz de riscos não está substituindo a teoria das áleas: por óbvio, sua previsão busca antecipar situações onerosas, e não as esgotar. Até porque, impossível prever toda e qualquer intempere contratual. Assim, ocorrendo algum fato que não estipulado na matriz de riscos, pode ser que seja necessário revistar a estrutura contratual com o fito de reequilibrar o negócio. Tal alteração encontra previsão no art. 124 da lei nº 14.133/2021, que descreve as hipóteses em que se dará unilateralmente pela Administração Pública, e outras em que se dará bilateralmente. Em seu inciso II, alínea “d”, temos a seguinte redação:

Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

II – por acordo entre as partes:

  1. d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato (BRASIL, 2021).

Inclusive, vale ressaltar que o legislador, ao tratar “da alteração dos contratos e do preço”, no art. 124, §2º, prevê que quanto aos riscos de atraso da conclusão de obras e serviços de engenharia em função de procedimentos de desapropriação, desocupação, servidão administrativa ou licenciamento ambiental, não ocasionado pelo contratado, a priori, já se verifica desequilíbrio econômico-financeiro do negócio. Assim, determinou-se aplicar o art. 124, II, “d” nessas hipóteses – se houver previsão na matriz de risco, essa será aplicada. Caso contrário, o contrato será revisto por acordo entre as partes.

Destarte, resta claro que a teoria das áleas administrativas não foi deixada de lado pelo legislador brasileiro. Ela continua sendo adota em casos de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe. A diferença aqui, ao que parece, é que, ocorrendo algum evento que atinge o planejamento da execução contratual, as partes deverão primeiro mirar se existe alguma cláusula contratual que já preveja a quem caberá suportar o ônus em tal situação – somente se não existir tal previsão, é que as partes poderão renegociar a onerosidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo esforçou-se na missão de delinear as disposições a respeito da estruturação legal da matriz de riscos proposta pelo legislador com a edição da Nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021).

Para tanto, analisou-se a fase da contratação do licitante vencedor, com a respetiva elaboração do contrato administrativo, com especial foco na necessidade de uma arquitetura contratual robusta e suficiente para garantir segurança jurídica à execução deste. A antecipação e controle de riscos surge como imposição lógica à persecução da melhor execução do objeto contratado.

Focou-se, em seguida, na compreensão, por meio de conceituações doutrinárias e normativas, do que seriam esses riscos que deveriam ser geridos em um contrato administrativo. Fez-se uma retomada legislativa, para identificar como o ordenamento brasileiro propôs/impôs soluções para eventuais alterações no equilíbrio econômico-financeiro de contratos firmados pela Administração Pública. Para isso, foi feita uma suscinta análise comparativa entre a Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/93), Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002), Lei do Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011), Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004) e Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), no intuito de verificar se as previsões da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) realmente trouxe grandes inovações ao ordenamento no que diz respeito à previsão de matriz de riscos.

Conforme visto, a tradicional estrutura contratual adotada no âmbito da aquisição de bens e insumos e contratação de serviços pela Administração Pública era exclusivamente voltada à teoria das áleas administrativas. Dessa forma, a lei nº 8.666/93 só trazia previsão de alteração do contrato em função de desequilíbrio contratual ex post, ou seja, os contratantes só se preocupavam com o prejuízo na execução contratual quando esse já se concretizava e, por consequência, já produzia efeitos maléficos para ambas as partes.

Promovendo uma revolução na forma como a Administração tratava tais riscos, a lei nº 11.079/2004 (Lei das PPPs) trouxe a previsão de repartição objetiva de riscos de forma prévia à sua concretização. Apesar de essa lei tutelar relações contratuais administrativas específicas das parcerias, essa primeira previsão legal pode ser considerada um primeiro passo para permitir ao gestor público uma estruturação contratual mais consciente dos riscos que envolvem a atividade e, com isso, buscar mitigá-los – e não simplesmente aguardar eventual catástrofe contratual.

Após a lei de PPPs, outros diplomas legais avançaram na previsão de instrumentos capazes de refrear problemas relacionados a eventos futuros e incertos, porém, previsíveis, que poderiam alterar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos Administrativos, como foi o caso da Lei do RDC e das Estatais. Importante ressaltar que, assim como a PPP, tais diplomas tutelam objetos limitados, não sendo aplicáveis às limitações em geral, nem mesmo de forma subsidiária.

Avançando na supracitada comparação legislativa, percebeu-se que a matriz de riscos prevista na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) era um dos mecanismos já previstos desde 2016 na Lei das Estatais. Inclusive, a lei de 2021 adota uma conceituação de matriz de risco, em quase sua totalidade, igual à da lei de 2016. A principal diferença é a que, como tal mecanismo passou a ser disciplinado em uma lei geral de licitações e contratados, significa que a anterior limitação material de sua aplicação em função do objeto da contratação (caso do RDC) ou da especial qualidade do contratante (caso das contratações por Estatais) resta superada. Assim, o gestor público passa a ter autorização/obrigação legal para trazer na arquitetura contratual tal instrumento.

A matriz de risco, assim, foi prevista como uma cláusula contratualmente estipulada com a finalidade de disciplinar a repartição de riscos entre as partes, de forma a conferir o ônus de suportar efeitos de um evento previsto como arriscado ao agente melhor capacidade para geri-lo.

O que se conclui é que a tradicional doutrina das áleas administrativas como meio de garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos comuns da Administração foi somada uma nova lógica gerencial dos riscos: busca-se prever ex ante os riscos a que estão submetidos o contrato e, por meio de cláusulas da matriz de riscos, distribuir objetivamente os ônus de sua possível ocorrência, de forma que ambos os contratantes poderão ter uma visão mais completa do arcabouço de responsabilidades assumidas – promovendo, em especial, a segurança jurídica. De qualquer forma, sendo o evento imprevisto nessa nova dinâmica da matriz de riscos, a teoria das áleas será aplicada, nos termos previstos na nova legislação, que manteve as previsões anteriores nesse sentido.

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[1] Este texto retoma, com algumas adaptações, os argumentos originalmente defendidos como trabalho de conclusão da especialização em Direito Público, concluída em 2021, junto à Faculdade de Direito Padre Arnaldo Janssen.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCAR, Sarah Dornelas. Gestão de Riscos nos Contratos Administrativos – Inovações da Lei nº 14.133/2021. Revista Di Fatto, Subcategoria Biologia, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2024, n. 3, aprovado e publicado em 17/09/2024. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/gestao-de-riscos-nos-contratos-administrativos-inovacoes-da-lei-no-14-133-2021/. Acesso em: 24/04/2025.