Transação penal, sursis processual e ANPP: análise comparativa da justiça penal consensual

Categoria: Ciências Humanas Subcategoria: Direito

Este artigo foi revisado e aprovado pela equipe editorial.

Revisor: C.E.R. em 2025-11-27 11:35:55

Submissão: 27/11/2025

Autores

Rômulo Creso Nascimento de Oliveira

Curriculo do autor: Graduando em Direito pela Faculdade Sudamérica, em fase de conclusão do curso, com atuação voltada principalmente às áreas de Direito Penal, Processo Penal, políticas de alternativas penais, bem como Direito Ambiental, atualmente estagiário na 5ª Promotoria de Justiça de Cataguases - MG.

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Resumo

O presente trabalho analisa comparativamente a transação penal, a suspensão condicional do processo (sursis processual) e o acordo de não persecução penal (ANPP) como instrumentos de justiça penal consensual no ordenamento jurídico brasileiro. Parte-se do contexto de expansão do encarceramento e de reformas legislativas voltadas à racionalização da persecução penal, especialmente a Lei nº 9.099/1995 e a Lei nº 13.964/2019. O objetivo central é identificar em que medida esses três institutos se complementam ou se sobrepõem, bem como avaliar seus limites e potencialidades à luz dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e da subsidiariedade da ação penal. A pesquisa é de natureza qualitativa e de caráter exploratório, desenvolvida por meio de estudo bibliográfico e documental, com análise comparativa de fontes doutrinárias, legislativas, jurisprudenciais e de relatórios institucionais. Examina-se a estrutura normativa, os requisitos de cabimento, o momento de incidência e os efeitos jurídicos de cada mecanismo, com destaque para o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça quanto à ilegalidade da recusa injustificada do Ministério Público em oferecer o ANPP. Conclui-se que, embora os três institutos contribuam para a redução da judicialização e do encarceramento desnecessário, sua efetividade depende do controle rigoroso da atuação negocial do Ministério Público e da observância das garantias constitucionais do investigado e do réu, sob pena de transformar a justiça consensual em mera formalização de acordos assimétricos.

Palavras-Chave

Transação penal; Suspensão condicional do processo; Acordo de não persecução penal; Justiça penal consensual; Despenalização.

Abstract

This paper presents a comparative analysis of penal transaction, conditional suspension of criminal proceedings and the Non-Prosecution Agreement (ANPP) as instruments of consensual criminal justice in the Brazilian legal system. It departs from the context of mass incarceration and legislative reforms aimed at rationalizing criminal prosecution, especially Law No. 9,099/1995 and Law No. 13,964/2019. The main objective is to identify to what extent these three mechanisms complement or overlap each other, as well as to assess their limits and potential from the perspective of the principles of minimal intervention, proportionality and subsidiarity of criminal action. The research has a qualitative and exploratory nature and is based on bibliographical and documentary study, with comparative analysis of doctrinal, legislative, jurisprudential and institutional sources. The study examines the normative structure, admissibility requirements, stage of application and legal effects of each mechanism, with particular emphasis on the recent case law of the Superior Court of Justice, which has declared unjustified refusals by the Public Prosecution Office to offer ANPP as unlawful. It concludes that, although these three instruments contribute to reducing excessive judicialization and unnecessary imprisonment, their effectiveness depends on strict control over prosecutorial discretion and on full respect for the constitutional safeguards of defendants and suspects, otherwise the consensual model risks becoming merely a formalization of structurally asymmetric agreements.

Keywords

Penal transaction; Conditional suspension of process; Non-prosecution agreement; Consensual criminal justice; Depenalization.

1 INTRODUÇÃO 

A crise contemporânea do sistema de justiça criminal brasileiro tem sido marcada, simultaneamente, pelo fenômeno do encarceramento em massa e pela busca de mecanismos capazes de racionalizar a atuação penal do Estado. A partir da década de 1990, o legislador brasileiro oscilou entre políticas de endurecimento punitivo – com a edição de diplomas como a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990) e a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/1995) – e iniciativas voltadas à contenção do poder punitivo, notadamente com a criação dos Juizados Especiais Criminais pela Lei nº 9.099/1995, que inaugurou um microssistema de justiça consensual (BITENCOURT, 2024; SIRVINSKAS, 2000). 

Nesse contexto, a transação penal e a suspensão condicional do processo foram concebidas como instrumentos despenalizadores voltados às infrações de menor gravidade, buscando evitar a instauração ou o prosseguimento da ação penal em situações em que a persecução tradicional se revela desproporcional. Mais recentemente, com a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o ordenamento passou a contar com o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, ampliando o espaço da justiça penal negociada também para delitos com pena mínima inferior a quatro anos, desde que sem violência ou grave ameaça (NUCCI, 2025; PRADO, 2025). 

Apesar de inseridos em uma mesma lógica de racionalização do sistema e de valorização de respostas consensuais, tais institutos suscitam intensos debates doutrinários e jurisprudenciais. Discutem-se, por exemplo, sua compatibilidade com princípios como a legalidade, a obrigatoriedade da ação penal, a presunção de inocência e o devido processo legal, bem como a possibilidade de ampliação das margens de discricionariedade do Ministério Público e de produção de assimetrias no exercício da defesa (LOPES JR., 2023; BITENCOURT, 2024). A exigência de confissão no ANPP, os possíveis efeitos estigmatizantes de acordos padronizados e a necessidade de controle judicial efetivo sobre a atuação negocial do órgão acusador são alguns dos pontos que tensionam a adoção desses mecanismos. 

Diante desse cenário, o presente trabalho tem como tema a análise comparativa entre a transação penal, a suspensão condicional do processo (sursis processual) e o acordo de não persecução penal (ANPP), enquanto instrumentos de justiça penal consensual e de política de despenalização no sistema brasileiro. A questão-problema que orienta a pesquisa pode ser assim formulada: em que medida a transação penal, o sursis processual e o ANPP se complementam ou se sobrepõem, e quais são seus limites e potencialidades como mecanismos de racionalização da persecução penal e de concretização dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade da ação penal? 

O objetivo geral da pesquisa consiste em analisar comparativamente os institutos da transação penal, da suspensão condicional do processo e do acordo de não persecução penal, à luz da evolução legislativa e jurisprudencial recente, destacando suas aproximações, diferenças e impactos na conformação de um modelo de justiça penal negociada no Brasil. Como objetivos específicos, busca-se: 
a) contextualizar historicamente o surgimento da Lei nº 9.099/1995 e do art. 28-A do CPP, situando-os no âmbito da política criminal de despenalização; 
b) examinar os requisitos, o procedimento e os efeitos jurídicos de cada um dos institutos, com base na legislação e na doutrina especializada; 
c) realizar uma análise comparativa entre transação penal, sursis processual e ANPP, especialmente quanto aos critérios de cabimento, ao momento de incidência e às consequências jurídicas; 
d) discutir as principais críticas e controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais, com destaque para o papel do Ministério Público e para o controle judicial dos acordos; 
e) avaliar em que medida esses mecanismos contribuem para a redução da judicialização penal e do encarceramento, sem esvaziar garantias fundamentais do acusado. 

A relevância do estudo se justifica tanto no plano acadêmico quanto no plano prático. No plano teórico, o tema dialoga com discussões centrais da dogmática penal e processual penal contemporânea, como a expansão da justiça consensual, a tensão entre legalidade e oportunidade regrada e os limites da negociação em matéria penal (LOPES JR., 2023; NUCCI, 2025). No plano prático, a crescente aplicação da transação penal, do sursis processual e, sobretudo, do ANPP – aliado ao recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar ilegal a recusa injustificada do Ministério Público em oferecer o acordo, com possibilidade de rejeição da denúncia por falta de interesse de agir (BRASIL, 2024) – demonstra a necessidade de estudo sistemático e crítico desses instrumentos pelos operadores do Direito. 

Quanto à metodologia, a pesquisa é de natureza qualitativa e de caráter exploratório, desenvolvida por meio de estudo bibliográfico e documental. Serão analisadas obras doutrinárias de referência em Direito Penal e Processual Penal, bem como a legislação aplicável (Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal, Lei nº 9.099/1995, Lei nº 13.964/2019 e legislação correlata). A pesquisa também se valerá do exame de decisões dos tribunais superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de relatórios e dados institucionais produzidos por órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), sempre que pertinentes ao tema. 

Metodologicamente, será adotada uma análise comparativa entre os três institutos, buscando identificar convergências e divergências quanto à estrutura normativa, ao campo de incidência, à função político-criminal e às consequências jurídicas de sua aplicação. O recorte temporal da pesquisa abrange o período compreendido entre a edição da Lei nº 9.099/1995 e as alterações introduzidas pela Lei nº 13.964/2019, com especial atenção ao desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial recente. A partir desse percurso, pretende-se oferecer uma leitura crítica e sistematizada da transação penal, do sursis processual e do ANPP, contribuindo para o aperfeiçoamento da compreensão e da aplicação prática desses institutos no âmbito da justiça penal brasileira. 

2 POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA E MEDIDAS DESPENALIZADORAS 

Ao longo da década de 1990, o Brasil vivenciou um período marcado pelo endurecimento das políticas criminais, orientadas por uma lógica repressiva e simbolicamente penalizadora, como resposta ao crescimento da violência urbana. Nesse contexto, o Congresso Nacional aprovou diplomas de forte impacto punitivo, como a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990) e a Lei nº 9.034/1995, que tratou da criminalidade organizada, reforçando uma tendência de expansão do Direito Penal como instrumento de contenção da insegurança pública. 

Paralelamente a esse movimento de recrudescimento, surgiram iniciativas voltadas à racionalização do sistema penal e à contenção do encarceramento em massa. A Lei nº 9.099/1995, ao instituir os Juizados Especiais Criminais, introduziu mecanismos como a transação penal e a suspensão condicional do processo, privilegiando medidas alternativas à pena privativa de liberdade para infrações de menor gravidade. Posteriormente, a Lei nº 9.714/1998 ampliou as hipóteses de aplicação de penas restritivas de direitos para delitos sem violência ou grave ameaça e com pena de prisão de até quatro anos, reforçando o viés despenalizador 

Desde então, o ordenamento jurídico brasileiro tem convivido com um permanente embate entre o endurecimento penal e propostas de contenção do poder punitivo estatal. Essa tensão se reflete em uma oscilação legislativa contínua, ora ampliando mecanismos de punição, ora abrindo espaço para medidas consensuais e despenalizadoras, em um cenário que Bitencourt (2024) descreve como um campo de disputa entre o Direito Penal máximo e o ideal de intervenção mínima. 

Nesse contexto, a Lei nº 9.099/1995 inaugurou um verdadeiro microssistema de justiça consensual, ao instituir a composição civil dos danos (art. 74), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89), todos voltados a evitar o prosseguimento da ação penal em hipóteses de menor gravidade (SIRVINSKAS, 2000).  

2.1 TRANSAÇÃO PENAL 

A transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/1995, é um instituto despenalizador destinado às infrações penais de menor potencial ofensivo, assim consideradas as contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não ultrapasse dois anos, com ou sem multa (BRASIL, 1995). Trata-se de um acordo celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato, antes do oferecimento da denúncia, mediante o qual se propõe a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, com o objetivo de evitar a instauração do processo penal e seus efeitos estigmatizantes. 

Sua finalidade central é viabilizar a solução consensual de conflitos penais de baixa gravidade, conferindo celeridade e economia processual, ao mesmo tempo em que previne a imposição de penas privativas de liberdade desnecessárias. A aceitação do acordo, se homologada judicialmente, não gera antecedentes criminais, ainda que possa impedir, pelo prazo de cinco anos, a concessão de nova transação penal ao mesmo beneficiário (BRASIL, 1995). 

A proposta de transação penal é condicionada ao atendimento de requisitos legais objetivos e subjetivos. Entre os primeiros, destacam-se: (i) tratar-se de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação, desde que não seja caso de arquivamento do termo circunstanciado; (ii) a infração se enquadrar no conceito de menor potencial ofensivo; (iii) o agente não ter sido beneficiado anteriormente, nos últimos cinco anos, com transação penal. Entre os requisitos subjetivos, exige-se que o autor do fato não tenha sido condenado, por sentença transitada em julgado, à pena privativa de liberdade pela prática de crime, bem como a análise favorável de seus antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias do fato (BRASIL, 1995). 

Nesse sentido, Sirvinskas (2000) ressalta que a transação penal somente é cabível nas infrações de menor potencial ofensivo, dependendo, além do limite máximo de pena abstratamente cominada, do preenchimento de requisitos subjetivos relacionados ao histórico do agente. Para o autor, o fato de o sujeito não ter sido condenado anteriormente à pena privativa de liberdade, tampouco beneficiado por transação penal nos cinco anos anteriores, revela a opção legislativa por reservar o benefício a indivíduos sem antecedentes significativos e com conduta social considerada favorável (SIRVINSKAS, 2000). 

Do ponto de vista procedimental, a transação penal é um instituto pessoalíssimo e consensual, cuja proposta depende do consentimento livre e voluntário do acusado. A audiência deve contar com a presença do juiz, do membro do Ministério Público e do defensor, constituído ou dativo, assegurando-se a assistência técnica adequada. O autor do fato deve ser pessoa capaz, em pleno gozo de suas faculdades mentais e, se menor de 18 anos, assistido por representante legal (BRASIL, 1995). 

Nessa perspectiva, Sirvinskas (2000) compreende a transação penal como um verdadeiro negócio jurídico extrapatrimonial, expressão da autonomia privada no âmbito penal, em que Ministério Público e autor do fato ajustam, de comum acordo, a aplicação de uma medida não privativa de liberdade em substituição à persecução penal tradicional. Embora essa autonomia não seja absoluta, pois se submete a requisitos legais e constitucionais, ela revela que o sistema penal passa a admitir espaços de disponibilidade inclusive em relação à liberdade do indivíduo e ao poder-dever de acusar (SIRVINSKAS, 2000). 

A transação penal tem origem no sistema jurídico anglo-saxão, no qual o Ministério Público atua com maior liberdade na condução da ação penal. No Brasil, contudo, essa importação foi adaptada a um modelo de legalidade estrita, exigindo que a proposta seja formulada sempre que presentes os requisitos legais, o que limita o poder discricionário do órgão acusador. A doutrina esclarece que, nesse contexto, há uma mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, em favor de uma oportunidade regrada (RAIZMAN, 2019). 

Em linha com a doutrina civil-constitucional, Sirvinskas (2000) também sustenta que a transação penal possui natureza essencialmente civil, por se tratar de negócio jurídico firmado entre Ministério Público e autor do fato, estruturado a partir de categorias como autonomia privada, teoria da vontade e transação. O autor registra, contudo, a existência de entendimento divergente, que atribui natureza predominantemente penal ao instituto, em razão de sua previsão na Lei nº 9.099/1995 e da referência expressa à “pena” no art. 76 (SIRVINSKAS, 2000). 

O surgimento do instituto deve ser analisado dentro do cenário de endurecimento penal dos anos 1990, em que, sob uma política criminal do terror, foram criadas leis como a dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990) e da criminalidade organizada (Lei nº 9.034/1995), caracterizando um Direito Penal simbólico, voltado a dar respostas imediatas às demandas sociais por segurança pública. A Lei nº 9.099/1995 surge, nesse contexto, como tentativa de racionalização do sistema penal, ao prever institutos despenalizadores como a transação penal e a suspensão condicional do processo, fortalecendo o viés restaurativo do Direito Penal (BITENCOURT, 2024). 

A transação penal, em regra, pode abranger a composição civil do dano e a aplicação imediata de sanção alternativa, sem reconhecimento formal de culpa. Ainda que não haja confissão, o instituto impede a concessão de nova transação penal ao mesmo beneficiário no prazo de cinco anos. A adesão à transação não representa assunção de responsabilidade penal pelo ilícito, mas gera impedimento à repetição do benefício em curto prazo (BRASIL, 1995). 

O Supremo Tribunal Federal reconhece sua aplicabilidade, ainda que excepcional, em ações penais privadas, fortalecendo o caráter consensual e despenalizador do instituto (STF, HC 107.570/SP). Além disso, a jurisprudência admite a cobrança judicial da multa como dívida ativa da Fazenda Pública, quando descumprida a transação penal, não sendo possível, entretanto, impor pena privativa de liberdade em razão desse descumprimento, dado o caráter meramente processual e consensual do ajuste. 

Ao analisar a natureza da decisão que homologa a transação penal, Sirvinskas (2000) afasta o caráter condenatório do pronunciamento judicial, defendendo tratar-se de sentença meramente homologatória, de cunho declaratório, que não produz os efeitos penais típicos da condenação, como a reincidência ou a formação de título executivo para fins civis. Essa compreensão harmoniza-se com a ideia de que a transação não implica reconhecimento formal de culpa e não gera antecedentes criminais. 

Embora contribua para a economia processual e a celeridade na resolução de conflitos penais de menor gravidade, a transação penal também suscita críticas quanto ao risco de padronização acrítica e possível afronta a garantias constitucionais, como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa — especialmente quando há pressão psicológica para a aceitação do acordo (BITENCOURT, 2024). 

Ainda que o art. 76 da Lei nº 9.099/1995 preveja expressamente a transação penal apenas para infrações de menor potencial ofensivo submetidas à ação penal pública, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já admitiu, de forma excepcional, sua aplicação em ações penais privadas, como no julgamento do HC 107.570/SP. Segundo Guilherme de Souza Nucci (2023), essa ampliação encontra fundamento em interpretação teleológica e principiológica da norma, voltada à efetivação da justiça consensual e despenalizadora, ainda que fora do escopo literal da lei. O autor adverte, porém, que se trata de hipótese excepcional e subsidiária, que deve observar estritamente os princípios do contraditório e da voluntariedade. 

Nessa mesma linha de cautela, Aury Lopes Jr. (2023) reforça que, embora a prática consensual represente avanço na racionalização do sistema penal, “não se pode converter exceções em regra, sob pena de esvaziamento da legalidade estrita no processo penal”. 

Por fim, no que se refere aos efeitos civis, Sirvinskas (2000) destaca que, na sistemática da Lei nº 9.099/1995, apenas a composição civil dos danos, prevista no art. 74, gera título executivo judicial e pode acarretar a extinção da punibilidade pela renúncia ao direito de representação. A transação penal, por si só, não produz efeitos civis automáticos nem impede a futura propositura de ação indenizatória, salvo se houver acordo específico quanto à reparação do dano no mesmo ato. 

2.2 SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO 

A suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, consiste em medida despenalizadora que permite ao juiz suspender o andamento do processo penal por período de dois a quatro anos, desde que o acusado preencha determinados requisitos legais e aceite cumprir condições fixadas judicialmente (BRASIL, 1995). O instituto é aplicável nos casos em que o crime imputado tem pena mínima igual ou inferior a um ano e o réu não seja reincidente em crime doloso, configurando-se como alternativa eficaz à persecução penal tradicional. 

De acordo com Aury Lopes Jr. (2023), o sursis processual se apresenta como forma de justiça restaurativa e educativa, na medida em que oferece ao autor do fato a oportunidade de reabilitação sem necessidade de enfrentar todo o rigor do processo penal convencional. Durante o período de prova, o acusado poderá ser submetido a obrigações como prestação de serviços à comunidade, proibição de frequentar determinados locais ou necessidade de autorização judicial para mudança de endereço, dentre outras condições compatíveis com sua situação pessoal. 

A adoção do sursis processual representa, ao mesmo tempo, um alívio para o sistema judiciário e a manutenção de uma resposta penal proporcional. Contudo, como observa Bitencourt (2024), o mecanismo, apesar de sua efetividade, ainda encontra resistência por parte de alguns operadores do Direito, que tendem a preferir a rigidez do modelo processual tradicional, interpretando as soluções consensuais como excessiva leniência. 

Sob a perspectiva da evolução legislativa, a Reforma Penal de 1984 desempenhou papel relevante na consolidação do sursis como instrumento legítimo de política criminal, ao buscar coibir os efeitos nocivos das penas privativas de liberdade de curta duração. A reforma incentivou a substituição dessas penas por medidas mais adequadas, como a suspensão condicional da pena e a ampliação das penas restritivas de direitos (BITENCOURT, 2024). A nova configuração conferiu ao instituto maior rigor e efetividade, rompendo com a antiga imagem de mecanismo ineficaz e “quase nada-jurídico”. 

O modelo brasileiro, ainda que filiado à tradição belgo-francesa do Direito Penal, passou a incorporar características do sistema anglo-americano, como o acompanhamento especializado dos beneficiários do sursis (“probation)”, nos moldes do que os franceses denominam “sursis avec mise à l’épreuve” (BITENCOURT, 2024). Essa evolução contribuiu para conferir maior credibilidade ao instituto, inclusive perante a opinião pública, que antes o percebia como sinônimo de impunidade. 

No âmbito específico da suspensão condicional do processo, os requisitos podem ser agrupados em pressupostos objetivos e subjetivos. Entre os pressupostos objetivos, destacam-se: (i) que o delito imputado tenha pena mínima igual ou inferior a um ano; e (ii) que a infração seja compatível com a substituição da persecução penal por medida consensual (BRASIL, 1995). Quanto aos pressupostos subjetivos, exige-se que o réu não seja reincidente em crime doloso e que haja prognóstico favorável de que não voltará a delinquir, segundo análise dos elementos constantes dos autos, especialmente aqueles previstos no art. 59 do Código Penal (BITENCOURT, 2024). 

Ademais, a decisão judicial que concede ou denega o sursis processual deve ser sempre fundamentada, sendo considerada por parte da doutrina como verdadeiro direito público subjetivo do réu, desde que preenchidos todos os requisitos legais (BITENCOURT, 2024). Nessa perspectiva, não se trata de mera faculdade discricionária do magistrado, mas de poder-dever a ser exercido à luz dos princípios da proporcionalidade, da individualização da resposta penal e da intervenção mínima. 

Assim, o sursis processual revela-se como medida eficaz de racionalização da justiça penal, capaz de promover a reintegração social do infrator e reduzir os custos do encarceramento, desde que observado com rigor técnico e respeitados os princípios constitucionais que regem o processo penal. Ao lado da transação penal e do acordo de não persecução penal, integra o conjunto de mecanismos consensuais que buscam compatibilizar a efetividade da tutela penal com a limitação do poder punitivo estatal. 

2.3 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL 

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), instituído pela Lei nº 13.964/2019 e previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, representa significativa inovação no sistema de justiça criminal brasileiro. Trata-se de medida de política criminal consensual e despenalizadora, cujo propósito é evitar o ajuizamento da ação penal em casos de infrações sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, permitindo ao Estado concentrar seus recursos na repressão das infrações mais graves (NUCCI, 2025; BRASIL, 2019). 

Nos termos do dispositivo legal, o Ministério Público poderá propor ao investigado, antes do oferecimento da denúncia, o cumprimento de condições como reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, pagamento de prestação pecuniária ou multa, entre outras, em troca da não persecução penal. Tais condições podem ser ajustadas cumulativa ou alternativamente, devendo ser proporcionais, adequadas e compatíveis com a gravidade do fato e com as circunstâncias pessoais do investigado (NUCCI, 2025). 

A implementação do ANPP busca consolidar uma vertente de justiça restaurativa, reduzindo a sobrecarga do Poder Judiciário e promovendo uma resposta penal menos severa e mais eficiente. Como destaca Prado (2025), o instituto aproxima o sistema penal brasileiro de modelos contemporâneos de justiça penal negociada, que priorizam o consenso, a reparação do dano e a racionalização da resposta estatal em detrimento de uma lógica puramente retributiva. 

Não obstante suas virtudes, o ANPP também apresenta desafios práticos relevantes. A exigência de confissão formal e circunstanciada do investigado pode tensionar o direito à não autoincriminação, sobretudo na hipótese de descumprimento do acordo e posterior oferecimento de denúncia, com eventual utilização da confissão em seu desfavor. Ademais, a cláusula aberta prevista no inciso V do art. 28-A, que autoriza o Ministério Público a estipular “outras condições”, pode gerar insegurança jurídica caso não haja rigor na vinculação entre as obrigações impostas e o fato delituoso, abrindo espaço para excessos ou tratamentos desiguais (NUCCI, 2025). 

O Superior Tribunal de Justiça tem reforçado a natureza vinculada da atuação ministerial quanto ao ANPP, reconhecendo que, preenchidos os requisitos legais, a oferta do acordo constitui verdadeiro dever jurídico do Ministério Público. Em julgado paradigmático, no REsp n. 2.038.947, a Sexta Turma estabeleceu que o parquet não pode deixar de oferecer o ANPP de forma injustificada ou com motivação ilegal, sob pena de rejeição da denúncia por ausência de interesse de agir (BRASIL, 2024). Nesse precedente, o STJ afirmou que, sobretudo em casos de tráfico de drogas, a recusa não pode se fundar apenas na gravidade abstrata do crime ou no caráter hediondo, uma vez que a causa de diminuição de pena do chamado tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006) pode reduzir a pena mínima para patamar inferior a quatro anos e afastar a hediondez da infração (BRASIL, 2024). 

Ainda de acordo com o acórdão, ao oferecer a denúncia, o Ministério Público deve demonstrar, em juízo de probabilidade, com base nos elementos do inquérito, que o investigado não faz jus à causa de diminuição do tráfico privilegiado ou, ao menos, que, mesmo sendo ela aplicável, a gravidade concreta do delito torna o acordo inadequado por não ser “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (BRASIL, 2024). Como consequência prática, no caso analisado, o STJ anulou o recebimento da denúncia por tráfico e determinou a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público para reanálise da oferta do ANPP, evidenciando a centralidade do mecanismo no modelo de justiça penal negociada. 

Segundo o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do REsp n. 2.038.947, o ANPP é mais uma forma de justiça penal negociada, ao lado da transação penal e da suspensão condicional do processo, produzindo benefícios para ambas as partes: o Estado renuncia à possibilidade de obter uma condenação em troca da antecipação e da certeza de uma resposta sancionatória; o investigado, por sua vez, renuncia à chance de eventual absolvição, evitando o desgaste do processo e o risco de prisão (BRASIL, 2024). Nesse contexto, a oferta do ANPP, da transação penal e do sursis processual é compreendida como um dever-poder do Ministério Público, não podendo ser afastada com base em critérios meramente subjetivos de conveniência e oportunidade. 

O mesmo julgado também reforça que a margem discricionária do Ministério Público quanto ao oferecimento do ANPP limita-se à verificação do preenchimento dos requisitos legais, sobretudo daqueles que envolvem conceitos jurídicos indeterminados – como a exigência de que o acordo seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” – e não autoriza a criação, pela via interpretativa, de novas vedações não previstas em lei (BRASIL, 2024). A recusa injustificada ou ilegalmente motivada em propor o acordo deve, segundo o STJ, conduzir à rejeição da denúncia, por ausência de interesse de agir para o exercício da ação penal. 

Sob a ótica principiológica, a Sexta Turma destacou que, à luz do princípio da intervenção mínima, a ação penal possui natureza subsidiária, de modo que não se pode inaugurar a via conflitiva do processo penal condenatório sem, ao menos, tentar previamente uma solução consensual mais branda, quando legalmente disponível (BRASIL, 2024). Nessa linha, a via consensual é tratada como preferencial: enquanto não esgotadas as alternativas negociais, a ação penal ainda não se mostra necessária, o que implica a falta de interesse de agir do Estado-acusador. 

O relator também mencionou o fenômeno do overcharging (excesso acusatório) na experiência norte-americana e apontou a existência, no Brasil, de prática inversa, designada como “overcharging às avessas”: o incremento artificial do número e da gravidade das imputações, justamente para inviabilizar o ANPP. Essa estratégia, ressaltou o STJ, mobiliza inutilmente todo o aparato judicial, na medida em que, ao final, com o afastamento do excesso acusatório em sentença, voltam a ser cabíveis os mecanismos consensuais, em linha com a orientação consolidada na Súmula 337 do próprio tribunal (BRASIL, 2024). 

Quanto à forma, o acordo deve ser formalizado por escrito e homologado judicialmente, garantindo-se a voluntariedade do investigado e a presença obrigatória de seu defensor, público ou constituído. A vítima, por sua vez, deve ser cientificada tanto da homologação quanto do eventual descumprimento do acordo, assegurando-se sua participação informada na persecução penal (NUCCI, 2025). 

Por fim, o cumprimento integral das condições pactuadas acarreta a extinção da punibilidade, sem registro de condenação criminal, ainda que o benefício possa servir para impedir a concessão de novo acordo em período determinado, em linha com a lógica de utilização excepcional desses mecanismos (NUCCI, 2025). Assim, o ANPP se consolida como instrumento central da justiça penal negociada, em conformidade com os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade da ação penal, ao lado da transação penal e da suspensão condicional do processo (PRADO, 2025; BRASIL, 2024). 

3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A TRANSAÇÃO PENAL, O SURSIS PROCESSUAL E O ANPP 

Os institutos da transação penal, da suspensão condicional do processo e do acordo de não persecução penal integram uma mesma tendência de despenalização e racionalização da justiça criminal, voltada à redução da judicialização excessiva, à prevenção do encarceramento desnecessário e à busca de uma resposta penal mais eficiente e proporcional (BITENCOURT, 2024; NUCCI, 2025; LOPES JR., 2023). Embora compartilhem objetivos, diferenciam-se quanto aos requisitos de cabimento, ao momento de aplicação e aos efeitos jurídicos produzidos. 

A transação penal, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099/1995, incide sobre infrações de menor potencial ofensivo e é proposta na fase pré-processual, antes do oferecimento da denúncia, geralmente na audiência preliminar dos Juizados Especiais Criminais. Exige, em linhas gerais, que o autor do fato seja primário, possua antecedentes favoráveis, não tenha sido beneficiado com transação nos últimos cinco anos e aceite voluntariamente a medida. Homologado o acordo, aplica-se de imediato pena restritiva de direitos ou multa, evitando-se a instauração do processo penal e seus efeitos estigmatizantes, sem formação de sentença condenatória e sem geração de reincidência, embora se vede a concessão de nova transação em curto prazo (BRASIL, 1995; SIRVINSKAS, 2000). 

A suspensão condicional do processo (sursis processual), por sua vez, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, é cabível quando a pena mínima cominada ao crime for igual ou inferior a um ano e o réu não for reincidente em crime doloso. Diferentemente da transação penal, o sursis é oferecido após o recebimento da denúncia, com o processo já instaurado. Aceito o benefício e preenchidos os requisitos legais, o curso do processo é suspenso por período de dois a quatro anos, durante o qual o acusado deve cumprir condições fixadas pelo juiz. Cumpridas as condições e transcorrido o período de prova sem revogação, declara-se extinta a punibilidade; em caso de descumprimento, o processo retoma seu curso normal até o julgamento (BRASIL, 1995; LOPES JR., 2023; BITENCOURT, 2024). 

Já o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido pela Lei nº 13.964/2019 e previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, atua na fase investigativa, antes do oferecimento da denúncia, incidindo sobre crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos. Além do requisito objetivo, exige-se a confissão formal e circunstanciada do investigado e a aceitação das condições impostas pelo Ministério Público, tais como reparação do dano, prestação de serviços à comunidade ou pagamento de prestação pecuniária. O cumprimento integral do acordo conduz à extinção da punibilidade, sem sentença condenatória, ainda que o benefício possa limitar a concessão de novo acordo em período determinado (BRASIL, 2019; NUCCI, 2025; PRADO, 2025). 

Do ponto de vista dos efeitos jurídicos, os três institutos convergem em evitar a imposição de pena privativa de liberdade e a formação de condenação, mas o fazem por caminhos distintos. 

Na transação penal, antecipa-se a aplicação de sanção alternativa, sem sequer instaurar o processo penal; 

Enquanto, o sursis processual, o processo é instaurado, mas fica suspenso sob condição, funcionando como válvula de escape após a formalização da acusação; 

Por sua vez, o ANPP, evita-se a própria propositura da ação penal, condicionando-se a extinção da punibilidade ao adimplemento das obrigações pactuadas na fase de investigação (NUCCI, 2025; LOPES JR., 2023). 

Em termos de requisitos legais, as diferenças também são significativas. A transação penal restringe-se às infrações de menor potencial ofensivo e, além de limites quanto à pena máxima, demanda primariedade e antecedentes favoráveis (BRASIL, 1995; SIRVINSKAS, 2000). O sursis processual exige pena mínima igual ou inferior a um ano, inexistência de reincidência em crime doloso e juízo de prognóstico favorável quanto à não reincidência (BRASIL, 1995; BITENCOURT, 2024). Já o ANPP pressupõe a ausência de violência ou grave ameaça, pena mínima inferior a quatro anos, confissão formal do investigado e adequação da medida à reprovação e prevenção do crime (BRASIL, 2019; NUCCI, 2025). 

O Superior Tribunal de Justiça tem ressaltado que a oferta da transação penal, da suspensão condicional do processo e do ANPP não constitui mera faculdade política do Ministério Público, mas verdadeiro dever-poder, condicionado ao preenchimento dos requisitos legais. Em decisão recente, no REsp n. 2.038.947, a Sexta Turma afirmou que a recusa injustificada do parquet em propor o ANPP — especialmente quando fundada apenas na gravidade abstrata ou no caráter hediondo do delito — é ilegal e pode ensejar a rejeição da denúncia por falta de interesse de agir, reforçando a natureza preferencial das vias consensuais em um sistema orientado pelo princípio da intervenção mínima (BRASIL, 2024). 

No plano material, importa destacar que nenhum desses institutos é aplicável aos crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, ou àqueles sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha, em atenção à Súmula 536 do Superior Tribunal de Justiça, que veda a incidência da Lei nº 9.099/1995 nesses casos (STJ, Súmula 536). Essa vedação revela que, embora a justiça penal consensual tenha sido ampliada, o legislador e a jurisprudência optaram por resguardar determinados bens jurídicos com tratamento processual mais rigoroso. 

Sob perspectiva crítica, a escolha entre um ou outro mecanismo exige análise cuidadosa do caso concreto. A transação penal mostra-se particularmente adequada para infrações de reduzida gravidade e baixa complexidade, permitindo solução rápida e menos burocrática. O sursis processual assume papel relevante em situações em que o processo já foi instaurado, mas ainda se revela possível substituí-lo por um período de prova, desde que presentes condições favoráveis. O ANPP, por sua vez, amplia o espectro da justiça penal negociada para crimes de maior gravidade relativa, mas acirra debates em torno da exigência de confissão, da assimetria entre acusação e defesa e dos riscos de utilização indevida do overcharging ou do chamado “overcharging às avessas”, com o fim de afastar artificialmente a incidência do acordo (BRASIL, 2024; PRADO, 2025). 

Em síntese, transação penal, suspensão condicional do processo e ANPP compõem um microssistema de justiça penal consensual, que somente alcança sua finalidade se aplicado com rigor técnico e respeito às garantias constitucionais. Cabe aos operadores do Direito manejar esses instrumentos de forma criteriosa, evitando tanto o uso indiscriminado, que pode banalizar o controle penal, quanto o conservadorismo que obsta sua utilização em situações em que a intervenção mínima, a proporcionalidade e a subsidiariedade recomendam justamente a adoção de soluções consensuais (BITENCOURT, 2024; NUCCI, 2025; LOPES JR., 2023). 

 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O presente estudo partiu da constatação de que o sistema de justiça criminal brasileiro vive uma tensão permanente entre, de um lado, a expansão punitiva e o encarceramento em massa e, de outro, o esforço legislativo e jurisprudencial de racionalizar a persecução penal por meio de instrumentos despenalizadores e consensuais. Nesse cenário, a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal passaram a ocupar posição central na conformação de um modelo de justiça penal negociada, voltado à redução da judicialização excessiva e do uso desnecessário da pena privativa de liberdade. 

A análise desenvolvida ao longo do trabalho permitiu constatar que tais institutos compartilham objetivos comuns, mas se distinguem quanto ao campo de incidência, aos requisitos de cabimento, ao momento de aplicação e aos efeitos jurídicos. A transação penal, restrita às infrações de menor potencial ofensivo, atua na fase pré-processual, antecipando a aplicação de sanção alternativa e evitando a própria instauração do processo. O sursis processual, por sua vez, pressupõe denúncia já recebida e opera mediante suspensão do curso da ação penal, condicionada ao cumprimento de obrigações pelo acusado. Já o ANPP, com espectro mais amplo, alcança crimes sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, incidindo na fase investigativa e condicionando a não persecução à confissão formal e ao adimplemento de condições ajustadas com o Ministério Público. 

Do ponto de vista das implicações político-criminais, verificou-se que esses mecanismos contribuem, em tese, para a concretização dos princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade e da proporcionalidade, ao permitir que o Estado selecione melhor os casos em que a via conflitiva e condenatória se mostra realmente necessária. Ao evitar a tramitação de milhares de ações penais em situações de baixa lesividade, a transação penal, o sursis processual e o ANPP podem aliviar a sobrecarga do Judiciário, reduzir custos e mitigar os efeitos criminógenos do encarceramento de curta duração, em sintonia com a doutrina que critica o uso inflacionado do Direito Penal (BITENCOURT, 2024; LOPES JR., 2023). 

Por outro lado, a pesquisa evidenciou que a expansão da justiça penal negociada não está isenta de riscos. A exigência de confissão formal no ANPP, a assimetria estrutural entre acusação e defesa, o perigo de padronização acrítica dos acordos e a possibilidade de utilização estratégica do “overcharging” ou do “overcharging às avessas” revelam que tais instrumentos podem, se manejados sem controle, reforçar seletividades e fragilizar garantias fundamentais. Nesse ponto, mostrou-se especialmente relevante o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar ilegal a recusa injustificada do Ministério Público em oferecer o ANPP, admitindo inclusive a rejeição da denúncia por ausência de interesse de agir (BRASIL, 2024). Esse entendimento reforça a ideia de que a oferta dos acordos não constitui mera faculdade política, mas um dever-poder vinculado à observância dos requisitos legais. 

As implicações do estudo apontam, portanto, para uma conclusão intermediária: os institutos da transação penal, do sursis processual e do ANPP representam ferramentas importantes de contenção do poder punitivo estatal e de racionalização da justiça criminal, mas não constituem solução automática para o problema do encarceramento em massa. Sua efetividade depende de uma atuação responsável e controlada do Ministério Público, de um Judiciário vigilante quanto à legalidade e à proporcionalidade dos ajustes e de uma defesa técnica capaz de assegurar que a adesão aos acordos seja genuinamente voluntária, informada e compatível com os direitos do acusado. 

Do ponto de vista metodológico, a pesquisa limitou-se à análise normativa, doutrinária e jurisprudencial, sem abarcar dados empíricos quanto ao volume de acordos celebrados, ao perfil dos beneficiários ou aos impactos concretos desses institutos sobre as taxas de encarceramento. Tais aspectos configuram campo fértil para investigações futuras, que podem complementar o presente estudo com abordagens empíricas e interdisciplinares, capazes de verificar se a justiça penal consensual, na prática, tem sido aplicada de modo equânime ou se reproduz, ou até intensifica, desigualdades já observadas no sistema penal. 

Em síntese, conclui-se que a transação penal, a suspensão condicional do processo e o acordo de não persecução penal compõem um microssistema de justiça penal consensual que, se adequadamente interpretado e aplicado, pode funcionar como importante mecanismo de realização dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade da ação penal. Contudo, se manejado de forma acrítica, sem controle judicial efetivo e sem compromisso com as garantias processuais penais, esse mesmo microssistema corre o risco de transformar a “negociação” em mera formalização de decisões unilaterais, esvaziando o sentido democrático do processo penal e reforçando o caráter seletivo do sistema de justiça criminal brasileiro. 

REFERÊNCIAS 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. v. 1. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786553629325/. Acesso em: 24 out. 2025. 

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Guia de formação em alternativas penais IV [recurso eletrônico]: transação penal, penas restritivas de direito, suspensão condicional do processo e suspensão condicional da pena restritiva de liberdade. Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. 48 p. il., fotos, gráficos. (Série Justiça Presente. Coleção Alternativas Penais). Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/09/guia-de-formacao-em-alternativa-penais-IV-Transa%C3%A7%C3%A3o-penal-penas-restritivas-de-direito_eletronico.pdf. Acesso em: 24 nov. 2025. ISBN 978-65-88014-53-0. 

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional; Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Manual de gestão para as alternativas penais [recurso eletrônico]. Coordenação: Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [et al.]. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2020. 336 p. fotos, gráficos, tabelas. (Série Justiça Presente. Coleção Alternativas Penais). Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/09/manual-de-gest%C3%A3o-de-alternativas-penais_eletronico.pdf. Acesso em: 24 out. 2025. 

BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm. Acesso em: 2 out. 2025. 

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm. Acesso em: 2 out. 2025. 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recusa injustificada do MP em oferecer ANPP é ilegal e autoriza a rejeição da denúncia. Brasília, DF, 20 set. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/20092024-Recusa-injustificada-do-MP-em-oferecer-ANPP-e-ilegal-e-autoriza-a-rejeicao-da-denuncia.aspx. Acesso em: 26 out. 2025. 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 536 do Superior Tribunal de Justiça. Brasília, DF. 

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. 

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. 

NUCCI, Guilherme de Souza. Processo penal e execução penal – esquemas & sistemas. 9. ed. Rio de Janeiro: Método, 2025. E-book. ISBN 978-85-309-9773-1. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788530997731/. Acesso em: 14 out. 2025. 

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 9. ed. São Paulo: Thoth, 2025. 

SIRVINSKAS, Luís Paulo. A autonomia privada, a transação penal e seus efeitos civis. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 780, p. 458-476, out. 2000. 

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rômulo Creso Nascimento de. Transação penal, sursis processual e ANPP: análise comparativa da justiça penal consensual. Revista Di Fatto, Ciências Humanas, Direito, ISSN 2966-4527, Joinville-SC, ano 2025, n. 5, aprovado e publicado em 27/11/2025. Disponível em: https://revistadifatto.com.br/artigos/transacao-penal-sursis-processual-e-anpp-analise-comparativa-da-justica-penal-consensual/. Acesso em: 13/12/2025.